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Como o Comum pode reinventar a democracia

Da Europa à América Latina, rebeldias mostram imaginação política — e que, frente a Estado carcomido pelas lógicas neoliberais, é possível passar do protesto à proposta, da participação à coprodução cidadã, da ação comunitária à global

Por Rodrigo Savazoni

Nós, o povo

Nós, o povo, como diz a Constituição dos Estados Unidos, na possibilidade do exercício do poder por meio de seus representantes ou diretamente, como consagra a Constituição brasileira. Quando confrontada com o comum, a democracia surge não apenas como um sistema de governo, mas como uma filosofia política em defesa da distribuição equânime do poder. Devemos, pois, pensar essa relação democracia-comum em múltiplas camadas. Qual a democracia que exercitamos e vivenciamos no interior de nossas comunidades? Qual a democracia que os comuneiros, em aliança, querem construir para o conjunto da sociedade? Qual democracia é preciso inventar para superar este modelo hegemônico baseado na representação que foi capturado pelos interesses dos mercados? Qual democracia preservar ou superar nas relações internacionais e em âmbito multilateral? Afinal, quando pensamos a agenda política contemporânea percebemos que precisamos de uma aliança transnacional para enfrentar desafios globais.

Como escrevem Laval e Dardot, o comum é a busca por novas formas democráticas, ou seja, por imaginação no poder. Um exemplo em curso é o da Espanha. Depois de quase meio século da ditadura sanguinária do general Francisco Franco e de uma experiência de quase quarenta anos de bipartidarismo – alternando governos do conservador Partido Popular (PP) e do Partido Socialista Obrero Español (PSOE), que podemos definir como uma agremiação de centro-esquerda –, o país da península Ibérica explodiu. Em 2011, ano de eleições para a escolha de seu primeiro-ministro, a Espanha chegou a uma situação insustentável, com altas taxas de desemprego (que subiram de 8% para 20%, número que se mantém até hoje), despejos, pacotes de austeridade fiscal, reformas neoliberais que reduziam direitos trabalhistas e previdenciários, corrupção, resgate público de bancos, num contexto de falta de crescimento econômico. No dia 15 de maio, um protesto pacífico convocado pela internet pelo movimento “Democracia Real Ya”, com o lema “Não somos mercadorias nas mãos de políticos e banqueiros”, reuniu milhares de pessoas em mais de cinquenta cidades espanholas e deu origem a um acampamento na Puerta del Sol, a principal praça de Madri. A ação foi reprimida durante a noite, resultando na prisão de vários ativistas. Como rastilho de pólvora, o levante viralizou pelas redes sociais, estimulando acampamentos por todo o país – a 15Mpedia (plataforma wiki para documentação do processo criada pelos próprios ativistas) registra 211 acampamentos no dia 22 de maio de 2011. O episódio ficou conhecido como Movimento 15-M ou Movimento dos Indignados, ou ainda “revolução espanhola”e muitos analistas o interconectam com a Primavera Árabe, nome dado às grandes mobilizações populares em países do norte da África, em especial o Egito e a Tunísia, que ocorreram poucos meses antes. A história do 15-M é verdadeiramente fascinante e não faltam bons livros para contá-la, mas dois são primordialmente os aspectos que me interessam neste capítulo em que me propus a pensar as relações entre o comum e a democracia: (1) a experiência dos acampamentos como espaços de construção de uma política do comum; e (2) os efeitos que esse movimento popular teve na reconstrução do sistema político espanhol, em específico com o surgimento de novas forças políticas que carregam em seu programa a ideia de bens comuns, as quais assumiram o governo das principais cidades espanholas, como Madri, Barcelona e Saragoça.

Para Laval e Dardot em seu livro Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI, os protestos espanhóis são parte de um amplo movimento global de emergência de lutas do comum, que se destacam pela oposição à racionalidade neoliberal, bem como negam o estatismo de parte da esquerda tradicional. Os autores franceses desenvolvem essa ideia também em um artigo traduzido para o português pela Universidade Nômade, com o mesmo título do livro.

O comum nos parece ser o princípio que literalmente emergiu de todos esses movimentos. Portanto, não é algo que nós inventamos; isto surgiu das lutas correntes como seu princípio interno. O termo adquiriu assim um significado completamente novo, aquele da “democracia real”, para o qual a única obrigação política legítima não decorre da adesão a uma determinada comunidade, por mais amplo que isso possa ser, mas da participação nessa mesma atividade ou nas tarefas que a constituem (1).

Nesse sentido, o primeiro slogan do 15-M não poderia ser mais explícito ao estabelecer o foco na aliança entre políticos e banqueiros. Ou seja, entre Estado e mercado financeiro, considerados por eles gêmeos siameses no processo de destruição da democracia. Isso, porém, nos bastaria para concordar que o Movimento 15-M é um exemplo de política do comum? Difícil dizer, porque o processo espanhol envolveu partidos da esquerda tradicional e dele surgiram respostas organizacionais que não prezam pela horizontalidade, como é o caso do partido Podemos. Por outro lado, não resta dúvida de que hoje a Espanha vive um experimento avançado nessa direção. Recupero um trecho da fala de Joan Subirats, em seu livro em parceria com César Rendueles, Los (bienes) comunes, por entender que ele pode nos ajudar a compreender que a simples reivindicação do conceito nem sempre produz uma efetiva democracia do comum.

Como podemos relacionar o comum com a ideia de democracia? Tentando ver até que ponto falamos do comum como algo coletivo, compartilhado, que gera vínculos, que gera obrigações, que gera direitos. Como podemos transpor esse compartilhar e esse coproduzir para a gestão política? Como relacionamos isso com espaços, com formas de conexão, em que o recurso do público esteja conectado com a comunidade, com uma vontade de ser comunidade? Esse commoning (fazer o comum) como expressão de ação, de vontade de gerar o coletivo (2).

O Movimento 15-M sem dúvida foi, com seus acampamentos e assembleias, uma universidade de democracia para seus participantes, resultando em ampla politização dos cidadãos e na recuperação – ainda que provisória – da essência democrática. Nesse processo coletivo, ativistas, jovens desempregados, trabalhadores, estudantes, aposentados, artistas, intelectuais, entre tantos outros agentes sociais, uniram seus corpos para conversar, deliberar, decidir, discutir tendo como única perspectiva a tarefa imprescindível de transformar a realidade. Nesse fazer-a-política, fazer-o-comum, criaram pactos, regras, vínculos, obrigações, direitos. Uma das especificidades, por exemplo, foi o estabelecimento do gênero feminino nas conversações das assembleias, uma reivindicação do movimento feminista. Para viabilizar essa dinâmica de autogoverno, formaram grupos de trabalho – de alimentação, segurança, comunicação e justiça; compartilharam equipamentos e sonhos; deliberaram por consenso; ocuparam espaços reais e virtuais. A experiência do 15-M engendrou e fortaleceu inúmeros processos vivos nas cidades espanholas, com organização de centros sociais, casas coletivas, assembleias em bairros, coletivos políticos e artísticos, entre outras formas alternativas de organização que seguem contribuindo para a transformação da realidade (3). Um dos focos essenciais dessa “nova política” passou a ser a defesa da atuação nos “bairros”, com a criação de assembleias cidadãs.

Em 2015, muitos dos ativistas que se “formaram” nessa rica experiência do 15-M se somaram às frentes cidadãs vencedoras das eleições. De volta ao caso de Madri, podemos destacar como consequência dessa transferência de quadros do movimento social para a administração pública o trabalho de uso das tecnologias digitais e sociais para gerar um modelo de democracia direta. Sob a batuta do hacker Pablo Soto, criou-se uma área de participação cujo foco é promover a “desintermediação” do poder. Em 2017, foi criada a plataforma Decide Madrid, de orçamento participativo vinculado, com acesso restrito aos moradores da cidade, para a qual alocaram 100 milhões de euros destinados ao financiamento de projetos propostos pela cidadania. Além da plataforma web, o Decide Madrid inclui também pontos de atendimento presencial em toda a cidade, os chamados escritórios de atenção ao cidadão. Outra iniciativa interessante são os laboratórios de prototipagem desenvolvidos em parceria com o MediaLab-Prado em que funcionários públicos e cidadãos se unem para coproduzir soluções práticas para problemas reais.

Subirats, refletindo sobre iniciativas que estão pipocando na Espanha atual, defende o conceito de coprodução política como uma forma prática de impulsionar alternativas: “O conceito de coprodução nesse sentido tenta saltar por cima do conceito de participação, e se coloca mais em relação a problemas concretos, não genéricos, a fim de estabelecer diagnósticos compartilhados que gerem obrigações conjuntas de cada um” (4).

Saiba mais em: https://outraspalavras.net/movimentoserebeldias/como-o-comum-pode-reinventar-a-democracia/

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