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Fome, pandemia e a ONU em ponto morto

Três especialistas alertam: em momento em que 265 milhões de pessoas estão ameaçadas pela carestia, entidade organiza Cúpula dos Sistemas Alimentares sem espaço para discussões cruciais, como a soberania alimentar e a Agroecologia

Por Michael Fakhri, Hilal Elver e Olivier De Schutter

Os sistemas alimentares globais têm falhado com a maioria das pessoas há muito tempo, e a pandemia de covid-19 agravou a situação. 265 milhões de pessoas estão ameaçadas pela fome, um aumento de 50% em relação ao ano passado; 700 milhões sofrem de fome crônica; e mais 2 bilhões de desnutrição, com a obesidade e outras doenças relacionadas à dieta aumentando em todas as regiões do mundo.

Todos concordam que precisamos de soluções e de ações urgentes. A convocação da Cúpula dos Sistemas Alimentares da ONU deste ano pelo Secretário-Geral António Guterres foi, portanto, bem-vinda. No entanto, à medida que avançamos para momentos críticos no caminho para a Cúpula, continuamos com a profunda preocupação de que esta “cúpula dos povos” irá falhar com as pessoas que afirma servir.

Depois de mais de um ano de deliberações, os participantes da Cúpula se reunirão neste mês de outubro em Nova York para apresentar “princípios para orientar governos e outras partes interessadas que buscam alavancar seus sistemas alimentares” para apoiar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Seremos informados de que os resultados foram endossados pelos grupos da sociedade civil que participaram e que foram coletadas propostas de “soluções” por dezenas de milhares de pessoas em todo o mundo. E se outras soluções não existirem, seremos informados de que isso ocorre porque seus proponentes se recusaram a vir à mesa para dialogar.

Mas vir à mesa para discutir “soluções” não é tão simples quanto parece. E se a mesa já estiver posta, os lugares previamente estabelecidos sem negociação e o cardápio muito limitado? E se a conversa real estiver realmente acontecendo em uma mesa diferente?

Essas preocupações continuam tão urgentes quanto eram no dia 1.

Primeiro, a Cúpula inicialmente ignorou os órgãos que já realizavam o árduo trabalho de governar os sistemas alimentares globais. O Comitê de Segurança Alimentar Mundial (CSA) da ONU já conta com a estrutura que os organizadores da Cúpula vêm reconstruindo às pressas: um espaço para discutir o futuro dos sistemas alimentares, um compromisso integral com o direito à alimentação, mecanismos para envolver a sociedade civil e o setor privado em seus próprios termos e um painel de especialistas que fornece, de maneira regular, relatórios de ponta. Em outras palavras, todos já estão à mesa. A Cúpula flagrantemente – e talvez deliberadamente – desviou a atenção dos governos do CSA.

Em segundo lugar, as regras de engajamento da Cúpula foram determinadas por um pequeno conjunto de atores. O setor privado, organizações que atendem ao setor privado (notadamente o Fórum Econômico Mundial), cientistas e economistas iniciaram o processo. A mesa estava posta com suas perspectivas, conhecimentos, interesses e preconceitos. Investidores e empresários que trabalham em parceria com cientistas definiram a agenda, e governos e atores da sociedade civil foram convidados a trabalhar dentro desses parâmetros. Inevitavelmente, isso significou um foco no que o pequeno grupo via como soluções escalonáveis, amigáveis ao investimento e “revolucionárias” – o arroz com feijão de Davos1. Lendo nas entrelinhas, isso significa sistemas agrícolas controlados por inteligência artificial (IA), edição de genes e outras soluções de alta tecnologia voltadas para a agricultura em grande escala.

Como resultado, as ideias que deveriam ter sido o ponto de partida para uma “cúpula dos povos” foram efetivamente excluídas. Por mais de uma década, agricultores/as, pescadores/as, pastores/as e trabalhadores/as do setor de alimentos vêm exigindo uma transformação do sistema alimentar enraizada na soberania alimentar e na agroecologia. Essa visão baseia-se no redesenho, na diversificação e na realocação dos sistemas agrícolas. Requer que as premissas econômicas sejam questionadas, os direitos humanos sejam protegidos e o poder seja reequilibrado.

Algumas concessões foram feitas no caminho para a Cúpula. Mas essas mudanças foram tardias ou cosméticas demais para impactar significativamente o processo. Somente em novembro o CSA foi adicionado ao Comitê Consultivo da Cúpula. E apenas neste mês o escritório de Direito à Alimentação da FAO foi convidado a participar (com um mandato limitado). Presumivelmente, haverá mais mudanças nas margens: os direitos humanos serão mencionados em termos gerais, a agroecologia será incluída como uma das muitas soluções.

Mas isso não será suficiente para tornar os resultados da Cúpula legítimos para aqueles de nós – dentro e fora do processo – que permanecem céticos. Tendo todos atuado como Relatores Especiais da ONU sobre o Direito à Alimentação, testemunhamos em primeira mão a importância de melhorar a responsabilidade e a democracia nos sistemas alimentares e o valor do conhecimento local e tradicional das pessoas. É profundamente preocupante que tenhamos passado um ano persuadindo os responsáveis pela convocação de que os direitos humanos são importantes para esta Cúpula de Sistemas Alimentares do Secretário-Geral da ONU. Também é altamente problemático que as questões de poder, participação e responsabilidade (ou seja, como e por quem os resultados serão entregues) permaneçam sem solução.

Aqueles de nós que compareceram à mesa da Cúpula o fizeram na esperança de poder mudar fundamentalmente seu curso. Com a aproximação do final do jogo, ainda esperamos que isso seja possível. Mas uma mudança radical é necessária:

● O direito à alimentação deve estar no centro de todos os aspectos da Cúpula, com atenção para responsabilizar aqueles com poder;

● A agroecologia deve ser reconhecida como um paradigma (se não o paradigma) para a transformação dos sistemas alimentares, ao lado de recomendações viáveis para apoiar a transição agroecológica;

● O CSA deve ser designado como a casa dos resultados da Cúpula e o local onde são discutidos e implementados, usando seus mecanismos de participação inclusiva.

Em outras palavras, para fazer desta uma cúpula dos povos, a mesa precisa ser reposta com urgência.

Veja em: https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/fome-pandemia-e-a-onu-em-ponto-morto/

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