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As milícias crescem velozmente por dentro do Estado

A prisão dos dois acusados de estarem envolvidos no assassinato da vereadora Marielle Franco e seu motorista, Anderson Gomes, ”é a exceção de uma regra”, diz o sociólogo José Cláudio Alves em entrevista

Por Patricia Facchin / Créditos da foto: Fabritzia Piasenski

prisão dos dois acusados de estarem envolvidos no assassinato da vereadora Marielle Franco e seu motorista, Anderson Gomes, “é a exceção de uma regra”, diz o sociólogo José Cláudio Alves à IHU On-Line. “A regra é que membros de milícias são intocáveis, seus negócios se ampliam e eles têm dimensões crescentes desse poder e agora expressam isso a partir do assassinato de pessoas que ocupam cargos no âmbito político e que são contrárias aos seus interesses”, menciona.

Na entrevista a seguir, concedida por WhatsApp, Alves frisa que “a estrutura política e econômica das milícias no Rio de Janeiro hoje começa a ganhar vários outros contornos, que não eram perceptíveis e que agora se manifestam”. Entre eles, o sociólogo cita a atuação da milícia na construção do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro – Comperj em Itaboraí. “Várias empresas terceirizadas estão atuando na construção da obra e a milícia está controlando quem vai trabalhar nessas empresas. Isso já é um passo à frente em relação à atuação das milícias anteriormente: a milícia detecta onde o capital está se manifestando — nesse caso é um capital público em parceria com empresas privadas — e, ao ficar a par da situação, manipula essa informação e passa a controlar de forma violenta o acesso a esse emprego, cobrando taxas e valores das pessoas que querem trabalhar nessas empresas. Assim esses empregados terão que repassar parte dos seus salários para os milicianos. Essa é uma novidade nesse campo no Rio de Janeiro”, informa.

Outra novidade no Rio de Janeiro é a atuação da milícia marinha, que, segundo Alves, atua a partir de informações de que o Ministério da Pesca e Aquicultura não está fornecendo licenças para pescadores. “Essa milícia aborda os pescadores no mar, quando eles estão pescando, exige a licença que o pescador não tem e passa a exigir valores semanais para permitir que o pescador possa continuar pescando. Então, surgiu na costa do Rio de Janeiro essa milícia marítima que passa a controlar os pescadores”, denuncia.

José Cláudio Alves é graduado em Estudos Sociais pela Fundação Educacional de Brusque. É mestre em Sociologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio e doutor, na mesma área, pela Universidade de São Paulo – USP. É professor na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Que avaliação o senhor faz da investigação do assassinato de Marielle e Anderson Gomes, ao longo do último ano, que culminou com a prisão de dois suspeitos de estarem envolvidos com o crime?

José Cláudio Alves – A minha avaliação em relação às apurações e investigação da polícia no caso Marielle é que elas foram muito lentas. Essa demora acaba acarretando uma série de complicações para saber se, de fato, esses são os responsáveis. A princípio parece que os dois presos foram os responsáveis, mas a pergunta que fazemos é quantas pessoas estavam envolvidas nisso e quem são os mandantes envolvidos nesse crime. Muitas questões ficaram soltas e ao longo do tempo elas não foram investigadas nem apuradas, o que gera consequências, como a morosidade da investigação, a dificuldade de ela prosseguir, de averiguar quantos outros suspeitos poderiam ser identificados no processo mas não serão. Paira a dúvida sobre se de fato não haveria indícios mais contundentes e próximos a grupos políticos que hoje ocupam espaço no âmbito federal, se não haveria ligações mais profundas, mas que com a demora da investigação acabam sendo perdidas e apagadas.

Essa demora toda nos faz refletir, mas a prisão dos suspeitos é algo importante e acaba, de outro lado, amortecendo a busca de explicações, acaba sendo uma espécie de cala boca e subterfúgio, e também acaba sendo um alívio para esse sofrimento todo, mas não vejo o processo como algo conclusivo.

IHU On-Line – As notícias divulgadas na imprensa dizem que as investigações do caso Marielle chegaram até o chamado Escritório do Crime, um poderoso grupo miliciano de Rio das Pedras que atua sob encomenda. O senhor tem informações sobre esse grupo?

José Cláudio Alves – Não tenho detalhes sobre como o Escritório do Crime atua. Sei que Rio das Pedras é uma favela histórica, muito grande, de imigração de nordestinos, que está na área da zona Oeste do Rio de Janeiro, onde a milícia tem uma presença extremamente forte. Essa é uma das áreas mais antigas, que está na base da formação das milícias no Rio de Janeiro. As milícias dessa região têm uma forma muito peculiar de atuação no campo da venda de terrenos. Na zona Oeste existe a presença muito grande de um tipo de solo chamado turfa, que é um solo inadequado para a construção de casas porque é muito movediço e não permite a estrutura de alicerce das construções. Por conta disso, há um controle naquela região das áreas em que é possível construir, ou seja, há um limite e uma faixa específica para a compra de terrenos e construção de casas. Esse processo é controlado pela milícia, que tem informações privilegiadas, as quais são obtidas dentro do Estado, já que são os agentes do Estado que circulam nesse âmbito. Esse é um mercado que se expandiu muito naquela região, porque trata-se de uma área onde há muita procura por moradia, porque ela é vinculada a processos migratórios, principalmente de nordestinos.

Os comerciantes daquela região iniciaram o processo de financiamento das milícias para impedir que o tráfico de drogas acessasse aquela comunidade. Logo, aquela é uma área onde a atuação da milícia é muito consolidada e movimenta muitos recursos. A busca por um dos envolvidos no Escritório do CrimeAdriano de Nóbrega, revelou que a mãe e a esposa dele trabalharam como assessoras de Flávio Bolsonaroenquanto ele era deputado estadual no Rio de Janeiro. O próprio Flávio também fez várias comendas de homenagens à atuação de milicianos no estado do Rio de Janeiro. Então, há uma vinculação forte dessa milícia com a estrutura do poder político dos Bolsonaros. Tudo indica isso, haja vista a situação da esposa e da mãe do Adriano de Nóbrega, o qual parece ser uma das lideranças do Escritório do Crime.

Desde o início eu sabia que havia o “dedo da milícia” e a prática típica de execução primária de grupos de extermínio, e que isso levaria aos negócios e aos interesses econômicos de políticos que a milícia estabelece a partir daquela região, mas numa rede que é muito maior do que Rio das Pedras. Então, toda essa rede pode ter algum grau de envolvimento no assassinato de Marielle, na sua organização, na sua proteção e no seu financiamento. Demorou um ano para se dar um retorno muito pífio desse caso, que foi a prisão de duas pessoas. Essa é uma estrutura muito mais ampla e com muito mais relações, uma rede muito maior que deveria ser revelada e apresentada nesse quadro.

IHU On-Line – O governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, disse que os presos pela morte de Marielle e Anderson Gomes serão convidados a fazer delação premiada na nova fase da investigação, que quer chegar aos mandantes do crime. Nos últimos anos há uma série de debates jurídicos e políticos acerca da necessidade ou não da delação premiada na investigação de crimes. Como o senhor avalia esse tipo de medida para este caso específico para se chegar aos mandantes do crime?

José Cláudio Alves – Não tenho uma reflexão muito consolidada sobre o estatuto da delação premiada. O que me impressiona é que existe uma dimensão organizada do crime a partir do Estado e, portanto, parece que facilmente seria possível ter acesso ao que esses grupos fazem, como atuam de forma organizada dentro do Estado, mas o que se vê é que os que investigam e buscam a justiça estão numa ratoeira, como se tivessem que se esconder desses grupos. Ou seja, não se tem uma atuação clara, consistente e firme da conduta das investigações, e aí se buscam subterfúgios, como delações premiadas. Me impressiona muito o poder que esses grupos têm e a fragilidade da estrutura do judiciário frente a esse poder, a ponto de ele próprio se ver encurralado, em busca de delações premiadas para algo que é escancarado, que está nas ruas.

Alega-se que é preciso ter uma delação premiada para poder avançar na investigação e isso virou uma possibilidade. Se os efeitos disso fossem reais e trouxessem à baila toda essa rede e fizessem uma atuação em rede a ponto de dar um baque significativo nessa estrutura e restringi-la… mas até agora não vi nada disso acontecer. Pelo contrário, cada baque que essa estrutura sofre é pequeno, o que permite a sua rápida recomposição muito facilmente.

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