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Pátria, natureza e identidade nacional

A ideia de nação como identidade cultural unificada é um mito. As nações modernas são híbridos culturais. O discurso da unidade ou identidade oculta diferenças de classe, étnicas, religiosas, regionais etc.

Por Liszt Vieira |Créditos da foto: (Rafaela Biazi/ Unsplash)

O esquecimento, diria mesmo o erro histórico,
são um fator essencial da criação de uma nação
(Ernest Renan, Qu’est-ce qu’une nation)

A identidade nacional é tradicionalmente apresentada como “comunidade imaginada” (Benedict Anderson), “criação histórica arbitrária” (Ernest Gellner), ancorada em diversos elementos, por exemplo, a narrativa de nação, ênfase nas origens, na continuidade, na intemporalidade e na tradição (Stuart Hall), na invenção da tradição e no mito fundacional (Eric Hobsbawn), na memória do passado, na perpetuação da herança e no esquecimento dos conflitos de origem (Ernest Renan).

Sabemos hoje que a ideia de nação como identidade cultural unificada é um mito. As nações modernas são híbridos culturais. O discurso da unidade ou identidade oculta diferenças de classe, étnicas, religiosas, regionais etc. As diferenças culturais foram sufocadas em nome da construção da identidade nacional. É inegável que a ideologia do nacionalismo e do patriotismo constituiu importante ferramenta na formação do Estado nacional.

No que se refere à identidade nacional brasileira, o Brasil é talvez o único país da América Latina que não conquistou a independência nacional – ela foi concedida de cima para baixo. A República foi uma quartelada a que o povo assistiu “bestializado” (José Murilo de Carvalho). E à Independência, com licença do historiador, nem bestializado assistiu. As guerras e lutas que marcaram o povo brasileiro foram regionais (Farrapos, Sabinada, Inconfidência Mineira, Revolução Pernambucana, Revolta dos Alfaiates, Confederação do Equador etc.).

Nosso mito de origem foi a “descoberta” em 1500, em que já estão presentes “os três componentes da nossa nação imaginada: a identidade lusa, a identidade católica e a identidade cordial” (José Murilo de Carvalho). Esquecimento e erro é o que não faltaram nos mitos da história pacífica e democracia racial. Essa visão europeizante de identidade nacional excluía os colonizados. A história oficial foi escrita pelas elites na qual o povo está ausente. Isso corrobora a explicação de que o brasileiro teria mais orgulho da natureza do que da sua história.

A construção da identidade nacional, na Europa e em toda a América, privilegiou nos séculos XVIII e XIX o sentimento de unidade em detrimento da diversidade. Tratava-se de construir a Nação, o que foi feito oprimindo e sufocando identidades culturais, religiosas, étnicas, de gênero etc. bem como a divisão da sociedade em classes. Enfim, o conceito de nação, baseado na unidade, ocultou a diversidade.

Mas, talvez por isso mesmo, engendrou ideologias – o patriotismo e o nacionalismo – que ajudaram a forjar a identidade nacional e mobilizar as populações, principalmente dos países coloniais, para morrer na guerra pela pátria. É sugestivo que quase todos os hinos nacionais da América Latina falem em “morrer pela pátria”. Além disso, essas ideologias tornaram-se poderosos instrumentos de mobilização popular para as grandes guerras do século XX.

Se na hora de morrer pela pátria não havia muitas distinções perante a lei, o mesmo não ocorria na hora de viver pela pátria. O direito brasileiro, por exemplo, trazia a marca dos costumes escravistas, patriarcais e católicos predominantes na sociedade brasileira do século XIX. Para protestantes e judeus, não havia, durante o Império, qualquer tipo de registro civil de nascimento ou casamento. União entre cônjuges não católicos não tinha nenhum valor legal. Menores trabalhavam, mas não podiam defender-se em juízo. Mulheres casadas podiam gerir fortunas, mas não tinham direito de fazer testamento. Apenas católicos podiam ser eleitos para cargos públicos. Os negros eram escravos. Mesmo o Código Civil da República, promulgado em 1916, distinguia mulheres honestas de desonestas, filhos legítimos de ilegítimos, conforme analisado pela historiadora Keila Grinberg.

A partir da segunda metade do século XX, as identidades culturais antes sufocadas começaram a reaparecer, colocaram no espaço público suas demandas e sobrepujaram muitas vezes a identidade nacional, visivelmente abalada com o processo de globalização que enfraqueceu os atributos básicos do Estado-Nação: territorialidade, soberania, autonomia. Esse ressurgimento de identidades culturais se dá paralelo ao enfraquecimento do nacional. Muitas vezes, o local passa a interagir com o global criando novos patamares culturais. Chico Mendes, ao morrer, era um herói local e global, mas não nacional.

Os hinos nacionais

São os hinos nacionais que refletem o espírito de conquista da independência nacional contra países colonizadores, como ocorreu na América Latina, ou de formação do Estado nacional, como nos países europeus. Neste último caso, os hinos não conclamam os cidadãos a morrer pela pátria. God Save the Queen, Allons Enfants de la Patrie, Deutschland Über Alles, Viva España! Levantai … O Esplendor de Portugal, os hinos dos países da Europa ocidental apelam ao patriotismo, mas não à morte. A única exceção é a Itália que, embora marginalmente, afirma: Siam pronti alla morte.

Na América Latina, basta consultar alguns hinos para verificar até que ponto o apelo para morrer pela pátria está enraizado no espírito da época como marco da identidade nacional. Vejamos alguns exemplos.

O hino nacional uruguaio começa exclamando: Orientales, la Patria o la Tumba!

Libertad o con gloria morir! Da mesma forma começa o hino paraguaio: Paraguayos, República o Muerte! E Cuba, hoje tão conhecida pela palavra-de-ordem “Patria o Muerte, Venceremos”, canta, logo na primeira estrofe do seu hino: No temáis una muerte gloriosa/ que morir por la Patria es vivir.

O hino do Haiti nos ensina que é belo morrer pela pátria: Pour le drapeau, pour la patrie/ Mourir est beau, mourir est beau. O de Honduras fala em morte generosa:

Marcharemos, ¡oh patria!, a la muerte;/ Generosa será nuestra suerte,/ Si morimos pensando en tu amor. O da Bolívia, no mesmo sentido: Morir antes que ver humillado/ de la Patria el augusto pendón. O da Guatemala conclama vencer ou morrer: Libre al viento tu hermosa bandera/ A vencer o a morir llamará.

O colombiano nos lembra que: Se baña en sangre de héroes/ la tierra de Colón. E termina dizendo: “deber antes que vida”/ con llamas escribió. O hino mexicano conclama à guerra e evoca a morte: Tus campiñas con sangre se rieguen,/Sobre sangre se estampe su pie. No final, promete aos heróis combatentes: ¡Un sepulcro para ellos de honor! E assim termina o hino nacional da Argentina: Coronados de gloria vivamos/ O juremos con gloria morir. O chileno é o único que fala em asilo: O la tumba serás de los libres/ O el asilo contra la opresión. No final, não foge à regra: O tu noble glorioso estandarte/ Nos verá combatiendo caer. Em meados do século XX, a guerra de independência nacional da Argélia produziu um hino nacional com versos semelhantes: Et nous avons juré de mourir pour que vive l’Algérie!

No caso dos países que travaram guerras de independência nacional, o apelo dos hinos a morrer pela pátria pode ter um duplo sentido: mobilização para a guerra ou homenagem aos soldados que tombaram no campo de batalha. Não se trata de mera retórica, como no caso brasileiro, onde não houve guerra pela independência, concedida de cima para baixo pelo próprio imperador português. Nem por isso o hino da independência dispensou o apelo a morrer pela pátria: Ou ficar a pátria livre, ou morrer pelo Brasil!

A ideia de morrer pela pátria ficou no inconsciente coletivo do imaginário popular brasileiro. Muitas décadas depois, os hinos da Revolução Constitucionalista de 1932, em São Paulo, exclamavam: Antes a morte que um viver de escravosSer Paulista! É morrer sacrificado/ Por nossa terra e pela nossa gente! Ou ainda: Que os irmãos dos vinte estados/ Sejam todos redimidos/ Pelo sangue dos soldados/ Dos paulistas destemidos. Os versos mais conhecidos, de Guilherme de Almeida, conclamavam os estudantes a abandonar a escola para morrer na guerra: Enquanto se sente bater/ No peito a heroica pancada/ Deixa-se a folha dobrada/ Enquanto se vai morrer.

Saiba mais em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Sociedade-e-Cultura/Patria-natureza-e-identidade-nacional/52/51742

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