Revisitamos como os bolcheviques ascenderam ao poder há 103 anos.
Por Alexander Rabinowitch | Tradução: Rejane Carolina Hoeveler | Créditos foto: Viktor Bulla / Wikimedia
Na minha contribuição, quero revisitar as principais conclusões dos meus escritos sobre 1917, especialmente no que se refere à questão espinhosa e ainda profundamente politizada de como os Bolcheviques venceram a luta pelo poder na Petrogrado de 1917. No entanto, iniciarei com algumas palavras sobre as opiniões de historiadores anteriores sobre esta questão.
Para os historiadores soviéticos, a revolução de outubro de 1917 foi a expressão legítima da vontade das massas revolucionárias de Petrogrado – um levante armado popular em apoio ao poder Bolchevique liderado por um partido de vanguarda altamente disciplinado, brilhantemente dirigido por V. I. Lenin. Os historiadores ocidentais, por outro lado, tendem a ver o sucesso dos Bolcheviques como conseqüência da brandura do Governo Provisório em relação à esquerda radical; um acidente histórico ou, com mais freqüência, o resultado de um golpe militar bem executado, sem apoio popular significativo, realizado por uma organização pequena, unida, altamente autoritária e conspiratória, controlada por Lenin e subsidiada pela Alemanha inimiga. Para os historiadores que mantêm a última visão – entre eles muitos historiadores na Rússia dos dias de hoje – a estrutura e as práticas do partido bolchevique em 1917 eram inevitáveis progenitoras do autoritarismo soviético.
As conclusões de minha pesquisa sobre 1917 divergem significativamente dessas interpretações corriqueiras. Para ilustrar este argumento, tomarei nota de alguns momentos importantes, ainda que frequentemente omitidos, passados durante o crucial verão e outono de 1917, o que me pareceu de especial importância na compreensão do caráter e do curso da “Revolução de outubro” em Petrogrado. Em seguida, resumirei como vejo o “Outubro Vermelho” hoje.
A insurreição de Julho
Oprimeiro dos momentos que eu quero abordar é a prematura “insurreição de Julho”, que apareceu para muitos na época, e para a maioria dos historiadores ocidentais desde então, como uma tentativa mal sucedida de Lenin de tomar o poder e como um ensaio geral para o “Outubro Vermelho”.
No meu livro, Prelude to Revolution, concluí que a revolta caótica, sangrenta e por fim malsucedida de Julho era um reflexo exato da falta de vontade por parte dos soldados da guarnição de Petrogrado em aceitar o embarque rumo ao front em apoio à ofensiva russa de julho de 1917 e de uma genuína impaciência e insatisfação, generalizada e crescente por parte da grande massa de trabalhadores fabris de Petrogrado, bem como de soldados e marinheiros da frota do Báltico, com a manutenção do esforço de guerra e com os escassos resultados sociais e econômicos da revolução de fevereiro de 1917. No que diz respeito ao papel Bolchevique na preparação e organização do levante de julho, concluí que sua irrupção foi, em parte, produto de quatro meses de forte propaganda e agitação Bolcheviques; que trabalhadores fabris da base desempenharam um papel de liderança em seu princípio e que os líderes extremistas dos dois maiores braços auxiliares do partido, a Organização Militar Bolchevique e o Comitê Bolchevique de Petersburgo, pressionados por suas novas e impacientes bases, encorajaram-no contra o desejo de Lenin e da maioria do Comitê Central bolchevique.
Eu também arrisquei várias afirmações mais amplas, com implicações importantes para eventos subseqüentes, a partir de meus estudos sobre a insurreição de Julho. Uma parte delas dizia respeito às atitudes das massas de Petrogrado em relação ao Governo Provisório, aos sovietes, e aos Bolcheviques naquele momento. Investigando a evolução da opinião popular entre fevereiro e julho, concluí que entre os trabalhadores, soldados e marinheiros que de alguma forma agiram politicamente, o governo provisório já era – em meados do verão de 1917 – amplamente visto como um órgão das casses proprietárias, opostas a qualquer mudança política e social fundamental e alheias às necessidades populares. Por outro lado, embora os estratos mais baixos da população de Petrogrado sujeitassem os socialistas moderados a críticas crescentes pelo apoio dos últimos ao Governo Provisório e ao esforço de guerra, eles consideravam os sovietes em todos os níveis como instituições genuinamente democráticas de autogoverno popular. Daí compreende-se a gigantesca e crescente atração popular de dois dos principais slogans políticos dos Bolcheviques, “Todo Poder aos Sovietes!” e “Paz Imediata!”
Quanto à situação dos Bolcheviques, a insurreição de Julho terminou em uma derrota dolorosa e aparentemente decisiva para eles. No entanto, o que me pareceu mais significativo foi a grande popularidade do programa radical Bolchevique, demonstrada antes e durante o levante de julho. Num momento em que as expectativas populares de mudanças significativas eram altíssimas, e enquanto os outros grandes grupos políticos pediam paciência e sacrifício no interesse do esforço de guerra, o programa político Bolchevique radical, bem como a evidente sensibilidade do partido às necessidades e aspirações de cidadãos comuns, contribuíram significativamente para a influência e força consideráveis que ele adquiriu em apenas alguns meses.
Isso me levou a um segundo conjunto de afirmações refletidas na experiência de julho. Elas diziam respeito à imagem tradicional do partido Bolchevique em 1917 como uma organização essencialmente unida, autoritária e conspiratória, firmemente controlada por Lenin. Com base em pesquisas empíricas exaustivas, concluí que essa imagem guardava pouca relação com a realidade. Não apenas pelo fato de que de cima a baixo, desde março de 1917, a organização Bolchevique incluísse facções de esquerda, de direita e centristas, cada uma das quais ajudando a moldar a política do partido. Não menos importante, me pareceu, era o fato de que, em meio a condições instáveis, variando localmente e em constante mudança, como as que prevaleceram na revolucionária Petrogrado em 1917 (para não falar da Rússia como um todo), o Comitê Central Bolchevique era simplesmente incapaz de controlar as instâncias formalmente subordinadas a ele. As organizações de base eram relativamente livres para adaptar seus recursos e táticas às suas percepções das situações locais reais. A importância desse fator na interpretação do comportamento do partido Bolchevique durante a revolução de 1917 é, conforme concluí, difícil de superestimar.
Além disso, descobri que a concepção pré-revolucionária de Lenin de um partido pequeno, profissional e conspirador tornou-se obsoleta após a “Revolução de Fevereiro”, e que as portas do partido foram rapidamente abertas para dezenas de milhares de novos membros que também influenciaram sua política. Em outras palavras, em grande medida, a organização Bolchevique em Petrogrado era aberta e sensível às preocupações das massas populares. Indiscutivelmente isso causou grande dificuldade em julho. No entanto, concluí que a longo prazo, as extensas e cuidadosamente cultivadas conexões dos Bolcheviques nas fábricas, em uma miríade de organizações de trabalhadores e unidades militares, foram uma fonte importante da força do partido e de sua capacidade final de assumir o poder.
A reação
Osegundo momento revelador de 1917 que eu quero abordar é o breve período de reação em Petrogrado que se seguiu ao colapso da insurreição de julho. Este foi o momento em que a ofensiva russa, inicialmente bem-sucedida no front Oriental, se transformou na pior derrota do Exército russo, e justo quando Alexander Kerensky tornou-se primeiro-ministro. Kerensky encabeçou um governo de coalizão socialista liberal e moderado, basicamente preocupado em suprimir os Bolcheviques, restaurar a autoridade e a ordem interna (se necessário pela força) e, de alguma forma, reforçar o front em colapso.
Por um curto período, parecia que uma calmaria havia sido alcançada no movimento revolucionário dos trabalhadores. A opinião pública em Petrogrado parecia ter girado decisivamente para a direita. Apesar da retórica extravagante e linha-dura de Kerensky, repetida incessantemente por grupos civis e militares conservadores temporariamente ressuscitados, ficou claro que nenhuma das medidas repressivas tão ruidosamente proclamadas por Kerensky fora totalmente implementada ou alcançou seus objetivos (o que também não significa que, se o fossem, pudessem ter restaurado a ordem com sucesso). Mais do que isso, o perigo crescente da contrarrevolução, refletido em eventos como a Conferência de Moscou – a alardeada reunião de forças conservadoras em meados de agosto de 1917 – aumentou a desconfiança popular em relação ao Governo Provisório e estimulou o desejo de deixar o passado para trás e se reunir em torno da defesa da revolução. Encontrei essa reação massiva àquilo que era popularmente percebido como uma perigosa ameaça à revolução refletida em inúmeros documentos da época e que se reforçavam mutuamente.
Se a hostilidade em relação aos Bolcheviques por parte dos cidadãos comuns dissipou-se diante da ameaça evidente da contrarrevolução dentro de poucas semanas após o levante de Julho, então já na segunda metade de agosto – antes do fracassado putsch de direita do general Lavr Kornilov – já existiam sinais crescentes de que o partido, com seu aparelho essencialmente intacto, havia embarcado em um novo período de crescimento surpreendente e rápido. Percebi uma clara indicação do grau em que os destinos do partido melhoraram nos resultados das eleições de meados de agosto à Duma da cidade de Petrogrado. Nas eleições municipais, os Bolcheviques conseguiram um triunfo retumbante.
Saiba mais em: https://jacobin.com.br/2020/11/como-os-bolcheviques-venceram/
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