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Os sonhos de um Tariano em São Paulo

Ele saiu do Amazonas após conflitos e dominação da Igreja Católica. Na metrópole, encontrou meios para sustentar a família, fazer filmes e ensinar sua cultura em escolas. Deseja pedaço de terra, para manter sabedoria ancestral…

Relato de Kary Báya (povo Tariano) a Angela Pappiani, na série Trincheiras Indígenas nas Cidades

A história de Anderson Peixoto Moreira, poderia virar filme. Kary Báya, seu nome indígena, é ator com vários trabalhos em cinema e televisão, produtor cultural e divulgador da cultura de seu povo Tariano, e ainda empreendedor, sobrevivendo em São Paulo no ramo de controle de pragas urbanas. Anderson nasceu em Iauaretê, no Alto Rio Negro, divisa do Brasil com a Colômbia. Divisa inventada, que não existe para os mais de 22 povos originários que ali vivem, falando diversos idiomas e se relacionando num complexo sistema social, político e cultural, em aldeias, comunidades e famílias dispersas pelas matas e rios, nos dois países. Uma população que há praticamente 200 anos convive com os não indígenas – seringueiros, comerciantes, missões religiosas, militares, garimpo e mineração – enfrentando e resistindo a muito desrespeito e violência que atingem as pessoas, os territórios e as culturas. Esses povos já foram escravizados pelos seringalistas no começo do século passado; doutrinados; treinados para serem “civilizados”, aprendendo profissões nos internatos administrados pelas missões católicas, longe de suas aldeias e tradições. Muitas meninas foram entregues a famílias de não indígenas, “acolhidas” para cuidarem das casas e crianças, sem consulta aos seus pais, sem remuneração ou direitos, sendo levadas até para fora do país nessa condição de trabalho escravo.

Durante as décadas de governo militar, a região foi ocupada por destacamentos do exército com o objetivo de fortificar as fronteiras e assegurar a soberania nacional, com controle da população local contra uma possível rebelião que poderia, com ajuda internacional, desmembrar essa região do Brasil. A ocupação seguiu mesmo depois, no governo Sarney, com o Projeto Calha Norte, entregando a exploração de minérios e outros bens a empresas transnacionais.

Esse pensamento belicoso, de defesa das fronteiras contra um inimigo imaginário, e a ocupação das áreas de floresta, apesar destas estarem sob proteção constitucional com reservas de proteção ambiental e Territórios Indígenas regularizados, voltou a ser uma meta governamental, com incentivo ao garimpo ilegal, ao desmatamento, grilagem de terras da União e ataque explícito às populações tradicionais, com disseminação do coronavirus, tiroteios, poluição dos rios com mercúrio.

A situação desse e de outros territórios parece não mudar, apesar de diferentes inclinações e ideologias dos governos que vêm controlando o país ao longo dos séculos. Os interesses econômicos imediatos estão acima da lei, da proteção da vida e do patrimônio natural.

Anderson é parte dessa história e sua trajetória nos ajuda a entender o peso dessa realidade sobre as pessoas. Ele vive há menos de três anos em São Paulo, com mais 12 pessoas de sua família. Como muitos outros indígenas dessa região do país, viram-se forçados a deixar seu lugar de origem em busca de uma vida mais tranquila, com segurança e possibilidade de futuro. Como outros parentes, Kary Báya sofre no exílio a distância dos lugares sagrados revelados nos mitos de seu povo, e se revolta com a dominação dos não indígenas sobre seu território, sobre a vida e a alma das pessoas.

Neste relato, fala dos caminhos percorridos até chegar a São Paulo, de seu trabalho como ator e divulgador cultural, sobre os sentimentos de raiva e indignação, sobre os sonhos e contradições da vida de indígena refugiado.

“Meu nome é Kary Báya, nasci no distrito de Iauaretê, antes o lugar de origem do clã a que pertenço, os Dyroá, ‘os filhos do trovão’, e que agora não é mais só nosso, ocupado por várias etnias e muitos interesses. Esse lugar, há muito tempo não era mais aldeia, foi transformado numa pequena vila, com ruas, casas, escola e a presença forte dos padres. Os Salesianos estão lá há mais de 100 anos.

Como a maioria da população de Iauaretê, nossa família trabalhava com a agricultura, roça, pesca e caça. Algumas pessoas foram preparadas pelos padres para terem profissão e trabalhavam como encanador, eletricista, pedreiro, funções da construção civil. Meu pai foi trabalhar com as irmãs, como pedreiro. A gente continuou na agricultura, com minha mãe. Quando começou o programa Bolsa Família, no começo dos anos 2000, muita gente que passou a receber o dinheiro, parou de fazer roça e começou a comprar os produtos das famílias que continuaram a produzir. A gente continuou na agricultura e o que antes era só de consumo, passou a ser para a venda, numa feira que acontecia todo domingo. Mas a contaminação maior do nosso modo de vida começou há muito mais tempo, desde a chegada dos padres que impuseram a roupa, a obrigação de falar português, de estudar, de praticar a religião deles. Ao invés de aprender as tradições, muitos jovens aprenderam a tocar piano, a ser coroinha na missa, a jogar bola. Isso desde a época do meu pai.

A gente é Tariano, do tronco Aruak, mas perdemos a língua porque os casamentos dos Tariano são com mulheres do povo Tukano, e essa língua dominou a região do rio Uaupés e o Rio Negro inteiro. Mesmo os padres sabiam falar Tukano. Meu pai estudou na missão Salesiana, foi para o colégio com 12 anos, mas, apesar de ter aprendido uma profissão e de trabalhar para as freiras, sempre manteve as tradições. Mesmo não sabendo falar bem o português, ele brigava tanto com os padres, quanto com as freiras, discutia com outros parentes porque queriam tocar violão e ele queria tocar flauta de pan, queria cantar os kapi wayas, que são os cantos da tradição, e eles queriam ouvir lambada… A gente cresceu assim, aprendendo a tradição, observando os lugares sagrados, as histórias que contam: aqui aconteceu tal coisa, ali aconteceu outra coisa. Todas as noites em casa, ou quando ia para a roça, eu escutava a mitologia do meu povo. Meu pai passou para nós tudo que era para ser passado das tradições, cantos, músicas, mitologia, os locais de origem.

Agora tenho 30 anos, somos em 11 filhos, cinco irmãs, sou o penúltimo. Aqui em São Paulo estão minhas irmãs, minha esposa, meu filho e meus sobrinhos. Chegamos em 2019. O primeiro deslocamento foi de Iauaretê para Manaus, onde moramos 16 anos.

A mudança para Manaus, acredito que foi um tremendo engano, minha mãe não queria, minhas irmãs não queriam, eu também não queria ir, mas uma das minhas irmãs, que já morava na cidade, prometeu coisas que acabaram não acontecendo. Toda vez que a gente pensava em voltar, acontecia alguma coisa e a gente acabava ficando. Depois de cinco anos, nos acostumamos. Começamos a fazer os trabalhos de divulgação da cultura indígena, apresentações em escolas, para o público. E isso ajudou a gente a se manter.

Quando a gente chegou em Manaus, enfrentamos o preconceito, eram pessoas diferentes que não gostavam da gente por sermos indígenas, por falarmos nossa língua, o Tukano. As pessoas tinham aversão, não queriam chegar perto, faziam aquele som ‘Uh Uh Uh!, olha o índio, o índio’! Manaus não me traz boas lembranças. Ali tive que sobreviver ao preconceito, sem ajuda dos órgãos públicos. Onde a gente ia, em qualquer apresentação, a gente falava: somos seres humanos, como qualquer um.

Eu fui para a escola em Manaus e não conseguia me sentir inserido. Quando tinha trabalho em grupo, não me chamavam. Isso atrapalhou muito o meu desenvolvimento escolar. Depois, foi difícil no trabalho. Passei por sete empresas e em todas senti o preconceito.

Em Manaus, tem muita gente que foi das aldeias para lá. Gente que se desconectou da sua tradição e até parentes mesmo que se trancavam, escondiam sua origem, quando pisavam na rua falavam só português. Nossa família não, nunca deixamos de falar nossa língua, nunca fingimos ser o que a gente não era. Isso me irritava mais ainda, não conseguia entender por que a pessoa que se parece com você, que tem a mesma origem, é capaz de te discriminar, fazer essas brincadeiras agressivas. Nos mudamos várias vezes porque tinha encrenca com os vizinhos, proprietários das casas que se sentiam incomodados em alugar o imóvel para indígenas. Lá em Manaus, o motorista do ônibus não abre a porta porque você parece indígena, se você falar a sua língua no ônibus as pessoas falam: você é índio, volta pra sua aldeia! Acho que só 20% das pessoas vão chegar em você na boa, ou vão só te ignorar, o resto, os 80%, vão ter preconceito, vão ser agressivos.

Saiba mais em: https://outraspalavras.net/outrobrasil/os-sonhos-de-um-tariano-em-sao-paulo/

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