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Carta Maior A madiçiçaõ do eurocentrismo

Por Maria Paez Victor |Créditos da foto: (Getty Images)

Escrevo no Dia do Canadá e este lindo país nortista, que tem sido meu lar por mais de 40 anos, está abalado pela descoberta de dois cemitérios clandestinos contendo cerca de mil corpos que se acredita sejam de crianças, em terrenos de antigas “Escolas Residenciais”, construídas para receber indígenas. A descoberta confere evidências a várias denúncias de comunidades indígenas dando conta que muitas das crianças tiradas delas à força desapareceram. O sistema de escolas residenciais, espécie de internatos, para crianças indígenas foi uma política formal, legal do governo canadense, uma tentativa incrivelmente cruel de “assimilação” forçada. Elas funcionaram por mais de 100 anos e cerca de 150 mil crianças indígenas foram nelas jogadas. A bela terra desenterrou um horrível segredo.

Crianças indígenas foram separadas à força de suas famílias e comunidades, colocadas em escolas mal administradas onde eram proibidas de falar a própria língua e submetidas a toda sorte de abusos físicos e mentais, como testemunharam sobreviventes. Milhares delas desapareceram, suas famílias ficando sem respostas, e sobreviventes carregando profundas cicatrizes emocionais,

Outro aspecto chocante é que a última dessas escolas foi fechada apenas recentemente: em 1996. Por que nenhum governo em todos esses anos promoveu supervisão judicial, educacional ou mesmo humana? Que cristianismo é esse que os professores anglicanos e católicos praticavam enquanto sádicos, mesmo estupradores e pedófilos, talvez até assassinos, eram permitidos perto de crianças vulneráveis?

A questão mais sinistra desses cemitérios é que eles eram secretos, não havia uma única lápide ou cruz marcando as covas. Os cemitérios foram descobertos não pelo governo, que se recusou a financiar uma busca, mas pela iniciativa de comunidades indígenas desesperadas em busca de respostas. As crianças podem ter morrido de doenças, da Gripe Espanhola, sarampo, negligência ou, pior, foram assassinadas. Será difícil atestar, mas o que é claro é que elas não receberam um enterro apropriado, humano, o que é escandaloso e suspeito, e suas famílias não foram informadas sobre doença nem morte. Elas foram jogadas na terra como dejetos, uma vergonha, privadas de sua dignidade humana, enterradas secretamente. Por que a morte delas não foi devidamente registrada? Por que foi mantida em segredo?

Como imigrante, sempre fui consciente de que o Canadá consolidou sua identidade com a narrativa de ser um país bilíngue, bi cultural, onde ingleses e franceses formaram sua governança. Isto é um fato já que os povos originários não foram “parceiros” nessa empreitada. Eles mal tiveram participação no processo da Confederação Canadense de 1867, com uma exceção. O único indígena envolvido foi o extraordinário líder métis Louis Riel, fundador da província de Manitoba, que a levou para a Confederação. Hoje em dia seu papel é diminuído. Ele foi, no fim, escandalosa e publicamente enforcado sob acusação de traição em 1885.

Tendo vindo da América Latina, eu percebi que um profundo problema na vida política do Canadá é que ela é mergulhada no eurocentrismo, assim como em outro “filho” da Europa, os Estados Unidos. A Europa foi no geral uma terra sem indígenas por séculos (com exceção talvez dos lapões e dos ciganos). É emblemático que os mais famosos pintores do Canadá, conhecidos como O Grupo dos Sete, celebrados por suas fascinantes reproduções de paisagens do norte de Ontário entre 1920-1933, produziram trabalhos completamente desprovidos de indígenas que viviam na região. Eles pintaram uma terra “vazia”.

A vida política internacional da Europa está envolvida em violento colonialismo e exploração de povos não europeus. É esquecido que os belgas na década de 1880 mataram cerca de 11 milhões de africanos e cortaram as mãos daqueles que não cumpriam uma cota estabelecida de borracha. Eurocentrismo se perde na arrogância da superioridade que produziu mais especificamente o racismo estrutural nos EUA contra os negros e no Canadá contra os povos indígenas.

A maldição não é a Europa em si, mas o eurocentrismo, a crença que apenas as culturas europeias são civilizadas. Faz parte de uma tradição: os gregos consideravam bárbaro quem não falava a língua deles e os romanos tinham como bárbaro qualquer grupo fora de seu império mediterrâneo. A cultura norte-americana (Canadá e EUA) está firmemente enraizada no eurocentrismo, tudo fora dela é considerado grosseiro, indigno, até perigoso: muçulmanos, chineses, latinos, negros e, mais dolorosamente, seus próprios povos originários, as nações indígenas da América do Norte, Central e do Sul.

Ao contrário de povos latinos americanos que travaram sangrentas batalhas para se libertarem do infame Império Espanhol, o Canadá nunca se rebelou contra seus laços britânicos/franceses para se afirmar como uma entidade diferente, nova. Sua elite governista se satisfez em criar apenas uma continuação. Como George Grant declarou em 1965, a elite canadense buscava os benefícios como parceiro menor do Império Britânico. O Canadá trocou a bandeira britânica por uma própria apenas em 1965, e sua constituição não vinculada ao Parlamento britânico ainda mais recentemente, em 1982 – mas ainda mantém como chefe de Estado sua majestade a rainha Elizabeth.

Mas uma rápida olhada na política externa do Canadá nos oferece fortes evidências de que as elites governistas hoje não assumem uma posição idiossincrática própria, que continuam querendo ser um parceiro menor de um império, agora dos EUA. Na América Latina, a questão da soberania é imperativa no discurso político, seja ela respeitada ou não. Ela é raramente mencionada no discurso político canadense.

Portanto, infortunadamente, o colonizado Estado do Canadá, por seu lado, se tornou colonizador em relação aos povos originários de sua terra. Aqueles que governavam em 1894, que deram início às infames escolas residenciais indígenas, eram na verdade nascidos na Europa ou se identificavam mais com a Grã-Bretanha ou França do que com o Canadá. O primeiro-ministro canadense John A. McDonald, fundador do sistema de escolas residenciais, nasceu na Escócia. Ele declarou que o objetivo das escolas era separar as crianças de seus pais selvagens:

“Quando a escola está dentro da reserva, a criança vive com seus pais, que são selvagens, e apesar de ela poder aprender a ler e escrever, seus hábitos e modo de pensar são indígenas. Ela é simplesmente um selvagem que pode ler e escrever… Crianças indígenas deviam ser retiradas o máximo possível da influência parental… (e colocadas) onde elas vão adquirir hábitos e modos de pensar do homem branco”.

Hector-Louis Langevin, um francófilo, outro arquiteto do sistema residencial, afirmou em 1883 que as crianças indígenas deveriam ser separadas de suas famílias para “adquirirem… apenas os bons hábitos e gostos de pessoas civilizadas”.

E já em 1920, o vice-ministro do Departamento de Assuntos Indígenas, Campbell Scott, explicou:

”Quero me livrar do problema indígena. Nosso objetivo é continuar até que não haja um único indígena no Canadá que não tenha sido absorvido no corpo político e não exista mais a questão indígena”.

A Comissão da Verdade e da Reconciliação do Canadá (2008-2019) foi criada como resultado do Acordo de Instalação das Escolas Residenciais Indígenas e foi um passo bastante positivo que tentou reconhecer e assumir um débito histórico com os povos indígenas. Ela colheu mais de 7 mil testemunhos de indígenas e concluiu que a política de assimilação do governo foi um genocídio cultural. Agora, com a descoberta dos cemitérios clandestinos, parece haver evidências de que se tratou também de genocídio físico. O relatório da comissão concluiu que as autoridades não acreditaram quando os indígenas denunciaram que centenas de crianças estavam desaparecidas, e que “o legado do sistema tem sido relacionado com uma aumento no estresse pós-traumático, alcoolismo, uso de drogas e suicídio, que persistem nas comunidades indígenas até hoje”.

O primeiro-ministro Pierre Eliot Trudeau talvez tenha sido o mais importante líder a ter um senso de “canadianismo”, ao afirmar a independência do país na Constituição de 1982 e declarar o Canadá um país multicultural, o primeiro país a fazê-lo, reconhecendo desta forma a pluralidade étnica de uma nação construída com o trabalho de imigrantes, além de apenas dos franceses e ingleses. Infelizmente, isso não incluiu os indígenas do Canadá que permaneceram marginalizados numa teia de complicações legais. Eles não são imigrantes, eles são os povos originários desta terra, e nada menos do que esse reconhecimento é aceitável para eles.

Saiba mais em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Antifascismo/A-maldicao-do-eurocentrismo/47/51023

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