O ex-guerrilheiro, professor e militante Alvaro Garcia Linera, que serviu como vice-presidente nos governos de Evo Morales, conversou com a Jacobin sobre os desafios da conjuntura mundial, a situação de seu país após a vitória socialista sobre golpe de 2019, a ascensão do neofascismo em meio a crise e como o socialismo pode reorganizar a política no Sul Global.
Uma entrevista com Álvaro García Linera
Alvaro Marcelo Garcia Linera é um marxista no sentido mais preciso do termo: um socialista que não aceita a divisão do mundo entre teoria e prática. Ao mesmo tempo, ele é pensador, escritor, ideólogo, guerrilheiro, militante partidário que serviu como vice-presidente da Bolívia por três mandatos consecutivos, sempre acompanhando Evo Morales, primeiro presidente indígena de seu país.
Rigoroso sem ser dogmático, inovador sem deixar de ser radical, Garcia Linera é alguém que pode discursar sobre questões complexas da sociologia, antropologia ou economia e, com a mesma desenvoltura, partir para a resistência armada nas selvas e cordilheiras bolivianas — como, aliás, ele já experimentou ao participar do Exército Revolucionário Tupac Katari, entre os fins dos anos 1980 e meados dos anos 1990.
Como militante socialista, Garcia Linera é um dos principais nomes doMovimento ao Socialismo — Instrumento Político de Soberania dos Povos (MAS), organização que ajudou a fundar com indígenas, campesinos, operários, sindicalistas, ex-guerrilheiros e intelectuais nos turbulentos anos 1990 para resistir ao cerco do neoliberalismo na Bolívia.
Depois de anos de hegemonia na Bolívia, quando muitos analistas já davam como certo seu desgaste e derrota, o MAS conseguiu reverter o golpe de Estado civil-militar de 2019, neutralizando o regime golpista e o forçando a chamar novas eleições.
Em 2020, os socialistas voltaram ao poder com uma esmagadora votação. Por essa e tantas outras razões, é na Bolívia, tantas vezes desprezada, que mora uma das organizações socialistas mais sofisticadas do continente com uma rica história de luta anti-imperialista.
Testemunha e um dos protagonistas dessas lutas, Garcia Linera tem muito a nos contar nesta entrevista concedida à Jacobin Brasil e ao programa Desaforo de São Paulo. E aqui ele aborda questões que perpassam pelo seu trajeto biográfico: a construção do MAS, o que o marxismo tem a dizer sobre as identidades, a relação boliviano-brasileira, a influência de Bolsonaro sobre o golpe boliviano de 2019, o governo Biden, o que significa a China para o futuro da humanidade, a dialética entre proteção da natureza e o desenvolvimento econômico dentre outras questões que não se esquivou de responder.
DSP
Como surgiu seu interesse pelo marxismo e como isso se relaciona com sua formação tão multifacetada, tanto na matemática quanto na sociologia? O que faz um matemático no marxismo?
AL
Sou o filho tardio de uma Bolívia muito radicalizada e, até hoje, me mantenho marxista. Pertenço a uma geração que viveu sua adolescência nos anos 1970, quando estava chegando ao fim o ciclo de governos militares na América Latina e, também, na Bolívia. Não militei em partidos, mas quando ainda estava no colégio, aos 13 ou 14 anos, vivia em um ambiente onde a juventude boliviana se radicalizava.
Eu era o mais novo em casa, e meus irmãos faziam parte de grupos de estudo e pesquisa comuns aos jovens que se organizavam politicamente na época. Eu me agarrei nos livros deles e lá encontrei algo que me apaixonava e, também, me ajudava a entender o que estava acontecendo. Minha mãe tinha formação em filosofia e não se opunha às minhas leituras, que passavam por textos de Marx, de Lenin, de Gramsci, de Althusser. E ela não se opunha dizendo “nunca tenha um olhar fechado”.
Dessa maneira comecei a me tornar obsessivo por textos marxistas, de maneira autodidata para, assim, ser aceito nesses grupos de estudo. Aos 15 anos, li os três tomos de O Capital nas minhas férias escolares e, evidentemente, não entendi muita coisa. Mas esse esforço de disciplina mental para ler milhares de páginas me ajudaram a encontrar Lenin, Mao, Gramsci e outros.
Quando eu, finalmente, entrei num desses grupos, percebi que eles tinham pouco interesse pela leitura, desconheciam parte desses livros e tinham mais interesse em debater o ativismo.
A outra corrente que me influenciou foi a do indianismo, nos termos que ela surgiu na Bolívia nos anos 1970. Entre as dezenas de nações indígenas que existem na Bolívia, duas delas são muito numerosas: os aimarás e os quechuas — e delas surgiu uma intelectualidade muito forte das quais eu me aproximei, também na adolescência, mesmo que grande parte da esquerda as tenha marginalizado. Naquela época, também emergiu um forte movimento indígena e campesino que começou a reivindicar sua identidade própria, o que culmina com o levante de 1979 que me impactou muito.
O marxismo e o indianismo são as duas forças intelectuais que eu tento, até hoje, articular e que, também, fazem parte de minhas maiores preocupações. Eu me forjei como um marxista indianista. O marxismo como a história das lutas dos trabalhadores do mundo inteiro. O indianismo como a história da luta dos indígenas do mundo inteiro e da Bolívia.
Terminei o colégio com essas duas estruturas cognitivas da realidade e queria estudar matemática ou física — e decidi que já tinha uma bagagem para estudar ciências sociais por mim mesmo, mas não as ciências exatas. Fui para o México e decidi estudar matemática, pois era um ramo do pensamento humano que, ao mesmo tempo, me encantava e não dominava.
No México daquele período, em 1982, houve um fabuloso encontro de ativistas exilados de toda a América Latina. Ali, encontrei no debate dos exilados salvadorenhos, cujo país vivia uma guerra civil, e entre os guatemaltecos, que debatiam o tema indígena vinculado à luta armada. Era um lugar extraordinário para enriquecer meus pensamentos e me envolvi com eles.
DSP
Como foi sua experiência na resistência armada? Qual a lição que você aprendeu e qual lição você deveria ter aprendido nesse período?
AL
Depois de três anos no México, por volta de 1985, decidimos ir à Bolívia para participar das lutas sociais. Éramos um pequeno grupo de bolivianos e mexicanos — e retornamos para a Bolívia com uma perspectiva de marxismo e indianismo.
Os militares haviam renunciado e um governo moderado de esquerda havia chegado ao poder, mas enfrentava problemas — e haveria, cedo ou tarde, um confronto para dirimir a contradição em que o país se encontrava. Eu queria participar daquilo. Nós tínhamos uma leitura de que estava se aproximando o enfrentamento.
Não nos vinculamos a nenhum grupo político na Bolívia. Começamos a fazer trabalho militante junto às fábricas, minas e comunidades campesinas na perspectiva de ter a luta armada como um momento da ação coletiva de massas. Víamos que ação de massas iria se ver, naquele contexto, obrigada a um enfrentamento armado e que teríamos de estar preparados para isso.
Então todo nosso trabalho junto aos trabalhadores, do campo e da cidade, nos apontou para a direção de preparar um levante armado. É aí que nos encontramos com os companheiros operários e indígenas para formar o Exército Guerrilheiro Tupac Katari (EGTK) em 1988. O nome da organização homenageava o líder indígena que se sublevou em armas contra a colonização espanhola, ainda nos fins do século 18.
Então, nos preparamos junto aos operários, sobretudo mineiros, que estavam afetados pelo fechamento de seus centros sindicais pelo neoliberalismo que, ali, começava a entrar na Bolívia. Nesse período de formação militar e política, eu terminei preso em 1992 e passei cinco anos no cárcere até 1997.
Saiba mais em: https://jacobin.com.br/2021/07/como-o-marxismo-indigenista-venceu-o-golpe-na-bolivia-e-e-fundamental-para-o-socialismo-democratico/
Comente aqui