É possível sonhar com uma paz duradoura entre as nações ou a humanidade está apenas se preparando para uma nova sucessão de guerras entre suas grandes potências?
Por José Luís Fiori |Créditos da foto: (Reprodução/bit.ly/3oZ1Jcb)
É bom lembrar que a esperança e a previsão, embora inseparáveis, não são a mesma coisa […] e toda previsão sobre o mundo real tem que repousar em algum tipo de inferência sobre o futuro a partir daquilo que aconteceu no passado, ou seja, a partir da história.
Hobsbawm, E. Sobre a História. São Paulo: Cia das Letras, 1998, p. 67
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No dia 30 de julho de 1932, Albert Einstein postou uma carta no pequeno vilarejo de Caputh, perto de Potsdam, na Alemanha, dirigida a Sigmund Freud, tratando do tema da “guerra e da paz” entre os homens e as nações. Nessa carta, Einstein perguntava a Freud como ele explicaria a permanência das guerras, através dos séculos e de toda a história humana, e perguntava também se Freud considerava que fosse “possível controlar a evolução da mente do homem de modo a torná-la à prova das psicoses do ódio e da destrutividade”.1 Desde Viena, Freud respondeu a Einstein que, do ponto de vista de sua teoria psicanalítica, “não havia maneira de eliminar totalmente os impulsos agressivos do homem”, apesar de que fosse possível “tentar desviá-los num grau tal que eles não necessitassem encontrar sua expressão na guerra”.2
Mas ao mesmo tempo, na sua “carta-resposta”, Freud colocou uma outra questão, aparentemente insólita, dirigida a Einstein e a todos os demais “homens de boa vontade”: “por que o senhor, eu e tantas outras pessoas nos revoltamos tão violentamente contra a guerra, mesmo sabendo que o instinto de destruição e morte é inseparável da libido humana?”. E se apressou em responder, falando para si mesmo, “a principal razão por que nos rebelamos contra a guerra é que não podemos fazer outra coisa. Somos pacifistas porque somos obrigados a sê-lo, por motivos orgânicos, básicos […], temos uma intolerância constitucional à guerra, digamos, uma idiossincrasia exacerbada no mais alto grau”.3
Tudo indica que Freud conseguiu identificar, acertadamente, a ambiguidade dos impulsos naturais dos indivíduos que poderiam estar por trás de uma história coletiva da humanidade, marcada por uma sucessão interminável de guerras que se sucedem de forma quase compulsiva, a despeito de que a maioria das sociedades humanas considera e defende a “paz” como um valor universal. Mas apesar disto, não existe até hoje nenhuma teoria que tenha conseguido explicar como essas guerras deram origem a uma sucessão de “ordens éticas internacionais” que duraram até o momento em que foram destruídos ou modificados por novas grandes guerras, e assim sucessivamente, através dos séculos. Como aconteceu com a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), e com a assinatura da Paz de Westfália, em 1648, que deu origem ao sistema de Estados nacionais europeus que depois se universalizou e foi sendo modificado ao mesmo tempo pelas guerras entre os europeus e depois entre os europeus e o “resto do mundo”, nos séculos XVIII, XIX, XX e XXI.
Foi o caso, por exemplo, da Guerra dos Nove Anos (1688-1697), envolvendo as principais potências europeias da época, e que culminou com a assinatura do Tratado de Ryswick; ou com a Guerra de Sucessão Espanhola (1701-1714), considerada a primeira “guerra global”, que terminou com a assinatura do Tratado de Utrecht; ou ainda a Guerra dos Sete Anos, (1756-1763), que se desenvolveu simultaneamente na Europa, África, Índia, América do Norte e Filipinas, e que terminou com a assinatura de vários tratados de paz, que produziram mudanças territoriais em quatro continentes. E assim sucessivamente, com as Guerras Revolucionárias e as Guerras Napoleônicas francesas (1792-1815), que mudaram o mapa político da Europa e foram pela Paz de Viena, que foi assinada e que foi responsável pela criação de uma “ordem internacional” extremamente conservadora, quase religiosa, e muito reacio0nária do ponto de vista social; ou também, com a Primeira Guerra Mundial e a Paz de Versailles, de 1919; e, finalmente, com a Segunda Guerra Mundial e o estabelecimento dos Acordos de Paz de Yalta, Potsdam e São Francisco, de 1945, responsáveis pelo nascimento da chamada “ordem liberal internacional”, tutelada pelos Estados Unidos, e contemporânea da Guerra Fria dos norte-americanos e seus aliados ocidentais, com a União Soviética. Mas o mesmo não aconteceu depois do fim da Guerra Fria e da Guerra do Golfo de 1991, quando não foi assinado nenhum novo grande acordo de paz entre vitoriosos e derrotados, e o mundo entrou num período de trinta anos de guerras quase contínuas, sobretudo no Oriente Médio, no Norte da África e na Ásia Central, envolvendo Estados Unidos, Rússia e todas as potências europeias da OTAN, que invadiram ou bombardearam pelo menos 11 países situados nas três regiões acima mencionadas. Um período que foi festejado, no início dos anos 90, como a vitória definitiva da ordem liberal, cosmopolita e pacífica, preconizada pelas “potências ocidentais”, mas que se transformou num das épocas mais violentas e destrutivas da História moderna.
E agora de novo, já na terceira década do século XXI, depois da desastrosa retirada das tropas americanas e da OTAN, do Afeganistão e do Iraque, e do seu deslocamento para a região do Pacífico e do Oceano Índico, com o intuito de cercar e conter a China, os homens voltam se perguntar – como Einstein e Freud, na década de 30 do século passado – se é possível sonhar com uma paz duradoura entre as nações ou se a humanidade está apenas se preparando para uma nova sucessão de guerras entre suas grandes potências. Nesta hora, para não incorrer em expectativas e esperanças frustradas, como aconteceu nos anos 90, o melhor que se pode fazer, na ausência de alguma teoria que dê conta dessa sucessão infinita de “guerras” e de “pazes”, é recorrer à própria História e algumas de suas lições. Com este objetivo, destacaríamos quatro grandes ensinamentos do passado, que é melhor não voltar a esquecer:
O primeiro, é que o objetivo de todas as guerras nunca foi a “paz pela paz”; foi sempre a conquista de uma “vitória” que permitisse ao “ganhador” impor sua vontade aos derrotados, junto com seus valores, instituições e regras de comportamento a serem aceitas e obedecidas a partir da vitória consagrada pela assinatura dos “acordos” ou “tratados de paz” que passam a regular as relações entre vencedores e perdedores. Entretanto, o que a História também ensina é que a paz conquistada através da guerra e da submissão dos derrotados acaba se transformando – quase invariavelmente – no ponto de partida e motivo principal da nova guerra de “revanche” dos derrotados. Exatamente como previu o diplomata francês Abbé de Saint Pierre, na sua obra clássica de 1712, em que formulou pela primeira vez a tese4 que foi retomada e defendida por Hans Morghentau, sobre o “ressentimento dos derrotados” como causa principal das novas guerras.5 Os dois autores, compartilhando a convicção de que toda paz é sempre, e em última instância, apenas uma “trégua”, que pode ser mais ou menos longa, mas que não interrompe jamais a preparação da nova guerra, seja por parte dos derrotados, seja por parte dos vitoriosos.
O segundo é que a “paz” não é sinônimo de “ordem”, nem é uma condição necessária da “ordem”, mesmo quando a “ordem” seja uma condição necessária da “paz”. Haja vista o caso clássico da Paz de Westfália, que definiu as bases de uma “ordem europeia” cujo árbitro, em última instância, foi sempre a própria guerra, ou melhor, a capacidade de uns maior do que a de outros de fazer guerra. E agora de novo, nos últimos trinta anos, depois da vitória dos Estados Unidos na Guerra Fria e na Guerra do Golfo, quando conquistaram o comando unipolar do mundo, com condições excepcionais de exercício de seu poder global, sem nenhum tipo de contestação. O que se assistiu na prática, como já vimos, foi uma nova ordem mundial mantida através do exercício da guerra contínua, ou de uma “guerra sem fim”, como chamaram os próprios norte- americanos. Isso confirma a ideia de que toda “ordem internacional” requer hierarquias, normas e instituições, árbitros e protocolos de punição, mas deixa claro ao mesmo tempo que quem estabelece essas normas e hierarquias, em última instância, são as próprias potências dominantes através de suas guerras.
O terceiro, é que o poder precisa ser exercido de forma permanente, para que seja reconhecido e obedecido. Por isso, no sistema interestatal criado pelos europeus, as “potências dominantes” de cada época necessitam estar em permanente preparação para a guerra, para poder exercer e preservar seu próprio poder. No plano internacional, como diria Maquiavel, o poder precisa ser temido mais do que amado, e ele é temido pela sua capacidade de destruição, muito mais do que por sua capacidade de construção ou reconstrução dos povos, países ou nações que tenham sido castigados e destruídos por sua “desobediência”, com relação à vontade dos “poderosos”.
Além disso, o poder das grandes potências precisa expandir-se para que elas possam manter – pelo menos – a posição que já possuem. A própria lógica dessa “expansão contínua” acaba impedindo que as potências dominantes aceitem o status quo que elas próprias instalaram através de suas vitórias. Com este objetivo, inclusive, as “grandes potências” são obrigadas, muitas vezes, a destruir as “regras” e “instituições” que elas mesmas criaram, sempre e quando tais regras e instituições ameacem sua necessidade e seu processo de expansão. Foi sempre assim, mas essa tendência se agravou nos últimos trinta anos, após 1991, quando os Estados Unidos se viram na condição de detentores exclusivos do poder global dentro do sistema internacional. Isso corrobora nossa tese de que o hegemon é o principal desestabilizador do sistema internacional que ele lidera, pelo simples motivo que ele precisa mudar o próprio sistema para poder manter sua preeminência ou supremacia. Um fenômeno que parece, à primeira vista, surpreendente e contraditório, mas que se repete através da História, e que nós mesmos apelidamos num outro texto de “paradoxo do hiperpoder”.6
E o quarto, finalmente, é que apesar da permanência das guerras, a “busca da paz” acabou se consolidando, nos últimos séculos, como uma utopia cada vez mais universal, e de quase todos os povos do mundo. E que esta utopia adquiriu uma particular dramaticidade depois da invenção e utilização das armas atômicas em Hiroshima e Nagasaki, anunciando a possibilidade de autodestruição do próprio universo do Homo sapiens. A partir desse momento, como previu Freud, é possível que este “desejo da paz” tenha adquirido uma dimensão ainda mais instintiva e quase biológica de preservação e defesa da espécie humana, contra o seu próprio instinto ou “pulsão de morte”. E neste sentido se pode dizer que a “paz” acabou se transformando na maior das utopias humanas. Ao mesmo tempo, é necessário reconhecer que apesar de sua destruição, as guerras do passado funcionaram muitas vezes, como já vimos, como instrumento consciente ou inconsciente de criação da chamada “moral internacional” que foi sendo tecida pelos “acordos” e “tratados de paz”, impostos pelos “vitoriosos” e depois negados ou reformados pelos antigos “derrotados”, numa sucessão contínua de novas guerras, novas “pazes” e novas “conquistas éticas”.
Essa relação dialética e necessária entre a guerra e a paz sempre foi muito difícil de compreender e de aceitar, assim como tão ou mais difícil é entender e aceitar a existência de uma pulsão de morte ao lado da própria libido humana. Mas a verdade é que na História, como na conjuntura atual do sistema internacional, guerra e paz são inseparáveis e atuam de forma conjunta, como fontes energéticas de um mesmo processo contraditório de busca e construção de uma ordem ética universal que vai sendo tecida aos poucos, mas que está situada sempre mais à frente, como uma utopia ou grande esperança da espécie humana.
José Luís Fiori Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Economia política Internacional, PEPI; e do Núcleo de Bioética e Ética Aplicada, NUBEIA; coordenador do GP da UFRJ/CNPq “O poder global e a geopolítica do Capitalismo”; coordenador adjunto do Laboratório de “Ética e Poder Global”; pesquisador do Instituto de Estudos Estratégicos do Petróleo, Gás e Biocombustíveis, INEEP. Publicou O Poder global e a nova geopolítica das nações, 2007, e História, estratégia e desenvolvimento, 2014, pela Editora Boitempo; Sobre a Guerra, 2018, e A Síndrome de Babel, 2020, pela Editora Vozes.
Rio de Janeiro, 13 de outubro 2021*Este artigo antecipa ideias e algumas passagens de um novo livro de: Fiori, J. L. (Org.). Sobre a Paz. Editora Vozes, Petrópolis, 2021, que se encontra no prelo e deve chegar às livrarias no mês de dezembro.
1 Freud (1969, p. 205 e 207c).
2 Freud (1969, p. 217).
3 Freud (p. 218, 219 e 220).
4 Saint-Pierre, Abbé de. Projeto para tornar perpétua a paz na Europa. Editora UNB, São Paulo, 2003, p. 35.
5 Morghentau, H. Politics among Nations. The struggle for power and peace. Boston: Mc Graw Hill, 1993, p. 65-66.
6 “O grande problema teórico está na descoberta de que as principais crises do sistema mundial foram sempre provocadas pelo próprio poder hegemônico que deveria ser o seu grande pacificador e estabilizador” (Fiori, J. L. Formação, expansão e limites do poder global. In: [Org.]. O Poder Americano. Petrópolis: Editora Vozes, 2004, p. 15). Recentemente, o cientista político norte-americano Michael Beckley chegou a uma conclusão semelhante no seu artigo “Rogue Superpower. Why this could be an illiberal American Century”, in Foreign Affairs, nov-dez. 2020 (www.foreignaffairs.com/print/node/1126558).
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