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Gado e gente: diário de um matadouro da JBS

Capitalismo e precarização sem fronteiras: a JBS leva aos EUA o desprezo pelos trabalhadores. Sob 38ºC, no Colorado, milhares de imigrantes comprimem-se com sangue e carcaças dos animais abatidos. Multiplicam-se as mortes por covid

Por Wendy Selene Pérez

I. A matança

Tudo começa com um tiro.

Uma bala que tem como alvo diretamente o crânio de uma vaca de olhos grandes, e que não será só uma, mas milhares: 23 mil por dia nesse matadouro em Greeley, na zona rural do Colorado, uma propriedade descomunal da empresa brasileira JBS, potência mundial da carne.

Na sala de abate, ou kill floor, como se conhece em inglês, é uma sorte o fato de a vaca morrer instantaneamente. A pistola poderia apenas deixá-la assustada, com vida, e com o fôlego que lhe restaria poderia lutar com um trabalhador exausto. A tarefa é perigosa: uma rês pesa entre 250 kg e 800 kg, dependendo do tamanho e da raça.

Alguns trabalhadores se machucaram na tentativa de imobilizar as vacas. Ou machucaram seus companheiros com as facas que utilizam a uma velocidade exorbitante e em um espaço superlotado. Os registros nos EUA trazem casos de trabalhadores que atiram em si mesmos por acidente.

Quando a vida de um animal termina, o opressivo trabalho continua para milhares de pessoas, e quase todas são imigrantes.

Um grupo de mulheres lava os cadáveres que chegam do “salão da morte”, pendurados em ganchos, com a cabeça para baixo e o sangue escorrendo, ainda quente. Elas trabalham em um sistema que parece “um inferno”, como me descreveu uma pessoa que pediu anonimato.

O universo interno dessas empacotadoras é velado, a lei federal proíbe fotografias. Mas quando o Covid-19 se alastrou pelos matadouros e eles se converteram em alarmantes focos de contágio, a JBS deixou que entrassem nos locais alguns jornalistas locais e ativistas.

O inferno é um buraco de um metro de profundidade onde as mulheres trabalham a uma temperatura que chega aos 38 graus no verão. Um lugar asfixiante e muito úmido. As mangueiras jogam água quente enquanto o sangue está pingando. Lavam uma vaca atrás da outra, em média três por minuto. As mulheres passam oito horas de pé fazendo a mesma coisa. Apertadas, ombro a ombro, com os corpos colados, como as vacas que têm à frente. “Nunca havia visto mulheres trabalhando desse jeito, nunca havia visto mulheres ganhando o pão para suas famílias dessa maneira”, me diz a pessoa que entrou na planta. “É um inferno trabalhar ali, são trabalhadoras que estão como animais atolados.”

As funcionárias têm que usar avental branco – que fica salpicado de sangue -, botas, luvas, capacete de segurança, uma proteção de tecido que cobre suas cabeças, testas e queixo, tapa-bocas: “Eu não conseguia ver o rosto delas, mas elas me viam através das máscaras”, narra. “Pude sentir o medo que têm.”

Na primavera passada, a pandemia chegou e o clima ficou feroz. Houve mulheres que passaram mal e desmaiaram por conta das tantas coisas que vestiam. O sindicato ao qual pertencem conseguiu ventilar mais o local, para que elas se refrescassem. Uma luta anterior havia sido ter água limpa para que elas e o restante dos funcionários bebessem.

As mulheres estão presentes no processo inteiro: quando a vaca é massacrada, quando é cortada, quando é empacotada. A JBS possui nove plantas no país, e as mulheres compõem 34% do total dos seus funcionários.

“Por que todas são mulheres ali?”, pergunto a Laura Padilla, uma mulher de 35 anos que durante dois anos teve a tarefa de eliminar a gordura das vacas em refrigeração e agora é uma das que trabalham na defesa dos funcionários. “Porque é um trabalho um pouco mais fácil”, responde. “Tentam colocar mulheres que já são um pouco mais velhas.”

— Um pouco mais velhas quanto?
— Já são senhoras.
— Mais de 50?
— Digamos que mais de 40 anos.

Aqui o envelhecimento é prematuro, as mulheres de 40 deixam de ser jovens mais cedo.

Laura Padilla vai e vem, percorre os setores da processadora escutando as queixas dos filiados ao gigantesco Sindicato Internacional dos Trabalhadores Comerciais e Alimentícios Unidos (UFCW, em inglês), que reúne 1,3 milhão de trabalhadores nos Estados Unidos e no Canadá. Na fábrica de Greeley, há 2.300 sindicalizados do UFCW.

II. Imigrantes descartáveis

É inverno e neva em Greeley, uma pequena cidade de pouco mais de 100 mil habitantes, localizada no noroeste do Colorado, a uma hora de Denver por autopista. Os odores de esterco, sangue e carne são parte de uma reputação malcheirosa que seus governantes tentaram remediar. 

Por isso, desde 1997 instalaram uma linha telefônica para a recepção de denúncias de maus cheiros. Ao receber uma queixa, os inspetores fazem a verificação com seus detectores de odor Nasal Ranger, do tamanho de um megafone. Se algo cheira mal, e o problema se confirma, estabelecem-se multas. O jornal local de Greeley registrou que, depois do primeiro ano, em 1998, houve 650 casos de mau cheiro, e hoje são menos de 30 por ano porque a JBS instalou purificadores e filtros na sua fábrica.

O conglomerado do brasileiro José Batista Sobrinho (JBS), que comprou nessa região a Swift & Co, tem nove plantas processadoras de carne em vários Estados do país, incluindo três no Texas. A de Greeley é a maior, com mais de 6 mil funcionários. 

A instalação da JBS em Greeley é tão grande como o aeroporto de uma metrópole. Em vez de aviões, há longas filas de trailers à espera do carregamento da carne recém-processada. Ocupa ruas inteiras em meio a uma paisagem de campos e casas. A construção é um conjunto de cinzas e ocres rodeado de estrutura metálica, como nas prisões; um bunker com paredes de aço e concreto do qual saem as mechas fumegantes de uma chaminé.

Quando chega a neve, os trabalhadores da matança saem com mais feridas em um dia de trabalho. Isso acontece porque o gado se suja mais nos currais e é a pior época do ano para tirar o couro das vacas, tarefa que chega após o salão da morte.

“A bosta fica colada por causa do frio”, explica Laura Padilla, a funcionária do sindicato. A faca perde o fio se ficar presa na pele da vaca e então os trabalhadores têm que usar a força das mãos e do corpo para terminar a tarefa. É uma operação tão acelerada e estressante que não dá tempo de pegar outro utensílio mais afiado. É quando chegam os machucados “nas canelas, nos ombros, nas pernas”, diz Padilla.

Se há um trabalho bruto, duro, perigoso, sujo, extenuante e mortal, esse é o dos matadouros e das empacotadoras de carne. O risco de morrer ou de se machucar é três ou quatro vezes maior, em média, do que em outros processos de manufatura. A cada dia acontecem cerca de 60 lesões não graves, e a cada dois dias uma pessoa perdeu uma parte do corpo ou foi hospitalizada em 2019, segundo dados compilados pela Administração de Saúde e Segurança Ocupacional (Osha).

A pandemia deixou os trabalhadores mais expostos e vulneráveis nas empacotadoras: desde fevereiro do ano passado, centenas morreram e milhares contraíram Covid-19.

Quem realiza esses trabalhos, a carne barata das corporações, costumam ser pessoas refugiadas, que receberam asilo ou imigrantes que se arriscam “por necessidade”, diz Padilla. Mais ainda se não têm documentos legais, pessoas que não reclamam direitos e que têm medo de abrir um processo judicial.

Se adoecerem de forma grave, têm que se virar, juntar dinheiro com os amigos e com a família, pedir ajuda em suas igrejas ou lançar um GoFundMe na internet, porque não têm assistência médica. Se chegam a morrer, como aconteceu durante a emergência sanitária, os seres queridos precisam encontrar opções baratas nas funerárias para se despedir deles ou repatriar suas cinzas ao país de origem, porque não têm seguro de vida.

“São humanos sacrificáveis e descartáveis”, diz com firmeza a sindicalista Kim Córdova, do outro lado do monitor, em uma chamada de vídeo ao meio-dia de 1o. de janeiro, enquanto minha família come um matambre requentado, do Réveillon, que eu não quero provar.

A mulher de origem latina representa os 30 mil trabalhadores do Sindicato Internacional dos Trabalhadores Comerciais e Alimentícios Unidos (UFCW) nos estados de Colorado e Wyoming. A UFCW Local 7, à qual pertence Padilla.

Saiba mais em: https://outraspalavras.net/terraeantropoceno/gado-e-gente-diario-de-um-matadouro-da-jbs/

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