Nesta semana perdemos o historiador e crítico literário Alfredo Bosi para a COVID. Bosi, que identificou como poucos o núcleo escravocrata do liberalismo brasileiro e nos ajudou a pensar a política de morte da colonização, é mais uma vítima da permanência dessa ordem necrófila. Mas sua vida e obra inspiram o desejo coletivo de construir um novo futuro.
Por Marcos Queiroz/ Foto de Guilherme Gonçalves
Na manhã de ontem, faleceu Alfredo Bosi, em decorrência da Covid-19. Mais uma vítima do genocídio em curso pelo governo Bolsonaro. Mais uma vida, entre tantas, interrompida pelo Estado brasileiro. Mortes que vão levando o nosso melhor. Com Bosi, deixa-nos uma erudição singular. Professor e historiador da literatura brasileira, Bosi encarnava o melhor da crítica literária marxista. Um verdadeiro mestre, como lembrou Acauam Oliveira em bonita homenagem, que nos guia pelas profundezas da história como um maestro apresenta sua obra de arte.
Nesse momento de luto, as primeiras páginas do clássico Dialética da Colonização nos lembram o que a morte diz sobre a permanência da colônia em nosso tempo. Colônia, que entre suas raízes etimológicas, encontra o cultus. Colônia que, assim, não é apenas expropriar terra e gente, mas também expropriar a memória daqueles que se foram. Colonizar é destruir o culto dos mortos do colonizado e instituir um novo ritual – imposto pelo colonizador. Só esse tem o direito de lembrar dos seus antepassados, que passam a ser de todos. O colonizador torna-se dono do território e do trabalho alheio, bem como do tempo. Entrelaça à sua maneira o passado, o presente e o futuro. Assim, apossa-se da narrativa. Ao negar toda cerimônia que abra caminho para a volta das suas vítimas mortas, a colônia realiza, em seus termos, a lembrança, representa as origens, repropõe o nexo do indivíduo com uma totalidade espiritual ou cósmica. Neste enredo, para o colonizado, o lugar do culto aos antepassados é substituído pelo martírio.
Nós, como brasileiros, especialmente diante da atual tragédia, continuamos a conviver com esse lado espiritual da colônia: defuntos que vão para vala sem liturgia. Mortes sem enterro, de caixão fechado, no saco preto, nas portas de hospitais e UPAs, numa esquina qualquer. Mortos desaparecidos, anônimos, esquecidos, infamados, que viram apenas números na demografia corporal do extermínio. Na torrente de vítimas diárias, as cerimônias fúnebres são suspensas, metamorfoseadas em rituais de sacrifício, nos quais cada indivíduo é mera oferta a desaparecer perante a pulsão necrófila da ordem social. A morte como um fim em si mesmo. Bosi, que tanto nos ajudou a pensar a política de morte da colonização, é mais uma vítima da permanência constitutiva dessa ordem necrófila, que continua nos lançando à vala. De um país que nunca deixou seu passado senhorial para trás e que, por isso, continua vertendo sangue.
E, no entanto, nesse momento, quando cada corpo é conduzido ao sumidouro do esquecimento, a memória é capaz de restaurar a singularidade, de reconstruir o espaço simbólico do culto, no qual a vida que se foi é relembrada na sua idiossincrática completude. Aí, encontramos a presença daquele que, como poucos, soube pensar dialeticamente a relação entre cultura nacional e estrutura econômica, unindo-se a Antonio Candido e Roberto Schwarz na famosa tríade da crítica literária brasileira. Está também a memória daquele que identificou como poucos o núcleo escravocrata do liberalismo brasileiro, o mesmo liberalismo senhorial, da propriedade privada absoluta e do gozo pela violência, que continua a nos governar até os dias de hoje. Daquele que encavalou o processo histórico na nossa literatura, que soube ver a colônia a mercantilizar-se em Padre Antônio Vieira e Gregório de Matos, que entendeu nossa razão sacrificial em José de Alencar e que compreendeu o auge e a decadência da escravidão em Machado de Assis. O Bosi da cultura universal e da história concisa, que como poucos sabia fazer o ziguezague entre o concreto e o abstrato para entender o Brasil.
A lembrança é como um culto – vínculo entre mortos e vivos. Se as tragédias trazem na memória e na linguagem aqueles mortos que não devem morrer, no meio dos seus escombros também se encontram os combates pelos quais vale viver – e lutar. Que a memória de Bosi sustente a vontade de superar tudo aquilo que ele singularmente analisou e criticou. Que a sua vida continue inspirando a possibilidade de outro futuro, e nosso desejo coletivo de construí-lo.
Veja em: https://jacobin.com.br/2021/04/em-memoria-a-alfredo-bosi/
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