Clipping

O Comum e a disputa pelo sentido do século XXI

Em livro sintético, a busca de novas formas de produzir e distribuir riquezas, diante da crise do capitalismo. A reação do sistema: leis, catracas e oligopóios impedem acesso ao que poderia ser de todos. Mas nada está perdido: ainda rolam os dados

Por Rodrigo Savazoni | Imagem: Derek Fordjour, Rally Finale

O escritor uruguaio Eduardo Galeano, em um texto que se tornou famoso uns anos atrás, afirma não haver nada mais importante que o direito de sonhar. Segundo ele, somente fixando “os olhos mais para lá da infâmia” podemos divisar “um outro mundo possível”. É importante recuperar essa ideia porque não nos faltam razões para temer o futuro. Vivemos uma época de democracias frágeis e ilegítimas, de mercados cada vez mais perversos, sob a égide de um sistema produtivo que alterou – com consequências ainda inimagináveis – o meio ambiente planetário, no qual a falta de solidariedade e empatia entre os povos opera o ressurgimento da xenofobia e o extermínio em massa de crianças e jovens, sobretudo negros, e em que milhares de pessoas deixam suas terras vítimas da pobreza, da fome e da violência, conformando uma legião de refugiados. Ainda assim, afiliado à perspectiva de Galeano, proponho atravessarmos juntos o oceano da infâmia, como se fôssemos intrépidos navegadores em busca de alternativas que nos inspirem esperança em um futuro melhor. Nas mãos, vamos carregar um conceito que pode ser nossa bússola na busca do bem viver: o comum. Um conceito não tão novo assim, mas que nas últimas cinco décadas [1]1 vem ganhando, ano a ano, impulso entre as mulheres e os homens que não desistiram de construir uma humanidade mais sadia, portanto, mais livre e igualitária, consequentemente, mais democrática.

No decorrer das próximas páginas, o comum, também chamado de commons, em inglês, e de procomún ou común, em espanhol – que apressadamente pode ser definido como um bem gerido por meio de uma comunidade que se autogoverna –, será esquadrinhado a partir de diferentes perspectivas, buscando introduzir para um público amplo esse tema um tanto complexo. Para sair da abstração, me proponho a narrar e descrever exemplos de preservação, gestão e construção de comuns que concretizem o que autores de diferentes correntes de pensamento e cosmogonias propõem a partir dessa ideia. Em especial, e talvez essa seja uma das importantes contribuições deste trabalho, citarei casos e processos localizados no Brasil e na América Latina, uma vez que grande parte da bibliografia atual sobre o assunto é europeia e por isso se concentra nos episódios e cenas do Velho Continente – processo igualmente importante que também é objeto deste livro. Com especial atenção, o plano é promover um diálogo entre o conceito de comum e a ideia de democracia, que se encontra neste momento sob ataque – uma vez que a simples enunciação de seu nome evoca também sua falta de legitimidade [2]2.

Nesta nossa navegação, vamos percorrer, ainda que brevemente, um enorme arquipélago de alternativas: do Brasil à Venezuela das comunas comuneiras; do Equador e da Bolívia, do bem viver e do viver bem, à diáspora desse conceito pelos povos indígenas da América; da abordagem feminista de autoras como Silvia Federici ao discurso das mulheres negras brasileiras; dos fuçadores californianos aos hackers descalços do sul global; dos movimentos camponeses, quilombolas, caiçaras, ribeirinhos e de pequenos agricultores às hortas urbanas e de produção de alimentos orgânicos em nossas megalópoles; das casas coletivas das idosas francesas às ocupações culturais e ambientes de trabalho baseados em moeda social; dos coletivos artísticos aos cientistas e educadores que acreditam no compartilhamento do conhecimento e constroem plataformas para facilitar o acesso irrestrito dos cidadãos; dos desenvolvedores de software livre aos poetas e músicos que produzem com tecnologias livres e licenciam suas obras em Creative Commons; dos jovens madrilenhos que tomaram as ruas e praças de seu país defendendo mais e melhor democracia aos gestores italianos que estão em busca de construir um direito do comum. Ao término deste périplo, não espero das leitoras e leitores o abandono da perplexidade diante da conjuntura, mas a disposição de caminharmos juntos na construção do movimento comuneiro. Como afirma o historiador Massimo de Angelis, citando o conceito proposto por seu colega Peter Linebaugh, “there is no commons without commoning”, ou seja, não há comum sem o processo de produzi-lo (ou, como traduz a diretora do Instituto Procomum, Georgia Nicolau, “não há comum sem comunhar”). Assim, podemos dizer com todas as letras que o comum é um caminho, como a utopia de Galeano: a cada passo dado, se afasta um pouco de nós, mas nos põe em movimento. Importante também dizer que quando falamos de comuns é normal nos remetermos aos bens elementares, essenciais, como a terra, o ar, a luz, os oceanos, os rios, os alimentos, as florestas, os genes, os corpos, mas também devemos considerar tudo aquilo que os seres humanos criam em seu próprio benefício, para ampliar a conexão das pessoas, como a internet, os softwares de código livre e os espaços públicos das cidades. O comum é uma pauta ampla, impossível de explicar por meio da fragmentação. Nesta navegação, buscamos um outro jeito de viver, onde a hibridização é regra, a divisão natureza-cultura não faz sentido, e o sonho nos conduz. Adentremos o oceano da complexidade, nesta nau equipada não com uma luneta, mas com um caleidoscópio.

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Saiba mais em: https://outraspalavras.net/tecnologiaemdisputa/o-comum-e-a-disputa-pelo-sentido-do-seculo-xxi/

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