As lições de China e EUA para a política econômica brasileira
Por Fernando Nogueira da Costa
Nesta segunda parte, serão analisadas as políticas chinesas que transformaram o cenário mundial. A relevância de se conhecer os passos chineses torna-se evidente na afirmação do historiador Niall Ferguson, que mostra um país com um décimo da área do globo e um quarto da população, e produz um terço do bens criados globalmente, sendo responsável por metade do crescimento do PIB global.
Inspirar os brasileiros progressistas é a meta do trabalho “Plano Biden, estudo para debate”, realizado pelo professor Fernando Nogueira da Costa, do Instituto de Economia da UNICAMP, que Carta Maior publicará em cinco partes:
1. Introdução
2. Socialismo de Mercado Chinês
2. Capitalismo de Estado Norte-Americano
3. Segunda Guerra Fria: Comercial e Tecnológica
4. Fundamentos Teóricos do Plano Biden: A Posteriori
Plano Biden, estudo para debate
Socialismo de Mercado Chinês
Socialismo de Mercado refere-se a um sistema econômico onde uma parte dos meios de produção é de propriedade pública, mas ele é operado como uma economia de mercado sob planejamento estatal. Os lucros gerados por empresas predominantemente estatais são usados não para PLR (Participação nos Lucros e Resultados) de seus empregados ou distribuir dividendos para acionistas minoritários, mas sim como capitalização para alavancagem de financiamento público de infraestrutura para toda a sociedade.
Teoricamente, a diferença fundamental entre o Socialismo de Mercado chinês e o Socialismo de Planejamento Central da antiga URSS é, no primeiro, a preservação de mercado para estabelecer preços relativos como forma de alocação de capital em lugar de uma determinação tecno-burocrática. Essa coordenação mercantil entre os agentes econômicos atua de maneira complementar (e não antagônica) ao planejamento indicativo do Estado.
O Socialismo de Mercado distingue-se do Modelo de Economias Mistas, porque não adota a autorregulação pelo mercado. Por isso, contrasta com as políticas socialdemocratas implementadas em Capitalismo de Estado. Enquanto a Socialdemocracia visa alcançar uma maior igualdade através de impostos, subsídios e projetos de assistência social, o Socialismo de Mercado faz isso por meio de mudanças nos padrões de propriedade e gestão empresarial com vistas ao bem comum da sociedade.
A China tem uma economia de mercado, embora seja regulada pelo Estado. A regulação, a orientação e a iniciativa estatal se sobrepõe à livre-iniciativa privada com um planejamento indicativo. As iniciativas particulares, ao utilizarem as informações adequadas, combinam o seu interesse específico com a lógica sistêmica do processo interativo.
O processo da “reforma e abertura” da China começou sob liderança de Deng Xiaoping entre 1978 e 1992. No fim da década de 1970, a carência de reservas internacionais era um problema de todos os países emergentes não produtores de petróleo. Era o principal obstáculo impeditivo da China de decolar economicamente.
Sem um crescimento significativo das exportações, ela não podia acumular o mínimo necessário em reservas para fixar uma taxa de câmbio competitiva. A produção de OEM (Original Equipment Manufacturer, ou “Fabricante Original do Equipamento”), nas regiões costeiras do sudeste da China foi decisivo para superar aquele círculo vicioso.
As empresas chinesas de OEM conseguiam importar e processar peças e componentes, sendo terceirizadas por corporações estrangeiras. Esses produtos finais, com contribuição significativa das empresas chinesas para o valor adicionado, eram então vendidos nos mercados internacionais.
O negócio do processamento permitiu à China alavancar sua vantagem comparativa com a mão de obra qualificada abundante e barata. Os chineses constituíram o maior grupo de estudantes estrangeiros no ensino universitário americano. Alcançou 369.548 no ano de 2018, quase quadruplicando em relação a dez anos antes. Gradualmente, um ciclo de “feedback” – da importação de produtos intermediários ao processamento de exportações – foi estabelecido.
Os ciclos de feedback são interconexões. Os de reforço fazem o sistema se mover e os de balanceamento o impedem de explodir ou implodir. Daí há a necessidade de regulação.
A cada rodada de produção para exportação, as empresas chinesas conseguiam acumular mais reservas internacionais. Estas permitiam, via desvalorização cambial, baratear a importação de mais produtos intermediários para processamento e exportação.
Através desse ciclo virtuoso de importação-exportação, a China atraiu grandes entradas de capital com a política preferencial para os investimentos diretos estrangeiros com transferência de tecnologia. A expressão Grande Circulação Internacional descrevia a estratégia chinesa de desenvolvimento liderado pelas exportações.
Em 1981, as exportações e importações chinesas somavam apenas US$ 22,5 bilhões e US$ 21,7 bilhões, respectivamente. Em 2013, o fluxo comercial da China alcançou quase US$ 4,2 trilhões (10 vezes maior), fazendo do país o maior comerciante global. Nessas três décadas, o PIB da China passou do 17o. para o 2o. maior do mundo.
Quando uma empresa faz uma parte ou subsistema utilizado no produto final de outra empresa elas são integradas. Ao “terceirizar a fabricação” para a China, as corporações norte-americanas se aproveitaram do baixíssimo custo da mão de obra chinesa.
Em contrapartida à elevação das reservas cambiais chinesas, ao vender trilhões de dólares em títulos financeiros ao Banco da China, os Estados Unidos conseguiram valorizar o dólar, importar barato, ter baixa inflação e usufruir de taxa de juros significativamente mais baixa. Teriam custo de oportunidade caso não houvesse essa demanda chinesa por seus títulos de dívida pública.
Niall Ferguson batizou este “país dual” (complementar) de “Chimérica”: China mais América. Possui pouco mais de um décimo da superfície da Terra, um quarto de sua população, um terço de sua produção econômica e mais da metade em elevação do PIB global.
Em 2000, os Estados Unidos respondiam por 26,6% e a China por 6,6% do total do valor adicionado gerado pela indústria mundial. Em 2009, os números modificaram-se para 18,9% e 15,6%, respectivamente, ou seja, os dois países em conjunto redistribuíram a participação somada (de 33,2% para 34,5%). Demonstra a extensão com a qual se deu a transferência de atividade industrial dos Estados Unidos para a China.
O sucesso da estratégia da Grande Circulação Internacional provocou respostas protecionistas, elevação dos preços das importações chinesas e déficits no balanço de capital. Os ativos externos líquidos da China superam US$ 2 trilhões, mas ela sofre déficits com fluxos de saída de capital superiores à entrada de investimentos externos.
O 11o Plano Quinquenal da China, em 2006, indicou: “o crescimento da China deverá ser baseado na demanda doméstica, em especial, a demanda do consumo. Os esforços para o crescimento econômico deverão mudar do crescimento dos investimentos e exportações para o crescimento equilibrado de consumo e investimentos, além do crescimento equilibrado da demanda doméstica e da demanda externa”.
As relações do fluxo de comércio (exportação mais importação) sobre o PIB (65%) e exportações sobre o PIB (36%) tinham atingido o pico, em 2006. Entre 2008 e 2018, as exportações líquidas (exportação menos importação), enquanto parcela do PIB chinês, caíram de 10% para 1%. Desde a crise mundial de 2009, sua contribuição para o crescimento do PIB chinês tem sido negativa.
Dada essa tendência, a China adotou um novo conceito: Dupla Circulação. Ela não mais “virará as costas para o resto do mundo”. Reconhece seu erro no passado de autossuficiência ou soberba. Não pretende jamais o fechamento ao comércio externo.
O governo central da China planeja “aproveitar ao máximo as vantagens do mercado supergrande do país e o potencial da demanda doméstica para estabelecer um novo padrão de desenvolvimento com duplas circulações doméstica e internacional complementares uma à outra”. Buscará dobrar a ligação do crescimento econômico com a demanda do mercado interno e apoiar a inovação tecnológica, para garantir uma posição sólida nas cadeias produtivas de valor globais.
A China deve prestar bastante atenção ao problema dos índices de alta alavancagem, mas a vulnerabilidade financeira do país foi exagerada por analistas externos. Uma economia com crescimento alto e população muito poupadora, além de enormes ativos estatais à sua disposição e dívida externa limitada, é capaz de enfrentar uma crise financeira sistêmica, resultante de alto grau de alavancagem financeira.
Em vez de não fazer mais dívidas, para diminuir os índices de alavancagem, a política macroeconômica da China busca impulsionar o crescimento da renda, alinhado ao seu índice de crescimento potencial. Quando os fluxos de rendimentos superam os encargos ou serviços da dívida não há fragilidade financeira.
O investimento em imóveis representou a maior parcela do crescimento dos investimentos em 2020, mas é improvável isso se repetir em 2021. Também é incerto o investimento na capacidade produtiva se tornar o pilar do crescimento dos investimentos.
Logo, para compensar a insuficiência de demanda agregada, dada a retração do consumo, o governo chinês não tem outra escolha a não ser usar uma política expansionista fiscal e monetária para apoiar investimentos em infraestrutura. Em 2020, este investimento cresceu apenas 0,9%, comparado a mais de 40% em 2009.
Só a política expansionista fiscal com lançamento de títulos de dívida pública e recompra, para o afrouxamento monetário, em curto prazo, não será suficiente. O planejamento deverá implementar várias reformas estruturais, envolvendo todos os atores econômicos, em especial os governos locais, para terem os incentivos certos para reagir e investir.
A abordagem estruturalista planeja um todo composto por partes inter-relacionadas ou interativas. O todo resultante se torna cada vez maior em vez de ser a simples soma das partes. Os sistemas complexos não são a mera justaposição dessas partes, mas sim configurações dinâmicas, geradas pelas interconexões móveis. Em lugar de estagnação, emerge variações ao longo do tempo, ou seja, dinamismo!
Veja em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Economia-Politica/Alternativas-para-o-Brasil-2-5-/7/50487
Comente aqui