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ENTREVISTA: ‘VIVEMOS UMA DITADURA DO SISTEMA FINANCEIRO’, DIZ EDUARDO MOREIRA, EX-BANQUEIRO QUE AGORA TRABALHA COM MST

O carioca Eduardo Moreira, que ajudou a ‘hackear’ o próprio mercado para financiar projetos do MST, vê os bancos como o fator que mais corrói a democracia.

Por: Vinicius Konchinski

O CARIOCA EDUARDO MOREIRA, de 45 anos, fez carreira no mercado financeiro. Foi sócio de um banco e fundador de outro. Hoje, porém, dedica grande parte de sua energia criticando o trabalho de seus ex-colegas. Já escreveu três livros sobre problemas econômicos que assolam o país e ajudou a “hackear” o sistema ao usar o próprio mercado para financiar projetos do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, o MST.

Conversei com Moreira, que também se tornou youtuber, por cerca de uma hora, entre um compromisso e outro. Para ele, os bancos brasileiros são o que mais corrói e corrompe a democracia do país, abusando do poder de controlar, conforme seus interesses, para onde vão os recursos essenciais para a geração de riqueza no país.

“É como se você tivesse num condomínio com 100 apartamentos, e um morador tivesse ganhado uma procuração de 50 apartamentos para votar por eles na reunião. A gente dá uma procuração aos bancos para ‘votarem’ no país que eles querem”, me disse ele.

Conhecedor desse controle, Moreira usou o que aprendeu como banqueiro para conseguir que cooperativas do MST tomassem empréstimos diretamente com 1,5 mil investidores a juros baixíssimos. Fez o MST emitir títulos de dívida, os CRA, certificado de recebíveis do agronegócio, um papel que circula pelo mercado financeiro do país.

Na conversa, ele explicou como isso foi possível, como a experiência do MST pode ser replicada por cooperativas de outros segmentos produtivos, além de como o governo poderia – se quisesse – ajudar.

Defendeu também mais regulação do setor bancário. Apontou, inclusive, que a forma como os bancos agem tem algo de perverso. “Você ter um país em pandemia, na segunda semana o governo anunciar um programa de R$ 1,2 trilhão para bancos, e isso demorar para chegar a pessoas e pequenas empresas? Isso é corrupção!”, bradou.

E se é aí que está a verdadeira corrupção, o que explica que bancos e o dito mercado sigam apoiando o governo Bolsonaro, e em especial Guedes, independentemente de quão quebrado esteja o país, disse, são vantagens de sempre. Se eles não estão ganhando dinheiro diretamente nas ações, estão ganhando e muito naquilo que está sendo liquidado a “preço de banana” pelo governo enquanto parte da nação passa fome.

Retrato do economista Eduardo Moreira em sua residência, São Paulo - BR, 29/11/21. Para The Intercept Brasil.
‘O mercado financeiro é onde rico empresta para rico, pobre perde dinheiro para rico e empresta dinheiro para rico também’, diz Moreira. Foto: Ivan Pacheco para o Intercept Brasil

Intercept – Por que o MST recorreu ao mercado financeiro para buscar recursos?

Eduardo Moreira – O MST, como qualquer um que quer empreender, precisa de recursos. E esses recursos já são obtidos no mercado financeiro. Só que são obtidos por meio de empréstimos dados por bancos a taxas absolutamente absurdas. Só a título de curiosidade: a taxa de juros mais alta cobrada hoje no Brasil é de 965% ao ano. Uma pessoa que pega R$ 10 mil emprestado nessa taxa, em cinco anos, deve R$ 1,5 bilhão. Ninguém tem noção disso! Tem gente que fala que é um contrassenso o MST pegar dinheiro no mercado financeiro. Quem fala isso não tem a menor ideia de como funciona um acampamento ou assentamento. Todo mundo que produz, seja de acampamento, agricultor familiar, seja de qualquer lugar, tem que pegar dinheiro para comprar sementes, ferramentas. Elas pegam dinheiro no mercado financeiro.

Como surgiu a ideia?

O MST, há um ano e meio, precisava pagar uma grande reforma de uma planta de produção de arroz orgânico e carne suína perto de Porto Alegre. Eles tinham resolvido ampliar a planta, mas, com o novo governo, todas as linhas de crédito público para isso foram cortadas. Faltava R$ 1,5 milhão para a reforma. Me perguntaram se eu conhecia algum banco para buscar financiamento. Eu disse: “não vão para o banco, não. Deixa eu juntar uns investidores. Em vez de o nosso dinheiro estar no banco financiando o que a gente nem sabe o que é, a gente quer começar a investir em algo que a gente acredita”.

Investimos em algo que paga uma taxa de juros muito baixa, para ganhar o equivalente ao ganho da poupança, mas que financia a agricultura orgânica, que ajuda famílias a desenvolver uma agricultura familiar, a produzir alimentos que não sejam para exportação, mas para alimentar uma população que passa fome. Fizemos um CRA, certificado de recebíveis do agronegócio, um título de dívida, e uma securitizadora padronizou esse título para ele poder ser comercializado. Primeiro, o MST, na verdade, pegou dinheiro emprestado comigo e outros seis investidores. Fizemos o CRA já para fazer um projeto piloto. Queríamos que esses títulos padronizados, de mercado, levassem dinheiro para as pessoas que não são atendidas pelo mercado financeiro.

Por que não são atendidas?

O mercado financeiro é onde rico empresta para rico, pobre perde dinheiro para rico e empresta dinheiro para rico também. Nunca as pessoas que são mais pobres conseguem acessar dinheiro a uma taxa competitiva. Isso é muito importante. No Brasil, o pobre pega dinheiro a uma taxa mais alta que o rico. O pobre tem menos capital que o rico. O rico, que já tem capital, consegue ter escala na produção. Como o pobre vai ser competitivo? Só consegue essa competitividade com subsídios para compra de materiais, de tratores.

‘O mercado financeiro é onde rico empresta para rico, pobre perde dinheiro para rico e empresta dinheiro para rico também.’

Isso foi cortado. Aí você inviabiliza o pequeno negócio. O pequeno vai quebrando, perdendo todos os negócios dele para os grandes, até o dia em que ele está endividado até a alma e vende sua terra para o grande. O assentado não pode vender, porque não tem a posse da terra, que é da União. O que o governo quer agora? Dar o título para que ele venda para um grande. Por isso o MST é contra a titulação [de terras em nome dos assentados].

A ideia de criar um título da dívida do MST foi testar o modelo em outras operações?

Sim. Inauguramos no Brasil o conceito de financiar o mundo que acreditamos. Depois da primeira operação, tínhamos um novo desafio: fazer com que todo mundo pudesse fazer isso. A primeira operação, para poder sair rapidamente, foi para investidor qualificado, que tem pelo menos R$ 1 milhão em investimentos. E eles, em tese, estão mais acostumados com risco, e não vão ser destruídos se perderem dinheiro com esse investimento. Há menos exigências da CVM [Comissão de Valores Mobiliários].

Mas queríamos o Brasil inteiro fazendo isso. Resolvemos então fazer uma segunda operação disponível para o pequeno investidor. Há uma instrução da CVM que exige uma infinidade de informações, de licenças, de alvarás, para mostrar que todas as atividades que serão financiadas são 100% legais e regulares, para proteger o pequeno investidor. Foi feito um documento de mais de 600 páginas que quebrou todo um argumento de que o MST é um banco de terroristas. Passou-se pelo maior de todos os crivos. Aí fizemos essa segunda emissão, aberta para todo mundo. Perguntamos: “quem topa investir, sabendo que vai receber menos financeiramente, mas vai receber mais em retorno para o mundo?”

Houve resistência do mercado a essa ideia? 

Muito repórter perguntava: “mas essa operação tem um retorno menor. E aí?”. Eu digo sempre: tem um retorno financeiro menor, mas retorno é algo muito além da taxa de juros. Adianta comprar um arroz que desmata, que faz propaganda antivacina, que tem milícia de fazendeiro, que exporta para outro país e pagar R$ 0,10 a menos? O que é retorno? O que volta do investimento? Essa operação tem um retorno inédito. Essa operação foi pequena, de R$ 17,5 milhões, mas deu retorno a 13 mil pessoas do MST.

Quantas pessoas compraram o título da dívida para financiar o MST?

Os títulos foram divididos entre dois tipos de investidores. Um comprou R$ 3 milhões em cotas subordinadas e outros  puderam comprar R$ 14,5 milhões em cotas seniores. O que é uma cota subordinada e uma cota sênior? Suponhamos que 10 pessoas emprestem R$ 100 cada para um indivíduo que precisava de R$ 1 mil. Se essa pessoa devolve só R$ 500, cada um que emprestou deveria receber R$ 50, certo? Mas, se entre essas 10 pessoas, você tiver cinco que comprem uma cota subordinada e cinco que fiquem com a cota sênior, antes de impactar a cota sênior, você come toda a cota subordinada. Se o indivíduo deixar de pagar R$ 500, quem tem cota subordinada perde tudo e todo mundo com cota sênior recebe. É uma proteção.

Nesta operação do MST, se você tivesse uma inadimplência de R$ 3 milhões, o pequeno investidor não perdia nada. Cinco mil pessoas abriram conta na corretora para investir nessas cotas, e 1,5 mil conseguiram efetivamente investir [média de R$ 9 mil por investidor efetivo], porque só havia R$ 14,5 milhões disponíveis para serem vendidos. Isso é incrível. Uma operação ligada ao MST, sem propaganda, com uma taxa de 5,5% ao ano, quando o governo já tomava empréstimos a 11%. É histórico no mundo. Uma cooperativa captar dinheiro por cinco anos numa taxa que é metade da taxa livre de risco no país, que é a taxa da emissão da República. E isso poderia ser feito com cooperativas de pescadores, de artesãos, pode ser geograficamente estabelecido, ou seja, investido na cidade ou comunidade delas.

A member of the Landless Workers Movement (MST) sells products, made by MST members in the lands where they are settled, during the annual MST Fair at Carioca Square in downtown Rio de Janeiro, Brazil on December 12, 2018. - The Landless Workers Movement (MST), was born in 1984 and became one of the most important social organizations in Latin America, which since its origins has been claming for arable land for small farmers, defending an environmentally friendly agriculture, the opposite concept to the current model. The inauguration of Bolsonaro's far-right new government in January augurs even harder times for the Movement. (Photo by Mauro Pimentel / AFP)        (Photo credit should read MAURO PIMENTEL/AFP via Getty Images)
Moreira usou o que aprendeu como banqueiro para conseguir que cooperativas do MST tomassem empréstimos diretamente com 1,5 mil investidores a juros baixíssimos. Foto: Mauro Pimentel/AFP via Getty Images

Como isso poderia ser ampliado? 

Hoje, no Brasil, existem cerca de R$ 4 trilhões investidos em fundos, poupanças, etc. Se tivermos 5% desse valor, teremos R$ 200 bilhões para financiar produção sustentável. Isso não é doação, não. Tem retorno. Se isso fosse uma política de estado, se tivéssemos o governo investindo na cota subordinada, teríamos muito recurso para investimento a custo zero do orçamento. Isso não é gasto. O governo vai receber de volta.

Tem quase R$ 5 trilhões nos bancos que poderiam ser usados para tudo que é necessário no Brasil. Isso não acontece, porque quem decide o que fazer com esse dinheiro são os bancos. Eles que escolhem emprestar para as mesmas famílias, os mesmos latifundiários –até porque os bancos, muitas vezes, são sócios desses negócios todos. Quando você tira esse poder dos bancos, você destrava a economia e tem um ganho enorme até em democracia, pois há uma distribuição de poder. O poder de escolha de onde a riqueza do país será empenhada é um poder democrático, que afeta diretamente os rumos do país.

‘Quem mais alimenta desigualdade e privilégios é o sistema financeiro.’

O governo decide fazer um programa para incentivar a indústria tecnológica, mas tem R$ 3 milhões para emprestar. Peraí, não tem dinheiro no país? Claro que tem. Tem R$ 5 trilhões. As pessoas não poderiam financiar esse programa? Poderiam, mas os bancos não deixam. Eles querem essa procuração para votar no país que eles precisam.

A operação do MST foi um grande sacolejo. Gerou um monte de críticas. Tentaram boicotar. Por que essa preocupação? Porque ela foi um golpe frontal na estrutura do sistema financeiro brasileiro, que, na minha opinião, é quem mais corrói e corrompe a democracia e economia brasileira. É o maior câncer do Brasil. Quem mais alimenta desigualdade e privilégios é o sistema financeiro.

Como assim?

Um dos maiores problemas que temos é o acúmulo de poder entre aqueles que são donos de instituições financeiras. O sistema financeiro do Brasil é concentrado. Os cinco maiores bancos do Brasil detêm cerca de 90% dos ativos do setor: os títulos, ações, títulos da dívida pública, etc. Se formos olhar só para a dívida pública, quase 90% dela – cerca de R$ 5 trilhões – é controlada nos escritórios dos principais bancos e corretoras do país..

Mas esse dinheiro não é dos bancos. Ele está no bancos. O dinheiro é teu, é meu, da dona Maria e do José. A questão no Brasil é que, em vez das pessoas terem essas dívidas diretamente, elas dão o dinheiro para o banco, para ele comprar essa dívida. Só 1,5% da dívida brasileira está nas mãos de pessoas físicas. O cliente compra um CDB, ou um título no banco. O banco precisa rentabilizar esse dinheiro e compra dívida pública. Só que o cliente poderia não usar esse intermediário. Esse intermediário cobra uma fortuna, mas não só.

Aqui, a gente vai chegar no principal entrave para o desenvolvimento brasileiro: a gente delega o mundo que a gente quer para ser escolhido pelos bancos. Se 90% da dívida é controlada pelo bancos, quando o governo diz que vai passar uma reforma, vai furar o teto de gastos, vai mudar a Lei de Responsabilidade Fiscal, começa a chantagem dos bancos: “se você fizer isso, a dívida vai ter taxa mais alta, porque o risco país vai aumentar”. O banco toma essa decisão com dinheiro que não é dele. Ele escolhe o que vai passar ou não. Esse grupo decide o rumo do país, decide o que vai ser feito. É como se você tivesse num condomínio com 100 apartamentos, e um morador tivesse ganho uma procuração de 50 apartamentos para votar por eles na reunião. Ele é dono de um apartamento, mas manda no condomínio. Pode ser um ditador, decidir todas as regras, já que tem uma procuração para votar por todos. É isso que a gente faz no sistema financeiro do Brasil. A gente dá uma procuração aos bancos para “votarem” no país que eles querem. E aí, a gente vive uma ditadura do sistema financeiro. Muitas pessoas que se dizem ambientalistas têm seu dinheiro emprestado para uma mineradora. Muitos pacifistas podem estar emprestando dinheiro para uma fabricante de armas. Muitos camponeses, pressionados pelo avanço do agronegócio, podem estar emprestando para os latifundiários sem saber.

Saiba mais em: https://theintercept.com/2021/12/16/vivemos-ditadura-sistema-financeiro-ex-banqueiro-trabalha-mst-eduardo-moreira/

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