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Eugene Debs, o socialista norte-americano que lutava pela paz

Reconhecendo o fato histórico do militante Eugene Debs lutar pelo socialismo no país onde a estrela do capitalismo brilhava vitoriosamente, o marxista peruano Carlos Mariátegui escreveu uma análise sobre como sua ascensão política o levou a uma injusta prisão. Para marcar o 95º aniversário de sua morte, republicamos esse artigo.

Por: José Carlos Mariátegui |Tradução: Luiz Bernardo Pericás |Créditos da foto: Fotosearch / Getty

Trecho extraído do livro Do sonho às coisas: retratos subversivos, de José Carlos Mariátegui (Boitempo, 2005).


Eugene V. Debs, o velho Gene, como o chamavam seus camaradas norte-americanos, teve o elevado destino de trabalhar pelo socialismo no país onde o capitalismo é mais vigoroso e próspero e onde, por conseguinte, suas ins­tituições e suas teses se apresentam mais sólidas e vitais. Seu nome preenche um capítulo inteiro do socialismo norte-­americano, que, provavelmente contra a crença de muitos, não tem carecido de figuras heróicas. Daniel De-León, marxista brilhante e aguçado que dirigiu durante vários anos o Socialist Labour Party e John Reed, militante de grande envergadura, que acompanhou Lenin nas primeiras jornadas da Revolução Russa e da Terceira Internacional compartilham com Eugene Debs a cara e sombria glória de haver semeado a semente da revolução nos Estados Unidos.

Menos célebre que Henry Ford, cuja fama apregoam milhões de automóveis e affiches no mundo, Eugene Debs, de quem o telégrafo nos falou na ocasião de sua morte como uma figura “pitoresca”, era um representante do verdadeiro espírito, da autêntica tradição norte­-americana. As idéias e a obra do humilde e modesto agitador socialista influem na história dos Estados Unidos 100 mil vezes mais que a obra e os milhões do fabuloso fabricante de automóveis. Naturalmente aqueles que imaginam que a civilização é apenas um fenômeno material não conseguem compreender isso. Mas a história dos povos não se preocupa, felizmente, com a surdez e miopia dessa gente.

Debs entrou na história dos Estados Unidos em 1901, ano em que fundou com outros líderes o Partido Socialista da América. Dois anos mais tarde esse partido escolheu Debs como seu candidato à presidência da República. Essa não era, obviamente, nada mais que uma escolha romântica. O socialista norte­-americano não vislumbrava nas eleições presidenciais nada mais que uma oportunidade de agitação e propaganda. O candidato vinha para ser unicamente aquele que encabeçaria a campanha.

O partido socialista adotou uma tática oportunista. Aspirava em ser o terceiro partido da política ianque, na qual, como se sabe, até as últimas eleições, não eram visíveis senão dois campos: o republicano e o democrata. Para realizar esse propósito, o partido transigiu com o reformismo medíocre e burocrático da Federação Americana do Trabalho, submetida ao “caciquismo” de Samuel Gompers. Essa orientação correspondia à mentalidade pequeno­ burguesa da maioria do partido. Mas Debs, pessoalmente, se mostrou sempre superior a ela.

Quando a guerra mundial produziu nos Estados Unidos uma crise do socia­lismo – pela adesão de uma parte de seus elementos ao programa de reorganização mundial em nome do qual Wilson lançou seu povo na contenda –, Debs foi um dos que sem vacilações ocuparam seu posto de combate.

Por sua propaganda antibélica, Debs, encarcerado e processado como derro­tista, foi finalmente condenado a 10 anos de prisão. Até onde a censura havia permitido, Debs havia impugnado a guerra e denunciado seus motivos através da imprensa socialista. Mais tarde, havia continuado sua campanha em reuniões e comícios. Seus juízes encontraram motivo para lhe aplicar a lei de espionagem.

Desdenhoso e altivo, Debs não quis defender­-se. “Não me importa o que foi deposto contra mim”, declarou ao tribunal. “Não me preocupo em evadir-­me de um veredito desfavorável, assim como não retiro nenhuma palavra de tudo que disse em Canton [localidade de Ohio onde pronunciou o discurso pacificista que precedeu sua prisão], ainda que soubesse que fazendo isso me salvaria de uma pena de morte. O imputado não sou eu! É a liberdade da palavra. Diante do júri estão hoje as instituições republicanas. O veredicto corresponde ao futuro.”

O velho agitador escutou, sem comover­-se com a sentença de seus juízes. Despediu­-se de seus amigos presentes na audiência com estas palavras: “Digam aos camaradas que entro no cárcere como ardente revolucionário, com a cabeça erguida, o espírito intacto e a alma inconquistada”.

Na prisão, Debs recebeu honrosas demonstrações de solidariedade de homens livres e excepcionais e das massas proletárias da Europa. Uma vez perguntado sobre os motivos pelos quais se negava a visitar os Estados Unidos, Bernard Shaw respondeu que nesse país o único lugar digno dele era o mesmo em que se encontrava seu amigo e correligionário Eugene Debs: o cárcere. A prisão de Debs foi considerada, por todas as consciências honradas do mundo, como a maior mancha do governo Wilson.

Nas eleições de 1920, Eugene Debs foi mais uma vez o candidato presidencial dos socialistas norte-­americanos. As forças socialistas se encontravam divididas pela crise pós­-bélica que havia acentuado o conflito entre os partidários da reforma e os instigadores da revolução. Não obstante, o nome de Debs recebeu no país cerca de um milhão de votos. Esse milhão de eleitores praticamente não votava. A luta pela presidência estava limitada a Harding, candidato dos republicanos, e Cox, candidato dos democratas. Os que votavam em Debs lutavam contra o Estado capitalista. Votavam contra o presente, e pelo futuro.

Finalmente anistiado, Debs encontrou virtualmente concluída sua missão. Os espíritos e as coisas haviam sido mudados pela guerra. Na Europa discu­tia-­se o problema da revolução. Nos Estados Unidos se formava uma corrente comunista sob um capitalismo ainda onipotente. Havia começado um novo capítulo da história do mundo. Debs não estava em tempo de recomeçar. Era um sobrevivente da velha guarda. Seu destino histórico havia terminado com o heróico episódio de sua prisão.

Mas isso não diminui a importância de Debs. Seu destino não era o de um triunfador. E ele o sabia muito bem, desde os distantes e nebulosos anos em que, consciente de seu fardo, o aceitou com alegria. Abraçou o socialismo, a causa de Espartacus, numa época em que a estrela do capitalismo brilhava vitoriosa e esplêndida. Não se vislumbrava o dia da revolução. Mais do que isso, sabia­-se que estava muito remoto. Porém era necessário que houvesse aqueles que acredi­tassem nele. E Debs quis ser um de seus confessores, um de seus enunciadores.

Para os cortesãos do êxito, uma vida de textura tão heróica talvez não tenha sentido. Eugene Debs pode não ser para eles nada mais que uma figura “pito­resca”, como há poucos dias assim o chamou um jornalista qualquer. Mas o veredicto sobre esses homens felizmente não é pronunciado pelos jornalistas e menos ainda pelos jornalistas norte-­americanos. Como já disse Debs, corres­ponde ao futuro.

Veja em: https://jacobin.com.br/2021/10/eugene-debs-o-socialista-norte-americano-que-lutava-pela-paz/

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