Clipping

Por que os EUA fracassaram no Afeganistão

Não foi possível transformar o país em uma democracia moderna, mas a diplomacia criativa e a força podem ter superado o terrorismo, diz o estadista americano

Por Henry Kissinger | Créditos da foto: (Ilustração de Dan Williams) | Tradução de Carlos Alberto Pavam

A preocupação imediata com a tomada do Afeganistão pelo Talibã se concentra no resgate de dezenas de milhares de americanos, aliados e afegãos confinados em todo o país. O resgate deles deve ser nossa prioridade. A preocupação mais fundamental, entretanto, é o que levou os Estados Unidos a decidirem se retirar em uma decisão tomada sem muito aviso ou consulta com aliados ou com pessoas mais diretamente envolvidas nos 20 anos de sacrifício. E por que o desafio maior no Afeganistão foi concebido e apresentado ao público como uma escolha entre o controle total ou a retirada completa do Afeganistão.

Uma questão fundamental tem perseguido nossos esforços de contra-insurgência por mais de uma geração, do Vietnã ao Iraque. Quando os Estados Unidos arriscam a vida de seus militares, põem em risco seu prestígio e envolvem outros países, devem fazê-lo com base em uma combinação de objetivos estratégicos e políticos. Estratégico, para deixar claras as circunstâncias pelas quais lutamos; político, para definir a estrutura de governo que irá sustentar o resultado, tanto dentro do país em questão como internacionalmente.

Os Estados Unidos têm se consumido em seus esforços de contra-insurgência por causa da incapacidade de definir metas alcançáveis e vinculá-las de forma sustentável ao processo político americano. Os objetivos militares têm sido absolutos e inatingíveis e os políticos, abstratos e elusivos demais.

Por não conseguirem vinculá-los um ao outro, os EUA se envolveram em conflitos sem um ponto final definido e fizeram com que afundassemos internamente um objetivo comum em um pântano de controvérsias domésticas. Entramos no Afeganistão com amplo apoio popular em resposta ao ataque da Al Qaeda aos EUA lançado a partir do Afeganistão controlado pelo Talibã. A campanha militar inicial prevaleceu com grande sucesso. O Talibã sobreviveu basicamente em santuários no Paquistão, de onde promoveu insurgências no Afeganistão com a ajuda de autoridades paquistanesas.

Mas à medida que o Talibã fugia do país, perdemos o foco estratégico. Nos convencemos de que, no fim, só poderíamos evitar o restabelecimento de bases terroristas transformando o Afeganistão em um Estado moderno com instituições democráticas e um governo constitucional. Tal empreendimento não poderia ter um cronograma compatível com o processo político americanos. Em 2010, em um artigo em resposta ao aumento do número de tropas, alertei sobre um processo tão prolongado e intrusivo que voltaria até mesmo os afegãos não jihadistas contra todo o esforço.

Pois o Afeganistão nunca foi um Estado moderno. O Estado pressupõe um senso de obrigação comum e centralização de autoridade. O solo afegão, rico em muitos elementos, carece deles. Construir um Estado democrático moderno no Afeganistão, onde o mandato do governo é executado uniformemente em todo o país, exige um período de muitos anos, na verdade, de décadas; isso vai contra a essência geográfica e etnoreligiosa do país. Foi precisamente a fragmentação, inacessibilidade e ausência de autoridade central que tornaram o Afeganistão uma base atraente para redes terroristas.

Embora uma consolidada entidade afegã possa ser datada do século 18, seus povos constituintes sempre resistiram tenazmente à centralização. A consolidação política e especialmente militar no Afeganistão tem ocorrido ao longo de linhas étnicas e de clã, em uma estrutura basicamente feudal, onde os decisivos mediadores do poder são os organizadores militares do clã. Normalmente em conflito latente entre si, esses senhores da guerra se unem em amplas coalizões principalmente quando alguma força externa – como o exército britânico que invadiu em 1839 e as forças armadas soviéticas que ocuparam o Afeganistão em 1979 – busca impor centralização e coerência.

Tanto a desastrada retirada britânica de Cabul em 1842, na qual apenas um único europeu escapou da morte ou do cativeiro, quanto a importante retirada soviética do Afeganistão em 1989 foram provocadas por essa união temporária entre clãs. O argumento atual de que o povo afegão não está disposto a lutar por si mesmo não é apoiado pela história. Eles têm sido combatentes ferozes por seus clãs e pela autonomia tribal.

Com o tempo, a guerra assumiu o padrão das campanhas de contra-insurgência anteriores, nas quais o apoio interno americano foi aos poucos enfraquecendo. A destruição das bases do Talibã foi no geral alcançada. Mas a construção de uma nação em um país dilacerado pela guerra absorveu substanciais forças militares. O Talibã podia ser contido, mas não eliminado. E a introdução de formas estranhas de governo enfraqueceu o comprometimento político e fez aumentar a já abundante corrupção.

Desta forma, o Afeganistão repetiu os padrões de controvérsia da política interna americana. O que o lado da contrainsurgência definia como progresso, o político tratava como desastre. Os dois lados tendiam a paralisar um ao outro durante os sucessivos governos de ambos os partidos. Um exemplo é a decisão de 2009 de unir o aumento de tropas no Afeganistão com o anúncio simultâneo de que elas começariam a ser retiradas em 18 meses.

O que foi negligenciada foi uma alternativa exequível. A contra-insurgência poderia ter se reduzido à contenção, e não à destruição, do Talibã. E o curso político-diplomático poderia ter explorado um dos aspectos especiais da realidade afegã: que seus vizinhos – mesmo quando adversários entre si e ocasionalmente conosco – se sentem profundamente ameaçados pelo potencial terrorista do Afeganistão.

Teria sido possível coordenar esforços comuns de contra-insurgência? É certo que Índia, China, Rússia e Paquistão costumam ter interesses divergentes. Uma diplomacia criativa poderia ter buscado medidas comuns para conter o terrorismo no Afeganistão. Essa estratégia é a forma como a Grã-Bretanha abordou por um século questões territoriais na Índia e em todo o Oriente Médio, sem bases permanentes, mas com prontidão permanente para defender seus interesses junto com apoiadores regionais ad hoc. Mas essa alternativa nunca foi explorada. Tendo feito campanha contra a guerra, os presidentes Donald Trump e Joe Biden promoveram negociações de paz com o Talibã, que nos comprometemos e induzimos aliados a ajudar a esmagar 20 anos atrás. Isso culminou com uma retirada incondicional dos Estados Unidos por parte do governo Biden.

Descrever a evolução não afasta a insensibilidade e, sobretudo, a pressa da decisão de desistência. Os EUA não podem se furtar de serem um elemento-chave da ordem internacional devido a suas capacidades e valores históricos. Não podem evitá-lo retirando-se. Como combater, conter e superar um terrorismo aprimorado e apoiado por países com uma tecnologia cada vez mais sofisticada continuará sendo um desafio global. Deve ser combatido pelos interesses estratégicos nacionais junto com qualquer estrutura internacional que possamos criar por meio de uma diplomacia adequada.

Temos de reconhecer que nenhum dramático movimento estratégico está disponível no futuro imediato para compensar esse revés auto-infligido, como assumir novos compromissos formais em outras regiões. A precipitação americana aumentaria o desapontamento entre os aliados, encorajaria os adversários e semearia confusão entre os observadores. O governo Biden ainda está em seus estágios iniciais. Deve ter a oportunidade de desenvolver e sustentar uma estratégia abrangente compatível com as necessidades nacionais e internacionais. As democracias evoluem em um conflito de facções. Elas alcançam grandeza com suas reconciliações.

Veja em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Pelo-Mundo/Porque-os-EUA-fracassaram-no-Afeganistao/6/51453

Comente aqui