Clipping

Democracia e a educação como direito

Introdução do livro recém-lançado ”A demolição da construção democrática da educação no Brasil sombrio”

Por Marilena Chauí / Créditos da foto: (Reprodução/boycelik.com.tr/bit.ly/3xM7U3P)

“Sejamos realistas: peçamos o impossível” (Grafitti estudantil em 1968).

1.

Pesquisas do CPDOC e do ISER, realizadas em 2018, buscaram verificar o que a população brasileira entende por direitos do cidadão e quais os que são considerados por ela como os mais fundamentais. Os resultados foram alarmantes: 45% dos entrevistados não tinham ideia do que fosse um direito do cidadão e tendiam a identificar “direito” e “ o que é correto” ou “o que é certo”, dando uma interpretação moral para um conceito sócio-político; dos 55% restantes, que entendiam, mesmo que vagamente, o que é um direito do cidadão, praticamente todos colocaram a segurança pessoal como o primeiro dos direitos e apenas 11% consideraram a educação como um direito do cidadão; desses 11%, apenas 5% disseram que o direito à educação deve ser assegurado pelo Estado por meio da escola pública gratuita.

Curiosamente, porém, ao serem indagados sobre suas aspirações e desejos, 60% dos entrevistados colocaram a instrução, juntamente com o emprego, entre suas aspirações principais.

Na mesma época, uma outra pesquisa, desta vez circunscrita ao estado de São Paulo, feita pelo jornal O Estado de São Paulo, indagava a opinião da população sobre a escola pública de ensino fundamental. As respostas foram de dois tipos: os entrevistados pertencentes às classes populares afirmaram que a escola já havia sido melhor, mas que a violência, de um lado, e a aprovação automática dos alunos, de outro, haviam prejudicado a qualidade do ensino; por sua vez, os entrevistados pertencentes à classe média, que haviam ou perdido o emprego ou tido uma redução salarial, explicavam que os filhos sempre haviam frequentado escolas particulares e que somente pela força das circunstâncias adversas estavam sendo obrigados a cursar a escola pública e que isso era um verdadeiro castigo, uma humilhação e um infortúnio, pois a qualidade do ensino é péssima e tornará quase impossível a entrada numa faculdade.

As três pesquisas indicam que: poucos brasileiros compreendem que a educação é um direito; os que a compreendem assim, não atribuem ao Estado o dever de assegurar esse direito; o desejo de instrução é forte porque, frequentemente, vem associado à possibilidade de um emprego melhor; as classes populares lastimam a perda da qualidade do ensino nas escolas públicas; a classe média abomina a escola pública porque não oferece instrumentos para a competição pelo ensino universitário e, consequentemente, para a obtenção de empregos mais qualificados.

Se cruzarmos os dados dessas pesquisas, obteremos a seguinte interpretação: a educação não é percebida como um direito por três motivos principais: (1) porque a maioria da população ignora o que seja um direito do cidadão; (2) porque a educação não é encarada sob o prisma da formação e sim como instrumento para a entrada no mercado de trabalho; (3) a escola pública é desvalorizada porque não é um instrumento eficaz para a entrada nesse mercado.

Somos, assim, levados a duas indagações: em primeiro lugar, por que há desconhecimento do que sejam os direitos da cidadania e, entre eles, o direito à educação? Em segundo, por que a escola é imediatamente associada ao mercado?

Essas duas perguntas nos dirigem, de um lado, à necessidade de compreendermos o que é uma sociedade democrática e, de outro, à exigência de compreendermos os efeitos do neoliberalismo sobre a educação.

2.

Estamos acostumados a aceitar a definição liberal da democracia como regime da lei e da ordem para a garantia das liberdades individuais. Visto que o pensamento e a prática liberais identificam liberdade e competição, essa definição da democracia significa, em primeiro lugar, que a liberdade se reduz à competição econômica da chamada “livre iniciativa” e à competição política entre partidos que disputam eleições; em segundo, que há uma redução da lei à potência judiciária para limitar o poder político, defendendo a sociedade contra a tirania, pois a lei garante os governos escolhidos pela vontade da maioria; em terceiro, que há uma identificação entre a ordem e a potência dos poderes executivo e judiciário para conter os conflitos sociais, impedindo sua explicitação e desenvolvimento por meio da repressão; e, em quarto lugar, que, embora a democracia apareça justificada como “valor” ou como “bem”, é encarada, de fato, pelo critério da eficácia, medida, no plano legislativo, pela ação dos representantes, entendidos como políticos profissionais, e, no plano do poder executivo, pela atividade de uma elite de técnicos competentes aos quais cabe a direção do Estado.

A democracia é, assim, reduzida a um regime político eficaz, baseado na ideia de cidadania organizada em partidos políticos, e se manifesta no processo eleitoral de escolha dos representantes, na rotatividade dos governantes e nas soluções técnicas para os problemas econômicos e sociais.

Todavia, a democracia ultrapassa a ideia de um regime político, pois ela define a forma da própria sociedade. Em outras palavras, ela não se refere apenas à forma do governo, mas à forma geral de uma sociedade, a sociedade democrática. Sob este aspecto os principais traços da democracia poderiam ser assim resumidos:

(1) forma sócio-política definida pelo princípio da isonomia (igualdade dos cidadãos perante a lei) e da isegoria ( direito de todos para expor em público suas opiniões, vê-las discutidas, aceitas ou recusadas em público), tendo como base a afirmação de que todos são iguais porque livres, isto é, ninguém está sob o poder de um outro porque todos obedecem às mesmas leis das quais todos são autores (autores diretamente, numa democracia participativa; indiretamente, numa democracia representativa). Donde o maior problema da democracia numa sociedade de classes ser o da manutenção de seus princípios – igualdade e liberdade – sob os efeitos da desigualdade real;

(2) forma política na qual, ao contrário de todas as outras, o conflito é considerado legítimo e necessário, buscando mediações institucionais para que possa exprimir-se. A democracia não é o regime do consenso, mas do trabalho dos e sobre os conflitos. Donde uma outra dificuldade democrática nas sociedades de classes: como operar com os conflitos quando estes possuem a forma da contradição e não a da mera oposição?

Saiba mais em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Educacao/Democracia-e-a-educacao-como-direito/54/51349

Comente aqui