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Boaventura debate impasse nas eleições do Equador

Ultradireita e correísmo disputam o 2º turno. Setores indígenas e de esquerda tendem ao voto nulo. Sociólogo português questiona: seria correto, em nome da crítica ao “desenvolvimentismo”, permitir vitória de um banqueiro da Opus Dei?

Querida amiga, querido amigo: 

Agradeço-vos todo tempo que gastastes em conversar comigo durante as últimas semanas sobre o processo eleitoral em curso no vosso país. Como vos disse, eu fiquei perplexo perante toda a controvérsia internacional entre várias famílias de esquerda a respeito do vosso processo eleitoral ainda em curso. Para recapitular: parece ser uma astúcia da razão que o processo político do Equador, um país situado no centro do mundo como o nome indica, se tenha transformado nas últimas semanas no campo de uma feroz disputa entre intelectuais e ativistas de esquerda, oriundos não só do Equador como de outros países da América Latina e da Europa, dos EUA, da África do Sul e da Índia. O motivo da disputa é o processo das eleições presidenciais em curso. No primeiro turno ganhou, sem maioria absoluta Andrés Arauz, que representa um certo regresso ao correísmo (designação dada à governação de Rafael Correa entre 2007 e 2017); em segundo lugar (depois de algumas recontagens) ficou Guillermo Lasso, representante da direita oligárquica. Em terceiro lugar, ficou Yaku Perez, indígena, candidato do movimento Pachakutik. O conflito centrou-se inicialmente nas possíveis fraudes eleitorais que teriam tirado o segundo lugar a Perez. Este conflito jurídico-eleitoral era, de fato, uma metamorfose do conflito que se travara antes para impedir que Andrés Arauz fosse candidato devido às suas ligações a Rafael Correa. Aliás é bom lembrar que estratégias típicas do lawfare tinham impedido Correa de se candidatar como vice-presidente de Arauz. Resolvido (aparentemente) este conflito, a disputa orientou-se para a decisão sobre que candidato apoiar no segundo turno. A controvérsia ultrapassou repentinamente as fronteiras do país e assumiu um extremismo de insultos e contra-insultos, pedidos de censura e contra-censura, que me surpreendeu e deixou perplexo. Foi por isso que vos contatei ao longo destas semanas. Afinal, uma vez mais e como sempre no Equador, os povos indígenas eram protagonistas das mudanças políticas, mas as vozes do debate, tanto no Equador como fora, não eram indígenas na sua esmagadora maioria. Do movimento indígena apenas se sabia que estava dividido, uma vez que inicialmente Yaku Perez não tinha sido o candidato escolhido pelos povos e nacionalidades indígenas, mas sim pelo movimento Pachakutik. O Pachakutik nasceu como braço político da CONAIE (Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador), mas o seu percurso político posterior, sobretudo o seu alinhamento em anos recentes com o governo de direita neoliberal de Lenín Moreno, criou algumas tensões com o movimento indígena. O silêncio era particularmente intrigante no caso dos jovens líderes indígenas que aliás, no passado, tiveram algumas divergências com as lideranças indígenas e também com o governo, situação que eu acompanhei de perto, como sabeis. Quando em 15 de Agosto de 2014 presidi à Sala Especial para o Yasuni do Tribunal Ético dos Direitos da Natureza, presidido pela minha amiga Vandana Shiva, os melhores aliados do tribunal, além dos povos indígenas, fostes vós.

Foi por todas estas razões que decidi consultar-vos. Hoje escrevo-vos para vos dizer que cheguei à conclusão que não tenho condições para vos aconselhar sobre as melhores decisões concretas a tomar perante conflito em curso. Sei que vos desiludo; com toda a legitimidade podeis dizer que vos fiz perder o vosso precioso tempo. Por isso, quero explicar-vos as razões da minha decisão. As minhas razões têm a forma de perplexidades.

1. A democracia está primeiro? Uma das aprendizagens das esquerdas nas últimas décadas, tanto na América Latina como em outras regiões do mundo é que são as forças de esquerda quem defende convictamente a democracia liberal, mesmo reconhecendo todos os limites desta e sempre apostando em, a partir dela, radicalizar a democracia, isto é, em transformar relações de poder em relações de autoridade partilhada. A experiência diz-nos que a direita não serve a democracia, serve-se dela quando lhe convém e descarta-a quando não lhe convém. Recordo-me bem que, quando em 30 de setembro de 2010 as forças policiais tentaram um golpe de Estado contra Rafael Correa, o meu amigo Alberto Acosta passou pelo meu hotel e fomos a correr para a sede da CONAIE, onde passamos todo o dia. Nessa altura já havia queixas justas do movimento indígena contra Correa mas o objetivo, naquele momento, não era defender Correa, mas a democracia que ele representava.

Se isto é verdade, uma vez apurado que não houve fraude eleitoral nestas eleições de 2021, a disputa política deveria centrar-se nos programas políticos de cada candidato. Por que razão continua a discussão a incidir na integridade dos candidatos e não nos seus programas? É preciso ter presente que, em vários países do continente, a direita neoliberal, não tendo qualquer programa político para além das receitas neoliberais, tem vindo a jogar o argumento da moralidade contra os candidatos de esquerda, acusando-os de corrupção. Para além disso, convém recordar dois fatos perturbadores. Primeiro, tem estado em marcha no Equador uma autêntica lawfare (guerra jurídica) contra Rafael Correa por supostos crimes cometidos, o que parece não ter outro objetivo senão neutralizá-lo politicamente. Esta guerra procurou atingir o candidato que se reivindicava da herança de Correa, André Arauz. Semelhante neutralização política ocorreu antes contra Manuel Zelaya (Honduras) Cristina Kirchner (Argentina), Fernando Lugo (Paraguai), Lula da Silva (Brasil), Evo Morales (Bolívia). Em todos estes casos foi evidente a interferência do EUA. Deixa-me perplexo que muitos dos que têm assinado declarações contra o candidato Arauz também tivessem assinado declarações contra Evo Morales, e negado a existência de golpe de Estado na Bolívia, o que aconteceu também com o próprio Yaku Perez.

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