Insegurança alimentar grave ou moderada atingiu 27,7% da população no final do ano passado, ou 58 milhões de brasileiros, contra 16,8% em 2004. Pandemia acelerou alta da fome registrada desde 2014, aponta pesquisa.
As consequências sociais e econômicas da pandemia de covid-19 agravaram a fome no Brasil, que já vinha aumentando e superou em 2020 os níveis registrados no início da década passada, quando foi criado o Bolsa Família.
Uma pesquisa realizada em novembro e dezembro passados com 2 mil pessoas mostrou que 15% estavam em insegurança alimentar grave, e 12,7% em insegurança alimentar moderada, o que significa que corriam o risco de deixar de comer por falta de dinheiro. Em relação à população brasileira como um todo, isso equivaleria a 58 milhões de pessoas.
Outros 31,7% estavam em insegurança leve, quando há preocupação de que a comida acabe antes de se ter dinheiro para comprar mais ou faltam recursos para manter uma alimentação saudável e variada.
Segundo a pesquisa, portanto, 59,4% da população enfrentava no final do ano passado algum grau de insegurança alimentar, o equivalente a um total de 125 milhões de pessoas.
O resultado mostra a aceleração do aumento da fome no Brasil, que tinha voltado a crescer antes da pandemia em um contexto de crise econômica e desmobilização de políticas públicas de segurança alimentar.
O levantamento foi feito por pesquisadores do grupo “Alimento para Justiça” da Universidade Livre de Berlim, em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a Universidade de Brasília (UnB), com financiamento do governo alemão, e divulgado nesta terça-feira (13/04).
Quais são os principais resultados
A parcela estimada de 59,4% dos brasileiros que enfrentam algum grau de insegurança alimentar é quase 23 pontos percentuais maior do que a registrada na última Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). De acordo com o levantamento do IBGE, que mede o mesmo fenômeno, 36,7% da população enfrentava algum grau de insegurança alimentar em 2017 e 2018.
O melhor resultado no acesso à alimentação estável e saudável no país foi alcançado em 2013, quando 22,6% dos brasileiros tinham algum grau de insegurança alimentar. Em 2009, essa fatia representava 30,2% da população.
A série histórica começa em 2004, ano seguinte à criação do Bolsa Família, quando 16,8% dos brasileiros enfrentavam insegurança alimentar grave ou moderada, e outros 18% estavam em insegurança leve.
A pesquisa da Universidade Livre de Berlim tem parte da sua metodologia similar à do IBGE, mas as duas não são idênticas. O IBGE entrevista um universo maior de domicílios, presencialmente, e faz mais perguntas.
Desigualdade regional e de cor e gênero
O levantamento também mostra que a insegurança alimentar se distribui de forma desigual pelo país.
No Nordeste, 73,1% da população estava nessa categoria, e no Norte a taxa é de 67,7%. Já no Sul, 51,6% dos domicílios estavam em insegurança alimentar, e 53,5% dos localizados no Sudeste.
O mesmo ocorre em relação à cor da pele das pessoas entrevistadas, com maior prevalência de insegurança alimentar entre os pardos e pretos. Entre os brancos, 48,9% apresentaram algum grau de insegurança alimentar, contra 66,8% dos pretos e 67,8% dos pardos.
O problema também é mais frequente na casas chefiadas apenas por mulheres, com 73,8% dos domicílios nessa situação.
“A insegurança alimentar é um retrato das desigualdades múltiplas interseccionais. Ela tem cor, tem gênero e ilustra um retrato do Brasil”, diz Renata Motta, professora de sociologia da Universidade Livre de Berlim que liderou a pesquisa.
As dificuldades econômicas agravadas pela pandemia também levaram à redução da diversidade de alimentos saudáveis ingeridos nos domicílios. Entre os entrevistados, 41% disseram ter reduzido o consumo de frutas, e 44% o de carnes. Entre aqueles em insegurança alimentar a redução no consumo de alimentos saudáveis foi de 85%.
Impacto do auxílio emergencial
Os resultados da pesquisa só não foram ainda piores graças ao auxílio emergencial, criado em abril do ano passado. Entre os entrevistados que tinham recebido pelo menos uma parcela do auxílio, 63% usaram o dinheiro para comprar comida.
Quando o levantamento foi realizado, o valor do auxílio já havia sido reduzido à metade da quantia inicial, de R$ 600 para R$ 300. O benefício foi encerrado em dezembro, e no primeiro trimestre deste ano a população pobre que perdeu renda ou enfrentava dificuldades por conta da pandemia ficou sem o auxílio.
Nesse período, diz Motta, pode-se esperar que a insegurança alimentar da população tenha crescido. “Os dados da nossa pesquisa, com o auxílio de R$ 300, já são dramáticos. É bem provável que a porcentagem de domicílios em insegurança alimentar grave tenha aumentado demais [sem o auxílio]”, afirma.
O auxílio emergencial voltou a ser pago em abril, em um valor mais baixo do que no final do ano passado – a maior parte dos beneficiários deverá receber R$ 150 ou R$ 250 por mês. A nova rodada deve ter quatro parcelas mensais.
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