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O radical Ernest Hemingway

Da luta ao lado dos comunistas na Guerra Civil Espanhola até o apoio aos revolucionários em Cuba, o documentarista Ken Burns revela o lado radical do escritor Ernest Hemingway. Nesta entrevista à Jacobin, Burns resgata a esquecida posição de esquerda de um dos escritores mais renomados do século XX.

Por Uma entrevista com Ken Burns | Entrevista por Ed Rampell | Tradução Guilherme Ziggy

Ken Burns, o maestro da televisão documental, está de volta com Hemingway, uma nova série de seis horas dividida em três partes para a PBS, com sua colaboradora de longa data, Lynn Novick. As crônicas biográficas sobre a vida, trabalho, amores, viagens e causas do vencedor do Prêmio Pulitzer Ernest Hemingway com imagens de arquivo e entrevista originais com o romancista peruano Mario Vargas Llosa, bem como o filho do autor, Patrick Hemingway e, surpreendentemente, o senador John McCain, entre outros.

Burns ganhou quatro Emmys e foi indicado a mais nove, bem como a dois Oscars, por documentários como os filmes Huey Long (1985), The Civil War (1990), Baseball (1994) e The Dust Bowl (2012). Frequentemente em parceria de produção e direção com Novick, esses filmes foram imbuídos de consciência social e marcados por técnicas cinematográficas de narrativas.

Burns e Novick trazem seus talentos para Hemingway, com vinhetas cinematográficas detalhando as famosas façanhas do “Papa” em Paris, na Espanha, Key West, Cuba e África. Mas o documentário também se concentra na participação ativa do escritor entre a esquerda política, usando sua fama e dons literários como romancista e jornalista para tentar “escrever” os malfeitos da Grande Depressão e do fascismo.

O colaborador da Jacobin, Ed Rampell, conversou recentemente com Burns sobre os encontros de Hemingway com a guerra, o FBI, Cuba e como Hemingway pode ter sido a vítima mais famosa da invasão da Baía dos Porcos.


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Talvez o auge da fama de Hemingway na década de 1930 também tenha sido quando ele começou a se aprofundar na política. Qual era a reputação que ele tinha na esquerda norte-americana naquela época?

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Havia a presunção de que, na época, em meio a uma grande crise, suas histórias careciam, digamos, de uma dialética que estava muito à frente e ao centro da esquerda norte-americana: enfrentar a tragédia e a dor da Grande Depressão e as causas subjacentes disso. Então ele foi subjugado e reagiu, dizendo: “Não há esquerda e direita na literatura. Só há boa escrita.”

Ele próprio parecia estar alinhado de uma forma mais conservadora, menos governamental. A única coisa certa, disse ele, é “a morte e os impostos”. Ele realmente despreza as tentativas do governo Roosevelt em Florida Keys, onde ele morava. Quando o furacão atingiu a cidade e centenas de veteranos desempregados que lá estavam perderam a vida, ele culpou Roosevelt e escreveu um artigo para o New Masses [Novas Massas] dizendo isso.

E então, quase instantaneamente, você tem essa transição da parte de Hemingway, em que ele acaba escrevendo To Have and To Have Not (1937), sua má tentativa de romance proletário. Em seguida, ele partiu para cobrir a Guerra Civil Espanhola com lealdade definitiva ao governo legalista de esquerda que estava sendo derrubado pelo fascista Francisco Franco e seus aliados, Adolf Hitler e Benito Mussolini.

Hemingway então fez alguns pactos com o diabo no fato que Joseph Stalin, que havia se tornado uma espécie de protetor dos legalistas, havia se infiltrado tanto na causa que estava eliminando qualquer pessoa que não fosse stalinista. E foi algo sobre o qual Hemingway não escreveu em seu jornalismo, embora, estranhamente, tenha entrado em sua ficção. Em seu trabalho como jornalista, ele olhou para outro lado. Isso causou uma forte ruptura com o romancista John Dos Passos, que achou muito oportunista.

É uma pirueta muito complicada dentro de si mesmo. Isso é que é tão fascinante sobre Hemingway, é que assim como Walt Whitman, ele continha multidões.

ER

O que Hemingway fez enquanto esteve na Espanha? Para quem ele escreveu lá?

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Ele tinha um contrato muito lucrativo para enviar despachos e depois artigos maiores [para o sindicato de jornais North American Newspaper Alliance] e recebia melhor do que qualquer outra pessoa. Ele estava escrevendo com Martha Gellhorn, produzindo notícias – muito poéticas, muito bonitas.

É interessante – seu arqui inimigo na época, Franklin Roosevelt, o convida (por intermédio de Eleanor Roosevelt, amiga de Martha Gellhorn) à Casa Branca para exibir o filme The Spanish Earth, do cineasta comunista Joris Ivens, no qual Hemingway é escritor e narrador. A primeira-dama fez uma exibição para impressionar o presidente – à sua maneira, ele entendia a dinâmica muito mais complicada de ter que permanecer neutro em relação ao que acontecia na Espanha.

Então, Hemingway passa por uma espécie de virada desconcertante em diferentes polaridades políticas.

Hemingway em sua casa, Finca Vigía, em Cuba, em 1939. (US National Archives and Records Administration via Wikimedia Commons)

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Em seu filme, o senador John McCain diz que o herói legalista de Por quem os sinos dobram, Robert Jordan, foi um modelo pessoal. Mas me parece que McCain tirou uma conclusão curiosa do romance, depois de passar uma vida lutando ou promovendo guerras imperialistas.

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É aqui que está envolvida a superficialidade da pequena política. Este é um personagem literário que Barack Obama, que concorreu contra John McCain para presidente, também citou como uma influência importante, o que acho muito interessante.

Como McCain diz no filme, ele – McCain – é um homem imperfeito, servindo a uma causa imperfeita, ou seja, a causa à qual Robert Jordan serviu, o que significa que ele frequentemente estava envolvido em coisas e as fazia com um certo tipo de nobreza existencial. Muitas pessoas são capturadas, se você preferir, por uma figura literária – obviamente inventada, mas baseada em alguma realidade – há uma conexão emocional. Não posso falar com a dialética da fraude de John McCain em relação a isso, se for [fraudulento]. Ele realmente amava Robert Jordan.

Quando Novick e eu fizemos um filme sobre a Guerra do Vietnã e entrevistamos uma mulher chamada Le Minh Khue, que quando jovem, se ofereceu para descer a trilha Ho Chi Minh para reparar danos causados pelos bombardeios norte-americanos – um trabalho incrivelmente perigoso. Ela carregava consigo um exemplar do Por quem os sinos dobram, e acredita que uma das razões pela qual sobreviveu é que Hemingway a ensinou a sobreviver na guerra e pensar fora da caixa.

ER

Seu documentário narra o fato de que Hemingway estava entre os artistas que caíram na nuvem de suspeitas do macarthismo. Qual foi o contato que Hemingway realmente teve com os soviéticos na Espanha e, mais tarde, na China, durante sua lua de mel com Martha Gellhorn?

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Na Espanha, ele fez vista grossa para alguns dos atos implacáveis dos comissários soviéticos, que frequentemente desapareciam pessoas, executavam-nas sem julgamento ou as torturavam. Ele sabia que isso estava acontecendo. Ele jantou com eles.

Na China, Hemingway estava observando a Guerra China-Japão em nome do governo dos Estados Unidos. Mas por estar em contato, eu presumo, com as conexões que ele fez na Espanha, na véspera da Segunda Guerra Mundial, Moscou aparentemente também pediu material, observações que ele prometeu enviar, mas nunca o fez. É uma pena.

Saiba mais em: https://jacobin.com.br/2021/04/o-radical-ernest-hemingway/

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