Por Flávio Aguiar / Créditos da foto: (Gulabuddin Amiri/AP)
Não dá para festejar a vitória dos Talibãs no Afeganistão. Só resta lamentar a trágica comédia de erros que foi a sucessão de intervenções norte-americanas naquele país, e a triste sorte de grande parte do seu povo, em particular das mulheres, que serão novamente comprimidas e reprimidas, junto com outros grupos sociais e etnias.
Etnias? Sim, porque uma das facetas da guerra interna no Afeganistão é étnica. A base social dos Talibãs é a etnia majoritária (44% da população) Pashtun, também presente no vizinho Paquistão (cerca de 15%). Além desta, o Afeganistão abriga seis outras etnias de presença numérica significativa, além de outras muito pequenas. A maior delas é a dos Tajiques, com 27%.
Foi entre os Pashtuns que nasceu o movimento Talibã, na década de 90 do século passado, durante a guerra civil que se seguiu ao fim da intervenção da União Soviética, que apoiava um governo comunista na região.
Os Talibãs constituem um movimento islâmico sunita tradicionalista, autoritário, misógino, homofóbico, formado por lideranças de idade mais madura e coortes de jovens belicosos e fanatizados. Têm armamentos que podem ser considerados “rústicos” diante dos sofisticados drones dos Estados Unidos e seus aliados, mas contam com grande conhecimento do terreno, muito melhor do que o dos invasores, sejam eles os soviéticos do século passado ou os norte-americanos deste.
Contam também com a ajuda da fronteira porosa com o vizinho Paquistão, sendo que os Pashtuns deste país são o povo dominante junto a ela. Isto ajuda entender a relativa mas conveniente liberdade que as lideranças do movimento Talibã tiveram em cruza-la de um lado para o outro, conforme as necessidades de cada momento de sua luta.
A atitude do governo paquistanês é ambígua. Junto com os norte-americanos apoiaram a luta dos mujahedins contra os soviéticos. Acolheram depois os Talibãs, devido à presença dos Pashtuns, até que os Estados Unidos decidiram atacá-los.
Pressionado, o governo de Islamabad declarou os Talibãs “terroristas”, como queria Washington, que começou a persegui-los depois do ataque às Torres Gêmeas em 11 de setembro de 2001. Ao mesmo tempo, fez vista grossa ao fato do que Osama Bin Laden se refugiara em seu território, na cidade de Abbotabbad, a cerca de 100 km. (via terrestre) ou 50 km (via aérea) da capital: é impossível que o ISI – o serviço secreto de inteligência do Paquistão – não soubesse disso. Foram feitas muitas denúncias e especulações a respeito.
Até o momento o governo de Islamabad nunca atacou com toda a força que poderia os Talibãs. Motivo: ele tem de administrar as tensões internas entre as etnias e correntes que coabitam no país, mal e mal unidas pelo fato de serem islâmicas e desunidas por séculos de rivalidade.
A atitude Washington, durante o governo de Bush Filho, mudou depois do ataque promovido pela Al-Qaïda (também financiada pelos EUA e pelos Sauditas contra os Soviéticos) em Nova Iorque e Washington, e diante da recusa dos Talibãs em entregá-lo.
Em 2001 o governo de Bush começou o ataque contra os Talibãs, já instalados no poder em Kabul, tendo derrotado o governo que sucedera os comunistas apoiados pela URSS. A invasão conseguiu derrotar os Talibãs, alijando-os do governo. Mas suas lideranças principais simplesmente refugiaram-se entre seus “compatriotas” do outro lado da fronteira do Paquistão. Guerra co-lateral: em 2003 os EUA e seus aliados invadiram o Iraque, derrubando seu antigo aliado (contra o Irã) Saddam Hussein, afundando o país numa crise sem fim.
Em 2011, durante o governo de Barack Obama, um comando norte-americano invadiu o Paquistão, a partir do Afeganistão, e matou Bin Laden em sua casa. Ambiguamente, algumas autoridades paquistanesas negaram que o governo tivesse conhecimento do esconderijo, enquanto outras afirmaram que foi o ISI que denunciou o paradeiro dele à CIA.
Entrementes a intervenção no Afeganistão continuava, sem chegar a lugar algum. Dois ou três trilhões de dólares depois, em 2018, Donald Trump, obcecado pela contabilidade das despesas, mudou a atitude em relação aos Talibãs e dispôs-se a abrir negociações com eles. Estas negociações simplesmente passaram por cima do governo de Kabul. A retirada das tropas norte-americanas começou e foi acelerada neste ano pelo governo de Joe Biden. No Afeganistão fala-se em “traição” dos Estados Unidos e seus aliados.
O fracasso da intervenção vem sendo descrito como “humilhante” para Washington. Comentaristas lembram a retirada de Saigon, consumada entre 1972 e 1975. Também neste caso o governo norte-americano passou por cima, nos momentos iniciais das negociações com o Vietnã do Norte, de seu aliado, o governo do Vietnã do Sul. Depois literalmente abandonou-o à própria sorte, consumada em 30 de abril de 1975 com a queda de Saigon. Outro evento vem à mente: a invasão/ocupação da Embaixada dos Estados Unidos em Teerã, entre 4 de novembro de 1979 e 20 de janeiro de 1981. Esta contribuiu para a derrota de Jimmy Carter na eleição presidencial subsequente. Acontecerá o mesmo agora com Joe Biden, transformado em bode expiatório deste longo rosário de erros dos norte-americanos?
O “caso alemão” começou com a invasão de 2001. O governo ,compartilhado entre Social-Democratas (o primeiro ministro era Gerhard Schröder, do SPD) e o Partido Verde (o ministro de Relações Exteriores era Joschka Fischer), autorizou, pela primeira vez desde o fim da Segunda Guerra, uma intervenção militar no estrangeiro, no caso, no Afeganistão, apoiando a ação norte-americana. Consta que os Verdes – tradicionalmente pacifistas – apoiaram o movimento em troca do apoio do SPD para pôr fim à produção de energia elétrica a partir de usinas nucleares na Alemanha.
Saiba mais em: https://www.cartamaior.com.br/?%2FEditoria%2FCartas-do-Mundo%2FCarta-de-Berlim-A-Alemanha-e-a-tragedia-no-Afeganistao%2F45%2F51354
Comente aqui