Clipping

América Latina e a geopolítica da sustentabilidade

O desmatamento avança na Amazônia e as estatais petroleiras, que poderiam liderar uma transição energética, restringem-se à produção fóssil. Futuro requererá política ambiental robusta e apostar em novas tecnologias sustentáveis

Por Ricardo Abramovay

Afirmar que a vitória sobre a crise climática depende de vontade política e de coragem para enfrentar poderosos interesses é exprimir apenas meia verdade. Não há dúvida, como mostra o consagrado livro de Naomi Oreskes e Erik Conway, Merchants of Doubt (Bloomsbury Publishing PLC ), que os gigantes fósseis não pouparam dinheiro no financiamento do negacionismo climático, mesmo quando seus relatórios internos apontavam no sentido contrário ao que divulgavam ao grande público.

É inegável também que as inovações tecnológicas em energias renováveis modernas (entre as quais os especialistas não incluem a hidroeletricidade) vêm permitindo espetacular aumento da oferta e redução de preços das alternativas aos fósseis. E tanto os movimentos sociais (do Extinction Rebellion à mobilização de jovens da qual Greta Thumberg é a expressão emblemática) quanto segmentos expressivos do mundo dos negócios estão pressionando governos e organizações multilaterais para que aprofundem seus compromissos de reduzir drasticamente as emissões. A volta dos EUA ao Acordo de Paris, a adoção do Green New Deal (que era, ao início de 2019, uma proposta da esquerda do Partido Democrata), o Green Deal Europeu, o compromisso do Japão e da Índia de interromper a produção de automóveis com motor a combustão interna até 2030 e a liderança chinesa em solar e eólica são também fundamentais.

Mas seria um equívoco imaginar que esta convergência tão poderosa (e da qual a América Latina está quase inteiramente na contracorrente) garante que a conquista das ambiciosas metas do Acordo de Paris esteja assegurada. Da mesma forma, não é correto imaginar que as bases materiais e socioculturais para as transformações necessárias a uma economia descarbonizada já estejam presentes.

Embora o alerta do recém-lançado livro de Michal Mann – The new climate war (PublicAffairs) – contra o catastrofismo climático faça todo sentido, ele mesmo postula que “é apropriado criticar os que subestimam a ameaça”. O Acordo de Paris é uma conquista fundamental, bem como a adoção por parte da maior parte dos grandes emissores globais, de compromissos ambiciosos. Mas alcançar os objetivos desenhados nos planos que serão levados para a próxima conferência climática (a COP 26, a ser realizada em Glasgow, na Escócia, ao final deste ano) não será nada fácil e a magnitude não só dos investimentos, mas das transformações sociais e da vida cotidiana necessárias para atingir estas metas não pode ser subestimada.

Ao mesmo tempo é importante constatar o abismo entre os caminhos mais construtivos que emergem globalmente na difícil e incerta luta contra a crise climática e a verdadeira complacência da América Latina (não só hoje, mas também, em grande medida, durante a primeira década do século XXI, quando predominavam na região governos progressistas) com relação a este que é o maior desafio coletivo já enfrentado pela espécie humana.

De Copenhague a Paris

O Acordo de Paris de 2015 ocorre apenas seis anos após a frustrada conferência climática de Copenhague, quando Índia e China argumentavam que optar pela rápida descarbonização de suas economias significava impedir o amplo acesso de suas populações à energia elétrica, obtida basicamente a partir do carvão. Os dois países à época enfatizavam seu direito a emitir gases de efeito estufa e, assim, a ocupar o “espaço carbono” remanescente até que a meta de dois graus na elevação da temperatura global média fosse atingida. E este direito apoiava-se na constatação de que eles ainda dependiam do carvão e que não havia fontes alternativas capazes de competir com este combustível para ampliar o acesso de suas populações à energia elétrica. É interessante examinar hoje os argumentos dos pesquisadores indianos e chineses nesta direção.

Em 2015 o cenário era outro e China e Índia exerceram importante papel de liderança no Acordo de Paris. Mas apesar deste acordo para a descarbonização vindo dos maiores emissores globais, é importante mencionar dois obstáculos (evidentemente não intransponíveis) para que as ambiciosas metas a serem consolidadas em Glasgow sejam alcançadas.

A duradoura liderança dos fósseis

Quando foi realizada a primeira Conferência Climática das Nações Unidas em Berlim, em 1995 (agora em Glasgow, acontecerá a 26ª), os combustíveis fósseis contribuíam com nada menos que 86% do consumo global de energia primária. Desde então, apesar das inovações que permitiram baratear e ampliar o acesso às renováveis modernas e do início da eletrificação do transporte individual, esta proporção só caiu dois pontos percentuais, como mostra o importante artigo de Helen Thompson.

É verdade, como previam vários analistas desde os anos 1950, que as formas convencionais de extração de petróleo atingiram agora seu pico e que os poços até aqui mais férteis mostram inequívocos sinais de esgotamento. Este esgotamento foi mais que compensado, porém pela descoberta, ao início do século XXI de novas técnicas de exploração de gás e de petróleo, que revolucionaram a geopolítica global da energia e por meio das quais os Estados Unidos conquistaram sua tão almejada independência energética, tornando-se, ao lado da Rússia e da Arábia Saudita num dos maiores exportadores mundiais de combustíveis fósseis. Trata-se do “fracking” (fraturamento hidráulico), técnica de perfuração profunda do solo, pela inserção de tubos que atravessam o lençol freático e conseguem extrair hidrocarbonetos das rochas. Os protestos que a poluição e as emissões associadas a estas técnicas suscitaram não foram suficientes para sequer atenuar o entusiasmo do próprio governo Obama com seu sucesso.

O petróleo obtido por meio destas novas técnicas espalha-se por quase todo o território norte-americano e sua exploração ganha imensa legitimidade social por representar a conquista de uma ambição histórica norte-americana decisiva, que é sua independência energética. A análise do recente livro de Daniel Yergin – The new map (Penguin Press) – é muito importante. Ele mostra que foi fundamentalmente o gás obtido com estas novas técnicas que permitiu aos Estados Unidos reduzirem sua dependência do carvão que, em 2007, respondia por metade da geração de energia elétrica do país, caindo, em 2019, para 24%. Este, segundo Yergin, foi o principal determinante do declínio nas emissões norte-americanas de gases de efeito estufa, apesar de seu crescimento econômico vigoroso. Em outras palavras, o sucesso dos EUA em reduzir suas emissões ainda se deve, basicamente, ao avanço de novas modalidades de combustíveis fósseis, muito mais que a avanços na presença das renováveis modernas em sua matriz energética e de transportes.

Há outros dois fatores que tornam a situação ainda mais preocupante. O primeiro é o escasso investimento das empresas petrolíferas em energias renováveis modernas. Segundo a Agência Internacional de Energia, nada menos que 99% dos investimentos das empresas petrolíferas são feitas em carteiras que correspondem a suas atividades econômicas predominantes. E estes investimentos em fósseis são hoje duas vezes superiores ao cenário que a Agência Internacional de Energia chama de “desenvolvimento sustentável”. Enquanto as empresas petrolíferas pretendem investir anualmente US$ 630 bilhões anuais no período 2021/25, ampliando este total para quase US$ 800 bilhões entre 2036 e 2040, o cenário de “desenvolvimento sustentável” consistiria em partir de investimentos pouco superiores a US$ 500 bilhões entre 2021 e 2025 reduzindo este montante para pouco mais de US$ 350 bilhões entre 2036 e 2040. E é importante notar que esta insistência nos fósseis é maior nas empresas petrolíferas estatais do que nas companhias privadas.

Saiba mais em: https://outraspalavras.net/descolonizacoes/america-latina-e-a-geopolitica-dasustentabilidade/

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