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“SEMENTES: MULHERES PRETAS NO PODER”:Gênero, classe e raça

Vibrante movimento de base nasce no Rio de Janeiro e pode transformar aspectos da política no Brasil atual com essas candidatas que assumem suas próprias vozes

Por Léa Maria Aarão Reis

Quatro mil e quatrocentas mulheres negras brasileiras se candidataram aos cargos de deputadas, estaduais e federais, nas eleições de 2018. Isto significa 93 por cento a mais de candidaturas desse vibrante segmento da população feminina em comparação a eleições anteriores. Mas é, sobretudo, o resultado do legado deixado pela vereadora Marielle Franco, assassinada no Rio de Janeiro, aos 39 anos, em 14 de março de 2018.

No filme Sementes: Mulheres pretas no poder, que recomendamos vivamente, e pode ser visto, gratuito, no site da produtora Embaúba (www.embaubafilmes.com.br) e no youtube (youtube.com/embaubafilmes) até o dia 30 deste mês, algumas das idéias centrais expressas por um grupo de candidatas negras cariocas nas suas campanhas, no primeiro turno das eleições de 2018, são estas:

”Marielle hoje é uma semente e nós somos o seu legado,” diz uma delas. ” Não admitimos mais que falem por nós,” exclama outra, sinalizando que assumem o discurso das mulheres pretas, e rejeitam o preconceito e o desafio do eleitorado de não votar em mulheres. ”Trata-se de uma onda que se forma com esse nosso trabalho e queremos que se torne num tsumani”, alerta uma terceira. E uma terceira: ” Mulheres emponderadas emponderam outras mulheres.”

Realizado com orçamento modesto, é um documentário atraente produzido com um entusiasmo contagiante por um grupo de mulheres negras e brancas. Seu sucesso logo apareceu, desde as primeiras 24 horas da estréia no streaming, no último dia sete de setembro, quando registrou oito mil visualizações.

As suas duas diretoras, Éthel Oliveira e Julia Mariano (também produtora executiva) são estreantes em longa-metragem. A fotografia é de Marina Alves, e Lumena Aleluia assina o roteiro.

Com essa equipe técnica formada por mulheres pretas, a marca do filme tem a sua assinatura. Traz a sua perspectiva, o seu olhar e sua experiência no cotidiano da realidade penosa das populações de baixa renda das periferias cariocas. E todas as retratadas e entrevistadas no doc são também mulheres pretas.

Mônica Francisco, de 48 anos, uma delas, é ex-assessora de Marielle Franco. Pastora evangélica e militante do movimento de favelas no Rio de Janeiro. Rose Cipriano é professora de escola da rede municipal de Duque de Caxias, nascida na Vila Cruzeiro, graduada em matemática e especialista em educação especial.

Talíria Petrone, de 33 anos, foi eleita deputada federal com mais de cem mil votos. Em 2016 foi a vereadora mais votada, em Niterói. Talíria enfrenta com coragem muitas ameaças, principalmente nas redes sociais. Tainá de Paula, 35 anos, é arquiteta e urbanista, ativista feminista e trabalha em habitação popular, planejamento urbano e arquitetura pública.

Jaqueline Gomes é professora na Baixada Fluminense, pesquisadora em Direitos Humanos e primeira candidata trans pelo Partido dos Trabalhadores no Rio de Janeiro a ocupar uma vaga no legislativo da cidade. E Renata Souza, de 36 anos, é jornalista, cria da Maré. Foi eleita deputada estadual com nada menos que 60 mil votos. Para ela, ”as favelas são estereotipadas pelo próprio estado.” Acrescenta, numa observação indispensável: ”E são as favelas que acabam sendo depositárias das mazelas da sociedade”.

A idéia de todas é a de que a responsabilidade de lutar pela classe, pela raça e pelo gênero (todos eles) é obrigatoriamente coletiva.

Depois de assistir a Sementes: muheres pretas no poder há quem lembre do documentário americano Virando a mesa do poder, exibido aqui no ano passado, um perfil muito bem realizado de um grupo de candidatas independentes na campanha eleitoral estadunidense. Entre elas uma das vencedoras é hoje a estrela da esquerda do Partido Democrata dos EUA, Alexandria Ocasio-Cortez, de 30 anos, filha de faxineira que precisou interromper os estudos na universidade quando o pai morreu e trabalhava como garçonete em um bar de Nova Iorque antes de entrar na política.

O documentário brasileiro vai além. Mesmo que, assim como Knock down thehouse, ele nos apresente a um movimento que pode mudar a política de um país. Mas Sementes trabalha com flashes de vigorosas imagens da Maré, Madureira, de Duque de Caxias, Praça Seca, em Jacarepaguá, de Nova Iguaçu, São Gonçalo, do campus da UFRJ, das mega manifestações na Cinelândia e na Praça XV, no Centro do Rio, do bairro de Fátima e de Copacabana, e das calçadas e botequins onde se está discutindo a democracia no Brasil.

É movimento de resistência coletiva e de base – do que o país neste momento precisa -, que ferve nas biroscas animadas da Lapa onde muitas das modestas porém vibrantes reuniões das candidatas são (muito bem) organizadas. As sequências do filme, cheias de calor e afetuosidade, acabam sendo um instantâneo precioso do país de hoje, da grande maioria da sua população e das bravas mulheres negras das classes trabalhadoras.

O processo de construção de suas candidaturas e dessa força política novíssima que está surgindo e crescerá daqui para a frente não exigirá mais dessas mulheres o atual imenso esforço de driblar a penúria financeira nas suas campanhas, como se vê no filme. A recente lei determinando igualar valores de fundos partidários para candidatos e candidatas negros e negras já estará em vigor nas campanhas deste ano.

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