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Com um pé no parlamento e outro nas ruas

Eleita a deputada mais jovem do PT para o Congresso, Natália Bonavides conversou com a Jacobin Brasil sobre sua origem nas lutas sociais e as dificuldades que encontra uma parlamentar de esquerda em meio à maior crise sanitária, política e econômica de toda uma geração – e quais são as tarefas dos socialistas na superação desse estado de coisas.

Uma entrevista com Natália Bonavides / Foto reprodução.

Eleita com mais de 110 mil votos, pelo estado do Rio Grande do Norte, Natália Bonavides foi liderança do movimento estudantil e atuou como advogada popular na luta pela terra e pelo direito à moradia, trabalhando com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), com o Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas, e com o Movimento de População em Situação de Rua. Já no parlamento, foi autora do projeto de lei que impedia despejos durante a pandemia – projeto que foi aprovado na Câmara e no Senado, mas vetado pelo presidente Bolsonaro. 

Conectada às lutas populares, e enraizada nelas, Natália continua com um pé no parlamento e um pé nas ruas, enfatizando que a política institucional não será suficiente nem para barrar o bolsonarismo nem para transformar o Brasil. Mandatos são apenas instrumentos – “e de eficácia limitada”, observa. “A luta maior está lá fora”.

Confiante no futuro, Natália reivindica orgulhosamente o horizonte socialista, afirmando que é justamente em tempos de duros embates, como os nossos, que precisamos assumir uma defesa radical de nossas pautas.


JB

Como foi o seu processo de politização e como se forma a Natália militante?

NB

Minha formação como militante se deu principalmente quando era estudante e me envolvi com o movimento estudantil do curso de Direito da UFRN, no Centro Acadêmico Amaro Cavalcanti. Nessa época, participei de diversas atividades de extensão em educação popular e direitos humanos, e foi através desses projetos que comecei a atuar junto a movimentos sociais, principalmente movimentos de luta pela terra e por moradia, especialmente em parceria com o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e o MLB (Movimento de Luta nos Bairros e Favelas).

Pelo engajamento com a luta popular passei a utilizar o Direito – que é, por si mesmo, um instrumento de manutenção da ordem das coisas – nas suas brechas, a serviço dos movimentos. Assim me tornei advogada popular. Ainda na faculdade, participei da criação de projetos de assessoria jurídica às comunidades e movimentos. Essa vivência junto às lutas concretas do povo foi fundamental na minha formação. Uma das leituras que fazíamos com frequência nessa época, nas formações desses projetos e no próprio movimento estudantil, era Paulo Freire – de quem sempre bebi muito (e que continua sendo uma referência na luta política).

Um momento importante desse processo se deu em 2011, já perto de concluir meu curso, quando participei da ocupação da Câmara Municipal de Natal. Foi um processo poderoso de mobilização, que, junto com a minha atuação profissional, voltada aos movimentos populares, à população em situação de rua, às pessoas que seriam atingidas pelas obras preparatórias da Copa 2014, me ajudou a tomar a decisão de me organizar em um partido político.

JB

Como se deu a decisão e a escolha de se organizar no PT, especificamente?

NB

A principal coisa que me chamou atenção no Partido dos Trabalhadores, e que é uma marca forte do partido, é o seu enraizamento popular. Em todas as lutas e atividades de militância com as quais tive a oportunidade de me envolver, me chamava a atenção sempre estarem ali companheiros e companheiras petistas, nas mais diversas pautas. Era o partido que, sem dúvidas, tinha maior presença nas lutas com as quais eu tive contato. Esse aspecto foi muito importante na minha escolha de onde me organizar e militar.

Quando me filiei, não tinha nenhuma intenção de ser candidata. Nunca tive esse plano pessoal, a ideia era de somar com as lutas das quais o partido participava. Dentro do PT, faço parte da corrente “Articulação de Esquerda”, uma corrente do partido que é identificada com o projeto do socialismo. Por meio dela, iniciamos os debates para apresentar minha candidatura para a Câmara Municipal em 2016.

Simplesmente há pautas que hoje, mais do que nunca, exigem de nós uma defesa radical, sem meio termo. Se querem nos chamar de radical: somos radicalmente contra o projeto que Bolsonaro representa. 

Estávamos vivendo aquele momento pré-golpe. Respondendo a essa conjuntura, as companheiras e companheiros que militavam comigo avaliaram que eu poderia ter um perfil importante na disputa eleitoral, por ser uma mulher, jovem, mas, principalmente, por estar conectada às lutas dos movimentos populares da cidade. E assim virei candidata a vereadora de Natal, a capital do meu estado, o Rio Grande do Norte. Foi um ano duríssimo: além de ter sido o ano do golpe contra Dilma, foi o ano em que o Partido dos Trabalhadores teve um de seus piores resultados nas eleições municipais, com uma queda acentuada no número de prefeituras e mandatos de vereadores conquistados. Apesar disso, em Natal conseguimos construir uma campanha mobilizadora e inspiradora, e a consequência foi a maior votação para uma candidatura petista à Câmara Municipal de Natal até hoje.

JB

A que vocês atribuem essa votação tão expressiva?

NB

Atribuímos a vitória eleitoral à forma como os movimentos populares da cidade abraçaram a campanha. Foi uma campanha muito politizada e extremamente participativa, resgatando instrumentos que sempre foram característicos do Partido dos Trabalhadores, que se tornam uma oportunidade de as pessoas participarem ativamente da condução da campanha e depois do mandato. Frequentemente se escuta que a juventude não quer participar e que nega a política, mas nós vivemos uma experiência completamente distinta.  Criamos uma atividade com o nome “Chame Gente”, que é basicamente uma roda de conversa que fazíamos – e que iremos retomar quando a questão sanitária permitir – em praças, teatros, em qualquer lugar que tiver chão, para debater e construir junto das pessoas os temas do nosso programa. Foi uma coisa incrível ver o quanto a juventude esteve junto na construção desse processo.

Outro elemento fundamental, que ajuda a explicar nossa votação, foi sem dúvida termos feito uma campanha muito politizada. Como não poderia deixar de ser, fizemos uma campanha que denunciava com vigor o processo de golpe em curso, que denunciava sem meias palavras as intenções e os objetivos dos setores golpistas.

Nossa ideia sempre foi que o mandato servisse como um instrumento que potencializasse as lutas. Até porque temos consciência das limitações de um mandato popular no parlamento burguês.

JB

Dois anos depois você foi a única deputada federal eleita do PT pelo Rio Grande do Norte, tornando-se a parlamentar petista mais jovem do país. Como se deu essa decisão de se candidatar ao Congresso e como ela respondia ao cenário político da época?

NB

Vivíamos um agravamento da conjuntura desde o golpe. Havia uma flagrante perseguição, de natureza política, visando impedir a candidatura de Lula. O Congresso já estava estabelecido como um grande palco de retirada de direitos do povo, como a aprovação de reforma trabalhista, teto de gastos, terceirização irrestrita, entre outros ataques.

Internamente no PT, discutíamos que era preciso priorizar a Câmara Federal. Nesse momento, decidimos que era uma tarefa com a qual eu poderia contribuir, na tentativa de ocupar um espaço que possibilitasse construir resistência contra o projeto conservador de desmonte, que segue em curso desde o golpe. Foi assim que virei candidata, também em um ano duríssimo: o ano da prisão de Lula e da eleição de Bolsonaro.

JB

Você teve esse desenvolvimento rápido de militante junto a movimentos sociais, para organizada partidariamente e logo depois de militante partidária para uma figura pública, disputando a institucionalidade e encabeçando duas campanhas bem-sucedidas. Como você conecta o seu desenvolvimento político com a nova conjuntura do país, com o momento de acirramento da luta de classes? Se por um lado há uma ofensiva reacionária da direita, por outro também há um desejo crescente, sobretudo na juventude, de engajamento com os processos de luta.  

NB

Quando decidimos pela minha candidatura, avaliavamos que era preciso inclusive levar em conta a demanda por renovação. Sentíamos que havia na sociedade um apelo por novos rostos na política, sobretudo de jovens e mulheres, e queríamos justamente evitar que essa demanda fosse canalizada por candidaturas de direita.

Nas nossas duas campanhas nos esforçamos para nos sintonizar com as pautas políticas do momento. Em 2016, por exemplo, um dos meus programas eleitorais começava com “primeiramente, fora Temer” – estávamos na TV aberta, era uma oportunidade de denunciar o golpe para um público amplo. Já em 2018, o programa começava com “Lula livre, Lula presidente”, também denunciando a ilegalidade de prisão de Lula e do impedimento de sua candidatura.

Nathália Bonavides no acampamento do MST

Para nós era muito importante politizar o debate durante o processo eleitoral. Campanha não é o momento de esconder as pautas, muito pelo contrário: é o momento de afirmá-las e tentar reuni-las em torno de uma candidatura que apresente um programa estruturado.

Penso que foi assim que conseguimos nos conectar com a conjuntura. Mesmo em dois momentos tão duros, fizemos dessas candidaturas instrumentos de resistência aos ataques, e por isso as pessoas acreditaram nelas e as abraçaram.

JB

Sua candidatura refletiu esse momento da conjuntura, de um acirramento da luta de massas, uma candidatura que faz parte da renovação dos quadros militantes da esquerda – dentro do parlamento e fora dele. Como é ser uma parlamentar mulher, jovem, socialista, em um parlamento tal como você o encontrou, já ocupado pelo bolsonarismo?

NB

A primeira coisa de que um parlamentar socialista precisa ter consciência, ao chegar em um espaço como esse, é que não é possível ter nenhuma ilusão. Quando me coloquei à disposição para essa disputa institucional, não nutria qualquer ilusão de que será pela luta parlamentar que conseguiremos realizar as grandes mudanças na sociedade que são necessárias. Não é apenas pela institucionalidade que vamos conseguir fazer o que tem que ser feito para garantir condições de dignidade para a classe trabalhadora.

Os parlamentos são espaços burgueses e, portanto, limitados. É importante ter consciência dessas características desses espaços, pois não são espaços criados para a atuação dos setores populares, ao contrário. Portanto, a mera atuação institucional e parlamentar é absolutamente insuficiente, ainda mais na conjuntura que vivemos.

Somos radicalmente a favor da dignidade humana, dos direitos da classe trabalhadora, de tudo que há de mais belo que a humanidade foi capaz de construir. Somos socialistas.

Posso destacar dois aspectos que evidenciam esses limites. O primeiro é o próprio aspecto cotidiano: esses espaços são majoritariamente ocupados por representantes da classe dominante, pessoas que chegam ali com o apoio das elites econômicas. No capitalismo, a democracia sempre apresentará essa distorção: as classes proprietárias estão, no parlamento, bem mais representadas do que a classe trabalhadora, ainda que, obviamente, a classe trabalhadora seja a ampla maioria da população. É por isso que as principais vitórias dos setores populares só se dão quando um fator externo interfere. O curso esperado das disputas no parlamento é que ali seja um espaço de derrotas para a classe trabalhadora, onde direitos são retirados, não conquistados. As vitórias que a classe trabalhadora obteve ocorrem exatamente quando existe esse fator externo de mobilização popular, de pressão da sociedade. Sem pressão, no parlamento burguês a regra é que a classe trabalhadora sofra derrotas.

O segundo aspecto precisa levar em conta as mudanças na conjuntura, pois estamos chegando à marca de cinco anos desde que a democracia brasileira sofreu um golpe. Nesses cinco anos, a conjuntura mudou muito, principalmente para os setores da esquerda. Diante da radicalização da direita, que passou a adotar uma atitude extremista e reacionária, parece não haver mais possibilidade nenhuma de política de conciliação. A consequência, e é isso que precisamos reverter, é que a esquerda passou à defensiva.

Infelizmente, a mudança da conjuntura não se fez acompanhar, por parte da esquerda, de uma mudança na estratégia, que já se faz necessária há bastante tempo. Uma parte significativa da esquerda segue priorizando os espaços institucionais e a luta eleitoral como se fosse a única que importasse, ou que importasse muito mais que quaisquer outras. É claro que os espaços institucionais são importantes, e lá se travam lutas fundamentais. É a tarefa que estou desempenhando atualmente, inclusive. Mas estamos sob um governo genocida, com características neofascistas, de adesão a uma agenda ultraneoliberal, em meio a uma pandemia. Uma oposição meramente institucional ou parlamentar não é suficiente, não está à altura do que é necessário para derrotar esse projeto.

A saída dessa conjuntura tão desafiadora, na minha opinião, passa por mudar essa concepção, por mudar a estratégia, e perceber que os espaços institucionais são uma das trincheiras, mas não a principal. Se a institucionalidade já era limitada quando nós estávamos ocupando o governo, e éramos capazes de desenhar e implementar políticas públicas, quando estamos fora, e quando as políticas públicas são sistematicamente destruídas, essa posição se revela ainda mais insuficiente. Não são as instituições que vão frear o Bolsonaro, muito menos derrotá-lo. Para isso é necessário luta de massas e coletiva.

Minha atuação parlamentar tem sempre isso em vista: entender esses espaços como parte das estruturas que dão sustentação ao capitalismo – não só o legislativo, mas também o judiciário. Por exemplo, sempre fazemos denúncias ou notícias-crime contra Bolsonaro, acionamos o sistema judiciário, mas sem qualquer ilusão de que se tratam de aparatos neutros, de que vão receber essas denúncias e julgar questões com tanto peso político simplesmente conforme a lei. Nesse sentido, mandatos e esses tipos de cargo são só instrumentos, e de eficácia limitada. A luta maior está lá fora. É lá que o jogo vai ser realmente definido.

Saiba mais em: https://jacobin.com.br/2021/08/com-um-pe-no-parlamento-e-outro-nas-ruas/

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