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Quando a rebeldia ancestral é transmitida

Em El Alto, maior cidade indígena do mundo, a história da Wayna Tambo, rádio insurgente da juventude boliviana. Autogerida, irradia o Comum e o Bem Viver, fura o cerco da velha mídia e foi crucial à resistência popular na Guerra da Água

Por Célio Turino

El Alto

A maior cidade indígena do mundo, mais de 1 milhão de habitantes rodeando a capital da Bolívia, La Paz. Povos aimarás, quéchua, mineiros, tecelões, campônios, gente do altiplano e das terras baixas, como chiquitanos e guaranis. Uma profusão de cores, aromas e histórias, em que é quase possível tocar as montanhas. Wayna Potosí, Illimani, essas montanhas com mais neve, pois mais altas, mas que também começam a perder a cobertura de gelo milenar, mesmo estando a mais de 6 mil metros de altitude. Não há como acessar La Paz sem passar por El Alto, que paira sobre a capital, estando entre oitocentos e quatrocentos metros acima. Em El Alto estão localizadas as duas instituições que mais impulsionam a cultura viva comunitária na Bolívia: Wayna Tambo e Compa. Em El Alto ficaremos.

Antes de apresentar o trabalho das duas organizações, é necessário compreender o pensamento dos homens e mulheres do altiplano. Mario Rodríguez, sociólogo e comunicador, fundador de Wayna Tambo, começa pela despedida, explicando uma expressão em aimará: “q’ipur kamaPara o pensamento ocidental, a despedida em relação a alguém com quem se pretende encontrar no dia seguinte acontece com a expressão “até amanhã”,ou, “see you tomorrow, em inglês. Para os aimarás, é “até o dia de trás”,“q’ipur kama. Os aimarás formam a mais numerosa população indígena da Bolívia; para eles, como para a maioria dos povos originários, o tempo é o presente, e o futuro não fica adiante, estando vinculado ao passado. Como diz Mario Rodríguez:

O passado não acontece como o que já foi, o que foi chancelado pela história. Chegar ao futuro só é possível se você traz o passado para o presente, linguisticamente falando. Você olha para o passado, mas ele só tem sentido se colocado no presente. Isso constrói a possibilidade do inédito, do que virá, o que brota. Politicamente, isso é muito forte, porque coloca o olhar em outro lugar de referência.

O tempo não é linear, como uma sucessão de acontecimentos que vão morrendo no presente para dar lugar ao futuro, e sim algo vivo, cíclico, em que o próprio passado pode ser modificado. “Mas isso provoca exatamente a necessidade de um outro olhar. Um outro olhar que não é uma perspectiva de futuro, mas uma perspectiva ancestral, que debate o mundo presente e o projeta para o futuro a partir do passado”,conclui.

Mesmo vivendo em um ambiente urbano, de grande cidade, os povos indígenas em El Alto mantêm suas tradições ancestrais, sobretudo no modo de vida, no modo de pensar. E uma dessas tradições são os rituais das illas, que acontecem depois da semeadura e antes da colheita. “A illa é algo que já é, sem ser o que já é, mas que já está sendo o que ainda não é. Seria a colheita que ainda não aconteceu, mas que já está sendo”, explica Mario. Pode parecer confuso a quem tem um modo de pensar ocidental, mais descolado da natureza, mas é simples. Ao iniciar uma plantação, com preparo da terra e semeadura, o processo de colheita já está acontecendo, isso porque a semente é vida, e a planta já se coloca em transformação. Para que a colheita aconteça, há que acompanhar o processo, pois o processo é a própria colheita, e não somente o ato de extrair o fruto da terra. Por isso festejam no pós-semeadura, porque a colheita não será, e sim, já é.

A partir da ancestralidade, e com os pés bem fincados no presente, vão sendo formulados os princípios do bem viver, ou viver bem, como se diz na Bolívia, suma qamaña, em aimará. O bem viver é uma forma de descolonização do pensamento. E Mario Rodríguez complementa:

É importante destacar que o bem viver é pensado não como um paradigma de futuro, mas sim como um horizonte que orienta nossa caminhada hoje. Quando falamos de horizonte, queremos dizer que não temos um projeto acabado a ser conquistado. O bem viver nos coloca sentidos, horizontes políticos e éticos, isso porque o bem viver não é possível sem a diversidade e a pluralidade.

Falar de bem viver é falar a partir da mirada comunitária, de uma outra estrutura de pensamento, de outros horizontes de civilização e de percepção da convivência, da economia, da ciência, de processos de trabalho, da política e da ideia de poder.

Para o fundador de Wayna Tambo,

as pessoas, o comunitário, cederam a noção de bens comuns e do que é “público” ao Estado. E o Estado aparece como detentor do público, portanto responsável pela gestão dos bens comuns. O bem viver aponta uma mudança profunda no processo político e na retomada de algo que nunca poderia ter sido perdido: a gestão comunitária dos bens comuns, a construção comunitária do que vem a ser o bem comum.

Que bens comuns seriam esses?

O espaço público, as ruas, as praças, a saúde, a educação, a cultura, o ar, a água. Para os bolivianos é impensável a privatização da água, porque água é fonte de vida, como as florestas e as montanhas; seria o mesmo que alguém pretender privatizar o ar que se respira. Essa mudança no modo de pensar tem um efeito prático muito claro, que implica uma série de mudanças de paradigmas: do antropocentrismo para o biocentrismo; do patriarcalismo para a convivência e a complementaridade entre masculino e feminino; da competição para a colaboração; do Estado nacional para o Estado plurinacional; da centralização, verticalização e monopólio do poder para o comunitarismo exercido em processos mais horizontais e distribuídos; das deliberações centralizadas e de imposição para processos de consenso progressivo e busca de entendimento; da economia capitalista para a economia da reciprocidade.

Na Bolívia se pensa o mundo desde a Bolívia.

Se reconhecemos que o capitalismo destrói a vida, há que se buscar uma alternativa. É óbvio que um sistema como o capitalismo não pode ser mudado facilmente. Mas a Bolívia pode ser um país que, com relativa facilidade, poderia mudar de sistema. Por um lado, a Bolívia não está tão envolvida no sistema capitalista mundial como outras nações e, por outro lado, porque está vigente um sistema alternativo, que é a economia da reciprocidade1.

A economia da reciprocidade seria uma busca por equilíbrio entre propriedade estatal, propriedade privada e os bens comuns.

No ambiente comunitário prevalece a relação local e interpessoal. O modo de produção não é exatamente comum ou coletivista; pode ser, mas também pode não ser. Há a dimensão da propriedade comunal da terra, não privada e não estatal; na propriedade comunal da terra, para produção agrícola, por exemplo, o “dono” da terra é a comunidade, mas a produção é privada e seu resultado será de quem trabalhou na terra. Essa dimensão comunitária gera relações de maior equilíbrio, responsabilidade e função social da propriedade. O oposto do modo de produção capitalista, sobretudo quando exacerbado pelo neoliberalismo e seus valores subjacentes: competição, ganância, desconfiança, engano e traição, egoísmo e corrupções. Valores esses que vão impregnando e corrompendo a própria vida; corromperam, inclusive, o que seria o oposto do capitalismo, o socialismo. Com o socialismo, conforme aplicado no século XX, além de ter se deixado corromper por valores do sistema que pretendia eliminar, há que acrescentar a limitação da liberdade de empreender e de buscar soluções descentralizadas, posto que a economia planificada e centralizada resulta em pouca maleabilidade para o inusitado e a perda de controle. Isso ocorre porque tanto capitalismo como socialismo são sistemas econômicos em que o modo de produção é que determina a forma de pensar.

No comunitário, vida privada, produção e ancestralidade se mesclam. É a forma de pensar que determina a forma de produzir. Vida, trabalho e espírito são uma coisa só. Vínculos não alienados, entrelaçados, gerando relações de compromisso com a comunidade, confiança, respeito, honradez (o sagrado da palavra), cooperação, solidariedade e partilha. A economia da reciprocidade depende do resgate e fortalecimento desses valores, e os promove. Há também problemas, uma vez que, no comunitário, prevalece o local e a relação pessoal, familiar, e tudo de negativo que também advém dessas relações: inveja, fofocas, brigas entre famílias, vingança e toda sorte de mesquinharias que podem envenenar uma comunidade. O desafio que as entidades comunitárias da Bolívia se colocaram tem sido encontrar, na cotidianidade, o ponto de equilíbrio e mediação que permita incorporar vantagens de diversos sistemas (capitalismo, socialismo, comunitarismo), eliminando, ou reduzindo significativamente, suas desvantagens e defeitos. A economia da reciprocidade também não é apresentada como a única forma de economia, a substituir as demais. Ao contrário, é percebida enquanto economia de coexistência, e não somente com elementos dos sistemas capitalista e socialista, mas com outras formas de economia, essas ainda mais próximas e complementares à economia da reciprocidade, como economia solidária, economia do compartilhamento, economia da dádiva. Dessa combinação entre elementos econômicos distintos está surgindo outro sistema, mais imbricado com a lógica da vida, do comum, da partilha e da fraternidade. Mas esse ainda será um longo processo de metamorfose a ser analisado pelos historiadores no futuro. Agora cabe jogar luz ao que já é.

Até o dia de trás, q’ipur kama.

Saiba mais em: https://outraspalavras.net/descolonizacoes/quando-a-rebeldia-ancestral-etransmitida/

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