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O socialismo vai ser chato?

O socialismo não é sobre induzir uma branda mediocridade, é sobre libertar o potencial criativo de todos.

Por Danny Katch / Tradução Everton Lourenço

O ano era 2081, e todos eram finalmente idênticos. Eles não eram idênticos apenas diante de Deus e da lei, eram idênticos de todas as maneiras possíveis. Ninguém era mais inteligente que os outros; ninguém era mais atraente que os outros; ninguém era mais forte ou mais rápido que os outros. Toda essa igualdade se devia à 211ª, 212ª e 213ª Emendas à Constituição Estadunidense, e à incessante vigilância dos agentes de Compensação de Desvantagens dos EUA.

Esta não é a minha versão de 2081, mas a de Kurt Vonnegut nas primeiras linhas de “Harrison Bergeron”, um conto sobre um futuro em que todos são idênticos. Pessoas atraentes são forçadas a usar máscaras, pessoas inteligentes usam fones nos ouvidos que regularmente distraem seus pensamentos com barulhos altos, e assim por diante.

Como seria de se esperar com Vonnegut, existem alguns momentos sombriamente hilários – como em uma performance de balé em que os dançarinos são contidos com pesos nas pernas – mas diferente da maioria de suas narrativas, “Harrison Bergeron” é baseada em uma premissa reacionária: a Igualdade só poderia ser alcançada reduzindo os mais talentosos até as posições medíocres das massas.

O socialismo tem sido frequentemente retratado na ficção científica nesses termos de distopia cinzenta, que refletem a ambivalência que muitos artistas sentem em relação ao capitalismo. Os artistas frequentemente sentem repulsa pelos valores anti-humanos e pela cultura comercializada de sua sociedade, mas também estão cientes de que possuem um status único dentro dela que permite a eles expressar sua individualidade criativa – contanto que isso venda. Eles temem que o socialismo os privaria desse status e os reduziria ao nível de meros trabalhadores, por que eles são incapazes de imaginar um mundo que valorize e encoraje a expressão artística de todos os seus membros.

É claro que há outra razão para que as sociedades socialistas sejam imaginadas como sombrias e monótonas: a maioria das sociedades que se denominaram socialistas eram sombrias e monótonas. Pouco depois das revoluções no Leste Europeu que encerraram a dominação da União Soviética, os Rolling Stones fizeram um show lendário em Praga, no qual foram saudados como heróis da cultura.

O problema é que estamos falando de 1990, Mick e Keith já eram quase cinquentões, e fazia anos desde seu hit mais recente, uma música chamada “Harlem Shuffle”, que era simplesmente horrível. Esqueça os livros censurados e as proibições de manifestações. Se você quer entender quão tediosa era a sociedade sob o stalinismo, assista ao vídeo de “Harlem Shuffle” e então imagine uma das cidades mais frias da Europa perdendo a cabeça de alegria com a chance de ver aqueles caras.

Será que realmente importa se o socialismo for chato? Talvez pareça bobo, até mesmo ofensivo, se preocupar com uma questão tão trivial em comparação com os horrores que o capitalismo inflige o tempo todo. Pense nos perigos de furacões e incêndios cada vez maiores causados por mudanças climáticas, no trauma de perder seu lar ou seu emprego, ou na insegurança de não saber se o homem sentado ao seu lado te vê como o alvo para um encontro seguido de estupro. Nós gostamos de assistir filmes sobre o fim do mundo ou sobre pessoas enfrentando adversidades, mas em nossas vidas reais a maioria de nós prefere previsibilidade e rotina.

A preocupação de que o socialismo possa ser tedioso pode parecer o perfeito “problema de gente branca” ou “problema de primeiro mundo”, como a Internet gosta de dizer. Claro que seria legal sumir com a pobreza, guerra e racismo.. “mas e se eu ficar entediado?”

Mas isso importa sim, claro, porque nós não queremos viver em uma sociedade sem criatividade e excitação, e também por que se essas coisas estiverem sendo sufocadas, então deve existir algum grupo ou classe no poder fazendo o sufocamento – pensem eles ou não que isso seria para o nosso próprio bem. Finalmente, se o socialismo for banal e estático, nunca será capaz de substituir o capitalismo, que pode ser apropriadamente chamado de muitos nomes desagradáveis, mas “tedioso” não é um deles.

O capitalismo revolucionou o mundo muitas vezes nos últimos duzentos anos e mudou como pensamos, nos parecemos, comunicamos, e trabalhamos. Apenas nas últimas décadas, este sistema se adaptou rapidamente e efetivamente à onda global de protestos e greves nos anos 60 e 70: fábricas sindicalizadas foram fechadas e realocadas para outros cantos do mundo; o papel declarado do governo passou de “ajudar as pessoas” para “ajudar corporações a ajudar pessoas”; e finalmente todas essas mudanças e outras foram vendidas para nós como se fossem pelo que aqueles manifestantes estavam lutando o tempo todo – um mundo em que cada homem, mulher, e criança seja nascido com direitos iguais de comprar tantos smartphones e jeans rasgados de fábrica quanto queiram.

Para ser um socialista efetivo, é extremamente útil gostar de seres humanos.

O capitalismo pode se reinventar muito mais rápido que qualquer ordem econômica anterior. “A conservação dos velhos modos de produção em uma forma inalterada,” escreveram Marx e Engels no Manifesto Comunista, é “a primeira condição de existência de todas as classes industriais mais antigas. A constante revolução da produção, o distúrbio ininterrupto de todas as condições sociais, a eterna incerteza e agitação distinguem a época capitalista de todas as anteriores.” Enquanto sociedades de classe do passado tentavam desesperadamente manter o status quo, o capitalismo prospera em derrubá-lo.

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