Como criar, em meio ao caos, uma alternativa à política da morte do governo Bolsonaro. O que um grupo de referência, formado por pesquisadores, gestores e ativistas, pode fazer em relação a vacinas, lockdowns e auxílio emergencial
Por Antonio Martins
O Brasil mergulhou num túnel de horror, no momento sem saída visível. Embora tenebroso, o recorde no número diário de mortes (2798), atingido ontem, não é a pior notícia. O sistema sanitário e hospitalares vive “o maior colapso da História”, como atestou a Fiocruz. Em cidades como a rica Porto Alegre, centenas de pessoas morrem sem assistência, sufocadas em casa. Em poucos dias, o mesmo ocorrerá em todo o país, se nada for feito. Também há indícios de que a explosão de casos é muito mais sentida nas periferias, com o número de atendimentos, em certas unidades do SUS, crescendo de modo vertiginoso esta semana. A taxa de mortalidade por covid no Brasil (9,5 por milhão) foi, na terça-feira, 8,6 vezes maior que a média mundial. Porém, ao contrário do que se deu em todas as nações que viveram antes tragédias parecidas, o país vive uma condição única: aqui não há nenhuma resposta coordenada por parte do governo. Ao contrário: recém-indicado, o novo ministro da Saúde prometeu ontem “dar continuidade” às (não-)políticas que produziram o caos.
Felizmente outras notícias mostram que há espaço para ações ousadas. O índice de apoio popular a Bolsonaro voltou a seu índice mais baixo. Agora, 44% da população consideram o governo “péssimo” ou “ruim”, contra apenas 24% que o julgam “bom” ou “ótimo”; e 54% condenam sua “gestão” da pandemia. O próprio “Centrão”, incomodado com desgaste acelerado, dá sinais de que pode abandonar a fidelidade ao Planalto. É hora de considerar a sério, e com urgência máxima, uma proposta feita há semanas – e repetida com insistência – pelo neurocientista Miguel Nicolelis. Ele sugere formar uma Comissão de Salvação Nacional, encarregada de articular uma resposta imediata à pandemia.
Os meios para compor tal comissão serão tratados adiante. Ao contrário do que desejaria Nicolelis, ela não pode, no momento, ter poder de Estado. O Palácio do Planalto está tomado por negacionistas, que agem como uma tropa estrangeira de ocupação. Mas, em face do desgaste acelerado do governo, a comissão pode ser referência clara a todos os interessados em reagir à política da morte: governadores e prefeitos; secretários, gestores e conselheiros do SUS (cujo vínculo é principalmente municipal); profissionais de Saúde e a população em geral. Ela também pode,graças a decisões do STF que deram poder a Estados e Municípios, orientar ações que estabeleçam, em diversas partes do país, políticas de ruptura com as do governo federal. Algumas destas ações são: a) Lockdowns estaduais e municipais efetivos; b) Auxílio Emergencial, Cupons de Crise e apoio às Redes de Assistência; c) Garantia de vacinas para todos até 7 de setembro.
Lockdowns estaduais e municipais efetivos: É possível obter, em ritmo muito mais rápido que o atual, vacinas para todos os brasileiros. Mas enquanto este momento não chega, será preciso recorrer ao que está à mão: trancamento das cidades e estados. É medida de eficácia comprovada, capaz de salvar milhares de vidas. Foi adotada em todos os países que combateram com sucesso a pandemia – da China, ainda em 2020, a Portugal e Israel, este ano. Mesmo parcial, já produz resultados importantes em municípios brasileiros que a adotaram há pouco, como Araraquara-SP.
Porém, para fazer recuar de modo expressivo as contaminações e mortes, precisa incluir restrições muito mais amplas. Fechamento de todas as atividades econômicas não essenciais, inclusive a indústria. Suspensão do transporte coletivo. Entrada controlada nas farmácias e supermercados. Em alguns casos, fechamento de aeroportos, rodoviárias e estradas.
A Comissão de Salvação pode propor protocolos para lockdowns eficazes; orientar autoridades dispostas a adotá-los; dar repercussão a estas iniciativas; recolher os resultados, interpretá-los, aprender com sua experiência, reelaborá-la. Em pouco tempo, pode tornar visível, e permitir que se difunda, uma alternativa penosa – mas de sucesso comprovado contra a tragédia. Estes resultados tornarão ridícula e insustentável, em pouco tempo, a alegação bolsonarista segundo a qual é preciso proteger a economia.
Auxílio Emergencial e Cupons de Crise: O governo Bolsonaro e o Centrão bloquearam, por enquanto, a volta dos R$ 600. O auxílio foi limitado a míseros R$ 150 para a maioria dos beneficiários e o número destes foi reduzido em um quarto. Nos próximos dias, ações no STF, propostas por organizações sociais, questionarão estas decisões – e é provável que repercutam. Em meio à crise, não será impossível pressionar parte das próprias bancadas governistas a mudar de posição. A decretação de estado de calamidade é um caminho para fazê-lo.
Uma Comissão de Salvação Nacional pode coordenar esta pressão. Ela o fará se demonstrar que não há lockdown possível sem Auxílio Emergencial, já que as maiorias são atiradas, para subsistir, às ruas e ao vírus. Pouquíssimo esforço de luta política e de formação de opinião pública foi feito, até o momento, em favor da volta dos R$ 600. É preciso recuperar o tempo perdido.
E é possível também cogitar essas medidas nos planos estadual e municipal. Governadores e prefeitos não podem emitir moeda nacional, ao contrário do governo federal. Não são capazes, portanto, de pagar auxílios emergenciais relevantes, exceto se cortarem serviços públicos e salários do funcionalismo. Mas talvez possam, a partir de experiências históricas, criar alternativas provisórias. Vale estudar, a este respeito, os cupons de guerra emitidos pela Inglaterra para regular a distribuição de alimentos e outros produtos durante o cerco e bombardeio do país pelos nazistas. Ou, então, uma experiência mais recente da Argentina. Em dezembro de 2001, quando a crise cambial impediu a emissão de pesos pelo Banco Central, a província de Buenos Aires viu-se obrigada a pagar seus servidores com bônus, lançadosem caráter de emergência. Como a falta de moeda nacional paralisava a economia, estes bônus passaram a ser aceitos pelos agentes econômicos – comércio, serviços, indústria. Rapidamente, converteram-se em moeda circulante e, mais tarde, em embrião de nova moeda nacional.
Saiba mais em: https://outraspalavras.net/crise-brasileira/indispensavel-comissao-nicolelis/
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