Clipping

O narrador impiedoso

Resenha de A cicatriz e outras histórias, de Bernardo Kucinski. (São Paulo: Alameda, 2021)

Por Flavio Aguiar

Les hommes meurent et ils ne sont pas heureux.
Albert Camus, Caligula, Ato I, Cena IV.
Lasciate ogni speranza voi ch’entrate.

Dante, Inferno, Canto III, 9.

Em seus contos, no mais das vezes Bernardo Kucinski optou por narrar impiedosamente o lado feio da vida. Como o personagem Monte Cristo, do romance de Alexandre Dumas, Pai, nas poucas ocasiões em que seus personagens conseguem desfrutar de um sentimento nobre, este é o da vingança. Assim acontece, e não vou romper o lacre do segredo, no conto que abre o conjunto e dá-lhe o nome, “A cicatriz”. O ex-preso político, torturado nas masmorras da ditadura de 64, é assaltado pela suspeita de reconhecer, numa mesa de bar, o antigo torturador e assassino, agora demolido por uma sucessão de tragédias familiares. Vá até o fim, e veja o que acontece.

Em seus estudos sobre a relação entre narrativa literária e psicanálise, o crítico Peter Brooks aproxima a situação do narrador de um conto à do paciente de uma terapia psicanalítica. Este último narra ao terapeuta uma história que esconde outra, que é, na verdade, a que ele narra o tempo inteiro, sem saber. O trabalho do terapeuta consiste em propiciar ao paciente uma situação em que ele possa reconhecer, afinal, qual é a história que está de fato narrando. A analogia para por aí. Nem o narrador de um conto literário é um paciente, nem o seu leitor é um terapeuta, e vice-versa. O que acontece é que o narrador do conto narra uma história que, ao final, desvenda aquilo que de fato ele está narrando desde a primeira palavra lançada na aventura.

A maioria dos contos de Bernardo Kucinski segue um padrão, que se abre com a formulação de uma esperança, dúvida ou algo que o leitor intui desde logo ser uma ilusão, para se fechar sobre a inevitabilidade da desilusão. O conto que dá título ao conjunto é paradigmático. Ele se abre com uma dúvida, a de que o passado talvez tenha realmente passado, para se fechar com a descoberta de que, como uma cicatriz, o passado não passou: a ferida que ela simplesmente recobre permanece aberta, e retorna ao presente com um assomo de violência, só que desta vez invertida, no desfecho de vingança.

Penso que esta é a principal narrativa de fundo que estes contos trazem à tona, com poucas exceções: num país (o nosso) em que a justiça é um simulacro, toda a esperança é ilusória, menos aquela que traz o travo da vingança, como no caso já mencionado do personagem Monte Cristo. Os contos são, na esmagadora maioria, amargos, porque o mundo que espelham (o nosso) é um mundo amargo. Quando há uma exceção, parece obra do acaso, como no conto em que o velho judeu, na contingência de passar por uma cirurgia, tem de escolher entre fazer uma anestesia geral ou uma local. A escolha que faz salva-lhe a vida… Não vou contar como.

A escrita de Bernardo lembra a de Graciliano Ramos, sobretudo a de “Vidas secas”: descarnada, contundente, direta, sem rodeios nem volteios, zero de neologismos ou de metáforas esvoaçantes, mesmo nas poucas vezes em que narra histórias de final ameno (dizer “feliz” seria demasiado). Se o leitor ou a leitora ficam com um travo amargo depois da leitura, ficam também como sabor de um sentimento de indignação diante das injustiças com que deparam, destilado através de um estilo que reúne, como poucos, contundência e sensibilidade.

Saiba mais em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Leituras/Carta-da-Berlim-O-narrador-impiedoso/58/50594

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