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Neoliberais e ultradireita: o tronco único

Por trás das diferenças aparentes, as correntes se encontram. Partiram da reação oligárquica ao comunismo e social-democracia. E Hayek, pai comum, guinou ao supremacismo branco e ditaduras. “Globalismo” as divide. Mas é diferença menor

Por Quinn Slobodian | Tradução: Eleutério Prado | Imagem: James Ensor

Um relato obstinado sobre os últimos anos afirma que o surgimento da ultradireita é uma reação social contra algo chamado neoliberalismo. O neoliberalismo é frequentemente definido como um certo fundamentalismo de mercado ou como a crença em um conjunto básico de ideias: tudo neste mundo tem um preço, as fronteiras são obsoletas, a economia mundial deve substituir os Estados-nação e a vida humana é redutível a um ciclo de ganhar, gastar, tomar crédito e morrer. Pelo contrário, a “nova” direita acreditaria no povo, na soberania nacional e na importância dos valores culturais conservadores. Hoje, com os partidos tradicionais perdendo cada vez mais votos, as elites que promoveram o neoliberalismo estariam colhendo os frutos da desigualdade e da erosão da democracia que semearam.

Mas esse relato é falso. Na verdade, é suficiente olhar com atenção para notar que algumas facções importantes da direita emergente são cepas mutantes do neoliberalismo. Afinal, os chamados partidos “populistas de direita”, dos Estados Unidos, da Grã-Bretanha e da Áustria, não são anjos vingadores que teriam sido enviados para destruir a globalização econômica. Eles não têm planos de subjugar o capital financeiro, restaurar as garantias trabalhistas da “era de ouro” ou acabar com a liberalização comercial.

Em linhas gerais, os projetos desses chamados populistas de privatizar, desregulamentar e cortar impostos provêm do mesmo roteiro que os donos do mundo vêm seguindo há trinta anos. Entender o neoliberalismo como um hipermercado apocalíptico do mundo é um erro e só gera desorientação.

Como muitos autores demonstram, longe de evocar o capitalismo apátrida, os neoliberais que se organizaram na Sociedade Mont Pelerin, fundada por Friedrich Hayek — que na década de 1950 usou o termo “neoliberalismo” para descrever suas próprias ideias —, refletiram por quase um século sobre como reformular o Estado para restringir a democracia sem eliminá-la, assim como sobre o papel das instituições nacionais e supranacionais na proteção da concorrência e do intercâmbio. Quando entendemos que o neoliberalismo consiste num projeto de reestruturação do Estado para salvar o capitalismo, sua suposta oposição ao populismo de direita começa a se dissolver.

Tanto os neoliberais quanto a nova direita desprezam o igualitarismo, a justiça econômica global e qualquer tipo de solidariedade que se estenda além das fronteiras nacionais. Ambos percebem o capitalismo como inevitável e julgam os cidadãos por padrões de produtividade e eficiência. De modo mais surpreendentemente, ambos alimentam seus espíritos no mesmo panteão dos heróis do “livre mercado”. Um bom exemplo é Hayek, uma figura que permanece inquestionável em ambos os lados da suposta fenda entre neoliberais e ultradireitistas.

Em um discurso em 2018, Steve Bannon, ao lado de Marine Le Pen, num congresso da Frente Nacional, condenou as “elites” e os “globalistas”. Empregou, também, a metáfora do caminho da servidão, invocando assim a autoridade e o nome desse mestre da direita.

Bannon já havia citado Hayek na semana anterior. Eis que ele fora chamado para um evento por Roger Köppel, editor da revista Wirtschaftswoche e membro do Partido Popular Suíço e da Sociedade Friedrich Hayek. Durante esse encontro, Köppel mostrou a Bannon uma das primeiras edições da revista e acrescentou que era “de 1933”, época em que a publicação promovia o golpe nazista.

“Que os chamem de racistas”, disse Bannon, sem hesitar, ao público presente: “deixem que eles os chamem de xenófobos. Deixem também que os chamem de nacionalistas. Usem essas palavras como crachás.” O objetivo dos ultradireitistas, disse ele, não é maximizar o valor dos acionistas, mas “maximizar primeiro o valor dos cidadãos”. Isso soou menos como uma rejeição ao neoliberalismo do que um aprofundamento de sua lógica econômica no próprio coração da identidade coletiva. Em vez de descartar a ideia neoliberal do capital humano, os populistas a combinam com a identidade nacional em um discurso sobre a nação com letras maiúsculas.

Antes de deixar a Europa, Bannon também teve a oportunidade de se encontrar com Alice Weidel, ex-consultora do banco Goldman Sachs, líder do partido populista de direita Alternativa para a Alemanha (AfD) e membro da Sociedade Hayek até o início de 2021. Outro representante da AfD é Peter Boehringer: ex-blogueiro libertariano e consultor, também membro da Sociedade Hayek e agora representante da Baviera no Bundestag e presidente do comitê de orçamento do parlamento.

Em setembro de 2017, o Breitbart, um site de notícias do qual Bannon era presidente executivo, entrevistou Beatrix von Storch, deputada e dirigente do AfD, que é também membro da Sociedade Hayek. Ela [que viria a se encontrar com Jair Bolsonaro em 26/7/2021] aproveitou para dizer que Hayek a inspirou em seu compromisso com a “recuperação da família”. Na cidade vizinha da Áustria, Barbara Kolm, encarregada de negociar a coalizão de curta duração entre o Partido da Liberdade e o Partido Popular, foi diretora do Instituto Hayek em Viena, um membro da comissão que procurou criar zonas especiais desregulamentadas em Honduras e membro da Sociedade Mont Pelerin.

Em suma, tudo isso para dizer que, ao longo dos últimos anos, não se testemunha um choque de tendências opostas, mas sim o surgimento de uma velha disputa do lado capitalista, que gira em torno dos meios necessários para manter vivo o mercado livre. Ironicamente, o conflito que separou os chamados “globalistas” dos ultradireitistas eclodiu na década de 1990, quando muitos pensavam que o neoliberalismo havia conquistado o mundo.

Saiba mais em: https://outraspalavras.net/direita-assanhada/neoliberais-e-ultradireita-o-tronco-unico/

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