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Uma outra história do neoliberalismo

Obra recém-lançada no Brasil investiga trajetória teórica de Hayek e von Mises e sustenta: seu alvo sempre foi bloquear a participação popular e a democracia real. Para impor lógica dos mercados, eles defenderam mão forte do Estado e ditaduras

Por Christian Laval, Saud Guégen e Pierre Sauvêtre|Tradução: Tradução: Vitor Costa

A escolha da guerra civil: uma outra história do neoliberalismo pode ser encontrado no site da Editora Elefante

Lançado no Brasil no mesmo ano em que saiu em francês, A escolha de guerra civil: uma outra história do neoliberalismo, de Pierre Dardot, Haud Guéguen, Christian Laval & Pierre Sauvêtre, oferece caminhos inéditos e essenciais para o entendimento da conjuntura política mundial e nacional. Isso porque os autores fizeram um trabalho ao qual poucos intelectuais de esquerda se dispuseram: mergulhar nas raízes teóricas do neoliberalismo. Estudaram profundamente a obra de Hayek e Mises, tão celebrados pela extrema direita brasileira, além de resgatar episódios marcantes da história de governos identificados com essas ideias, entre eles Pinochet e Thatcher, bem como a formação da União Europeia e as duras medidas de ajuste empreendidas pelos partidos trabalhistas e socialistas tradicionais.

O resultado é um livro que disseca o neoliberalismo não como um regime de governo, mas como uma estratégia de defesa incondicional do mercado e de combate aos ideais de igualdade em todas as suas formas: do sindicalismo ao socialismo, passando pelo estado de bem-estar social e, inclusive, pelo liberalismo tradicional — que os neoliberais veem como um caminho inevitável ao totalitarismo. Para defender suas bandeiras, o neoliberalismo, ao contrário do que se apregoa nos discursos mainstream, precisa de um Estado forte, pois é o poder público que deverá defender o predomínio das leis de mercado, custe o que custar. Não há qualquer apreço à democracia ou à vontade popular: o ideal é barrar, por meio da lei ou da violência, qualquer mínima interferência nas leis da economia, vistas como sagradas e naturais pelos ideólogos neoliberais. A escolha da guerra civil demonstra que fenômenos como Trump e Bolsonaro não são formas desviantes do neoliberalismo. Pelo contrário: desempenham governos muito coerentes com sua história. É o que expressa a entrevisata a seguir, concedida por três dos autores do livro à revista francesa “Diacritik (Tadeu Breda, editor da Elefante e colaborador de Outras Palavras)

Para começar, parece necessário esclarecer o significado da expressão “guerra civil”.

Pierre Sauvêtre: Deve ficar claro desde o início que não empregamos o termo de acordo com seus usos mais comuns. O conceito de guerra civil é muitas vezes estruturado por duas oposições: a guerra civil interna se opõe à guerra entre Estados, – externa – porque é o confronto armado entre cidadãos de um mesmo Estado. E a guerra civil se opõe à política porque é uma explosão de violência sem regra, enquanto a política é a suspensão da violência pelo poder da lei. Hobbes via a guerra civil como uma “guerra de todos contra todos”, própria do “estado de natureza” à qual a ordem contratual do Estado colocava um freio, mas para a qual os indivíduos voltariam se algum dia o Estado viesse a se dissolver. A guerra civil e a política eram, portanto, mutuamente exclusivas para ele.

Numa outra direção, nos inspiramos nos desdobramentos de Foucault em sua palestra “La société punitive” (A Sociedade Punitiva) para questionar essas oposições no caso do neoliberalismo. Em primeiro lugar, a guerra civil interna não é distinta da guerra entre Estados mas, ao contrário, é sua continuidade. Prevendo os esforços necessários para acabar com a greve dos mineiros britânicos, a própria Margaret Thatcher estabeleceu em julho de 1984 a continuidade entre esses dois tipos de guerra: “Tivemos que lutar contra o inimigo externo, nas Malvinas. Agora devemos também estar conscientes do inimigo interno, que é muito mais difícil de combater e muito mais perigoso para a liberdade.” A guerra civil, então, não é uma guerra entre indivíduos, mas entre coletivos que se constituem por sua própria encenação. Nesse sentido, a guerra civil neoliberal, ao contrário do que poderia ser a stasis (discórdia) para os gregos, não é a ameaça permanente de dissolução do corpo social que motiva a política como construção consensual da Pólis, mas é o produto das relações de poder e do exercício do governo. Nesse sentido, identificamos a unidade do neoliberalismo no movimento de impor uma ordem de mercado por meio de uma “política de guerra civil”. Já sua variedade histórica são as várias “estratégias de guerra civil”, associadas a inimigos em constante mudança (o socialismo, os sindicatos, o Estado do Bem Estar Social, os ativistas da contracultura, as mulheres, as minorias, o precariado) por meio das quais ele tentou estabelecer essa ordem em contextos históricos específicos.

Então, não se trata de uma guerra real?

Pierre Sauvêtre: Embora não concebamos a guerra civil como um confronto armado entre dois setores da população, não atribuímos ao termo “guerra” um significado metafórico. Este termo pretende destacar a violência física aberta que os governos neoliberais podem usar para neutralizar seus inimigos. O caso do Chile de Pinochet é óbvio, o da repressão aos Coletes Amarelos também. Em geral, esse termo também se refere à crescente militarização dos aparatos repressivos e dos métodos de repressão interna dos movimentos sociais. Mas essas guerras são inseparavelmente “civis” em dois sentidos distintos. Por um lado, porque não mobilizam apenas meios militares, mas também meios políticos, jurídicos ou culturais para enfraquecer os seus inimigos: pensemos nos termos jurídicos da prática cada vez mais comum do lawfare ou em termos de valores culturais nos recentes ataques ao “Islamo-esquerdismo” e a “não-mistura”. E, por outro lado, apoiando-se na lógica da constituição de um inimigo interno, essas estratégias reúnem em torno de si coalizões sociais cujos afetos são mobilizados por essas guerras sem que elas mantenham qualquer interesse com os objetivos de “securitização” do capitalismo neoliberal.

Vocês analisam com precisão os discursos dos principais teóricos do neoliberalismo. Cito, entre eles, Ludwig von Mises e, é claro, Friedrich Hayek. Vocês mostramsobre este último, seu papel nos regimes de Pinochet e Margaret Thatcher. Na verdade, entende-se que o neoliberalismo se opõe antes de tudo ao povo, e você fala até em demofobia. O que podemos entender com esta expressão?

Haud Guéguen: Certa lenda política diz que o neoliberalismo é uma doutrina que, ao se opor a toda forma de intervencionismo estatal e ao permitir a liberdade individual e o livre mercado, seria uma defesa da democracia contra as tendências totalitárias do Estado. Falar em “demofobia” é, pelo contrário, recordar uma dimensão central do neoliberalismo doutrinal e governamental, que é a sua profunda desconfiança do povo e de qualquer forma de democracia ilimitada. Em uma obra de 1929 intitulada “La mystique démocratique” (A Mística Democrática), Louis Rougier postulou uma distinção entre duas formas de democracia, que se tornaria fundamental para todas as correntes neoliberais. A distinção entre a democracia fundada no conceito de “soberania popular” que, para ele, só poderia levar ao “totalitarismo”, e a democracia “liberal” que, com base na limitação dos poderes dos governos visa, ao contrário, impedir qualquer usurpação das massas na ordem do mercado.

De “Ordoliberais” como Hayek, Mises, Lippmann aos partidários [da Escola] do Public Choice (Escolha Pública), este é um ponto fundamental de consenso para todos os teóricos neoliberais. Isso foi evidenciado pela maneira como todas essas correntes saudaram o golpe militar de Pinochet em 1973. A ideia de que o ordenamento da livre concorrência exigido para o funcionamento do mercado só é possível sob condição de neutralização radical do poder das “massas” é um grande lugar-comum do movimento conservador, que considera o povo como inculto, ganancioso e, portanto, incapaz de se governar. Quando, em Direito, Legislação e Liberdade, Hayek explica que o verdadeiro valor da democracia é proteger “contra o abuso de poder”, sustenta que esta não poderia, portanto, representar “o mais alto valor político” e que “uma democracia sem limites poderia ser algo pior que governos limitados, ainda que não democráticos ”. Assim, ele apenas expressa essa convicção neoliberal de que a democracia só tem valor relativo. A democracia liberal é apenas uma opção entre outras mais abertamente autoritárias, como a ditadura – fantasma com o qual conta para inviabilizar qualquer projeto de regulação da ordem de mercado por meio de sua constitucionalização.

É, no entanto, importante notar que esta oposição de princípio a qualquer forma de soberania popular foi imediatamente acompanhada por uma importante reflexão estratégica sobre os meios de ganhar o apoio popular para poder, por assim dizer, voltar o povo contra si mesmo. A principal característica das massas é, aos olhos dos neoliberais, a incapacidade de pensarem por si mesmas. Por isso, o esquema sugere que as elites as conduzam, de forma a neutralizar ou desativar o perigo democrático. Todas as reflexões de Walter Lippmann sobre o papel dos especialistas na construção da opinião pública a partir dos anos 1920 estão intimamente relacionadas a essa questão estratégica, que definitivamente não perdeu sua atualidade.

livro, portanto, se opõe a uma série de lugares-comuns que dizem respeito ao neoliberalismo. Entre eles está o descompromisso em relação ao Estado. O neoliberalismo significa este descompromisso ou uma redefinição das relações entre Estado e sociedade?

Pierre Sauvêtre: Uma das ideias centrais que já estava em La nouvelle raison du monde, e que é reforçada neste livro, é que o neoliberalismo opera uma grande ruptura na relação do Estado com o liberalismo e na concepção deste último, de um Estado mínimo não-intervencionista. As ideias de que o mundo atual seria caracterizado pelo desengajamento dos liberais, e de que Estado e seria apenas dominado pelo mercado mundial e pelo peso das multinacionais – a hipótese do “ultraliberalismo” – é questionada por todas as posições intelectuais dos neoliberais a partir da intervenção maciça e permanente dos Estados-Nações nas sociedades contemporâneas. A ascensão do neoliberalismo nacionalista e a crise do Covid-19 reforçaram ainda mais esta tendência.

Em “La nouvelle raison du monde” já especificávamos como a concepção neoliberal do Estado se baseava, na sua relação com a economia, em um intervencionismo especificamente neoliberal e diametralmente oposto ao intervencionismo social, redefinindo completamente a relação entre a sociedade e o Estado. Enquanto o intervencionismo do Bem-Estar Social fez do Estado um meio de coordenar as demandas sociais para regular o mercado, o intervencionismo neoliberal consiste em moldar as instituições e a sociedade para se adaptarem ao mercado. Trata-se de um intervencionismo jurídico que procura facilitar o funcionamento do mercado com base na norma da concorrência, um intervencionismo gerencial que transforma os serviços públicos no modelo de empresa e um intervencionismo societário que pretende fazer de cada indivíduo um “empresário de a si mesmo” para usar a fórmula de Foucault. Nessa visão, o Estado não é mais um instrumento democrático para a sociedade, mas um soberano que molda uma sociedade de concorrência para o mercado.

Em “Le Choix de la Guerre Civile”, voltamos ao lado negativo desse intervencionismo construtivo do Estado neoliberal, a saber, a concepção de um “Estado forte” teorizado pela primeira vez por Carl Schmitt e retomado por todos os fundadores do neoliberalismo. Para que o intervencionismo neoliberal alcance a plena integração da sociedade ao mercado, devem ser tomadas medidas para proteger o mercado das demandas democráticas por justiça social. Este é o papel que cabe ao Estado forte, que se vê como um Estado acima da sociedade e da democracia, de forma alguma subordinado a elas, e que deve por todos os meios impedir que as massas se apoderem do destino da economia. Ele está, portanto, intimamente ligado à “demofobia” neoliberal e foi feito para combater a “fúria democrática”, como diz Röpke. As principais tarefas que os neoliberais lhe atribuem são o desmantelamento do Estado de Bem-Estar Social, a recusa em ceder às pressões dos interesses sociais, o uso da violência contra quem prejudica o funcionamento do mercado e o estabelecimento da ditadura quando a sobrevivência da economia livre está ameaçada. O estabelecimento de uma ordem jurídica e institucional para garantir o mercado e a violência do Estado contra a democracia e a sociedade são as duas faces complementares que marcam os contornos do Estado neoliberal.

Saiba mais em: https://outraspalavras.net/direita-assanhada/uma-outra-historia-do-neoliberalismo/

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