Espectro da fome, cada vez mais assustador no Brasil, assombra o mundo todo. Modelo agrícola atual é, além de devastador, vulnerável. Opção agroecológica é real – mas requer políticas públicas. Como promover a mudança de paradigma?
Por: Antonio Martins
Uma em cada duas famílias brasileiras sofre de insegurança alimentar – ou seja, seus membros não sabem, ao despertar, se poderão alimentar-se adequadamente ao longo do dia. Em apenas doze meses, o preço do óleo de soja subiu 83,79%; o do feijão, 48,19%; e o do músculo, um dos cortes bovinos menos caros, 46,06%. A cena urbana brasileira agora é marcada pelas famílias que imploram por comida diante dos supermercados, ou pelas pequenas multidões que se aglomeram em bairros como a Glória (zona Sul do Rio), para esperar que motoristas de caminhão lhes doem ossos e pelanca bovinos – antes destinados aos cães. Mas seriam a fome e os preços descontrolados da comida uma nova jabuticaba brasileira?
O primarismo arrogante do governo Bolsonaro tem o poder de agravar qualquer drama, mas uma série de dados demonstra que estamos diante de um problema mais profundo e estrutural. O pesquisador holandês Jan Douwe van der Ploeg, professor nas Universidade de Wageningen, na Holanda, e de Pequim, na China e parceiro intelectual de diversos movimentos camponeses pelo mundo afora, está empenhado em compreendê-lo. Num vasto estudo, que acaba de ser traduzido e publicado no Brasil – e que Outras Palavras publicou em três partes [1 2 3] – ele aponta a existência de uma crise alimentar e agrícola global associada à pandemia da Covid-19, mas com origens anteriores a ela. Entre outros fenômenos, Van der Ploeg destaca “a configuração a pleno vapor de uma onda de fome” e a elevação em cerca de 50%, nos últimos dois anos, dos preços das commodities agrícolas.
A pandemia, pensa o professor, serviu como gatilho. Ela atingiu múltiplos setores da cadeia agroalimentar – de frigoríficos fechados pelo isolamento social a rotas marítimas interrompidas e restaurantes vazios. Ao fazê-lo, destroçou ou impôs perdas severas a pequenos produtores de bens e serviços e permitiu que os gigantes ocupassem espaço ainda maior. Mas se isso se deu, é porque o modelo dominante já era regido por uma espécie de lei das selvas.
Van der Ploeg desvenda o mundo dos impérios alimentares que hoje dirige a produção do alimento do mundo. Um punhado de corporações gigantescas, mostra ele, controla das sementes aos fertilizantes, agrotóxicos, estocagem dos produtos, vias de transporte, industrialização e varejo. Tais impérios são cada vez mais financeirizados. Por visar, essencialmente, o lucro máximo e a acumulação, a produção passou a depender dos serviços financeiros – empréstimos, seguros, garantias, fundos de todos os tipos, mercados gigantescos de derivativos – que cresceram a seu redor. Um punhado de banqueiros pode, por exemplo, deixar de oferecer crédito a determinado setor agrícola (por julgar que oferecer riscos superiores à média) e inviabilizá-lo.
Os impérios alimentares e as finanças articuladas com eles, prossegue Van der Ploeg, adquiriram, na configuração hegemônica, poder sobre o mundo agroalimentar muito superior ao dos Estados e sociedades. Por isso, os preços e as políticas variam movidos por interesses muito poderosos – não por objetivos humanistas, como reduzir a fome ou oferecer alimentação saudável. Porém, alerta o autor, o sistema tem pés de barro. A produção real apoia-se na estrutura financeira. O que acontecerá se esta revelar-se, como na crise de 2008, um castelo de cartas?
Felizmente, sustenta por fim van der Ploeg, a Agroecologia avançou muito nas últimas décadas – e pode consolidar-se como alternativa. O último capítulo do estudo descreve os progressos, tanto entre os que produzem alimentos (e constróem aos poucos um modelo contra-hegemônico) quanto entre os consumidores (que rejeitam crescentemente os ultraprocessados, os venenos agrícolas, a homogeneização que destrói antigas culturas alimentares). Mas o trabalho não difunde um otimismo vazio. O autor aponta, também, os limites a um avanço agroecológico mais vasto. E chega a apontar, ao final, caminhos concretos para superar estes entraves.
O trabalho de van der Ploeg foi traduzido e editado no Brasil pela AS-PTA, uma associação de pesquisadores e ativistas empenhados na construção da Articulação Nacional da Agroecologia e na assessoria direta a organizações e movimentos camponeses. Será publicado em três partes neste site, entre hoje e 6/10. Nos próximos meses, a AS-PTA e Outras Palavras trabalharão em conjunto para produzir uma sequência de textos e diálogos sobre um novo modelo agrícola para o Brasil. A cada mês, haverá um novo ensaio e um diálogo, via internet, sobre ele. Este esforço resultará também na construção, em parceria, de um dos capítulos do projeto Resgate, por meio do qual queremos refletir sobre um Brasil pós-neoliberal.
O primeiro diálogo da série ocorrerá nesta quinta-feira, 7/10, às 16h. Teremos o prazer de ouvir Jan Douwe van der Ploeg. Ele conversará, com Roselita Vitor, liderança proeminente de um dos movimentos territoriais de agroecologia mais avançados no Brasil – o da região da Borborema, na Paraíba. O encontro, virtual, poderá ser acompanhado nas redes de Outras Palavras e da AS-PTA. O ensaio de Van der Ploeg pode ser lido nos três capítulos publicados por Outras Palavras [1 2 3], ou na íntegra, em pdf.
Veja em: https://outraspalavras.net/resgate/2021/10/07/podera-a-agroecologia-alimentar-o-planeta/
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