Por Nathan Caixeta | Créditos da foto: (Silvia Costanti/Valor)
Em homenagem à Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo, o mestre de todos nós
Tomarei a liberdade de compartilhar a experiência de dialogar com Luiz Gonzaga Belluzzo que com sua gentileza habitual acolhe sempre que possível as dúvidas de um jovem escritor (denomino-me escritor, por julgar mais humilde do que a posição olímpica reservada aos economistas).
O diálogo percorre com o vislumbre de um jogador de várzea convidando Pelé para jogar uma “pelada”, fazendo da contenda no gramado o palco de uma final de Copa do Mundo. Se o passe sai “torto”, de “canelada”, Belluzzo domina como quem dribla as leis da física, criando o tempo e abrindo espaço para dar sequência ao avanço ofensivo. Encontrando-me cercado pela marcação, o mestre compartilha de sua visão privilegiada de alguém que já antecipou “anos-luz” à frente o movimento da defesa adversária, descadeirando num só movimento as retrancas ensaiadas pelo senso-comum. Por fim, o craque do saber surpreende a torcida, exibindo elegância e criatividade, valores quase régios para um palestrino que assistiu de perto a magia de Ademir da Guia.
O Divino do Palestra
Ademir, “O Divino” do Palestra marcou época ao vestir as cores alviverdes. Segundo Belluzzo, o estilo de jogo de Ademir retratava em obra viva as figuras do Renascimento. Michelangelo talvez viajasse pelos séculos para apreciar o religare entre o homem de corpanzil esguio e consciente que pairava sobre a grama ditando as notas da sinfonia de uma academia da arte futebolística e o divino que humildemente colava a bola ao pé direito em um ato inseparável de magia. Armando Nóbrega, responsável por anunciar ao mundo o florescimento do “camisa 10” Palmeirense comparava-o ao tom de um primeiro violino, capaz de guiar o ritmo de um acorde agudo e ofensivo ao silêncio tão calmo capaz de retroceder os ponteiros do relógio, abrandando e dominando o espaço. Dr. Sócrates, meia tão raro quanto Ademir, anotou: “o futebol nos ofereceu um grande bailarino”. Foram 15 anos de arte ao lado de Dudu, Leivinha, César, Emerson Leão e outros tantos. Azar da Copa do Mundo que só assistiu ao baile do Divino uma única vez em 1974.
Jorge Luís Borges: O saber e a dúvida
Poeta e escritor argentino, Jorge Luís Borges habita a sala dos gigantes, ao lado de Camões, Neruda, Fausto, Gabriel García Márquez e o nosso Carlos Drummond de Andrade. Curiosamente a sala onde habitam esses monumentos do saber em nada se assemelha a torre de babel dos intelectuais acadêmicos, mas é decorada por um tom mais humilde que une da metafísica ao materialismo, o romance e o existencialismo, da arte eternizada nas obras à brevidade da vida do artista. Por fora, feita de taipa e barro, por dentro escondidos tesouros.
Para este detalhe Belluzzo alertou-me, relembrando a célebre frase de Borges em “Un Lector, El Elogio da Sombra”: “Que outros se orgulhem do número de páginas que escreveram. Eu prefiro me gabar das que li”. A ironia de Borges desfere duplo golpe: de pedra bruta atirada contra o ego daqueles que escrevem como se suas palavras a tudo respondessem; e de diamante lapidado por aqueles que buscam na leitura algo mais que esclarecimento, mas a expansão do próprio horizonte de dúvidas.
Ainda, no poema “Sobre o Rigor da Ciência”, Borges desvelou a agonia do saber científico em contraste ao exercício da labuta intelectual. Segundo Borges, o saber científico trafega em uma encruzilhada indissolúvel: reduzir a realidade concreta à representação atômica de um mapa descritivo, ou expandir a representação dos detalhes da realidade ao ponto de suplantar o espaço mapeado. O dilema de Borges é inescapável, pois de duas a uma: o saber científico busca por respostas que pretendam, ou o reducionismo absoluto, ou a explicação “universal” da realidade. Também, agônico por a realidade ser mutável em múltiplas dimensões, do real ao provável e deste ao virtualmente ilimitado. O real verifica-se em fragmentos tão dispersos no espaço-tempo que restringem a percepção aos limites da cognição e dos sentidos humanos. O provável, alvo do rigor matemático das ciências, é apenas parcialmente capturado, seja pela impavidez de alguma variável escolhida ao acaso, seja pela hercúlea assunção da aleatoriedade dos fenômenos dos quais se observam apenas os efeitos sem que possam ser comprovados os fenômenos pelo exercício empírico. O virtualmente ilimitado enuncia o universo do “devir” entregue à indeterminação metafísica.
Novamente, invoca-se a criatividade em contraste ao rigor capaz de cegar os sentidos. O ato da criação tem por antessala do exercício da dúvida que inconscientemente une o virtualmente ilimitado ao real, ao mesmo tempo, em que rechaça a aleatoriedade do possível, como quem imagina uma pintura, antes de empunhar o pincel. As respostas oferecidas pelo rigor da ciência tomam a realidade como objeto para “lançar mão” da predição daquilo que é provável. Max Weber matou a charada em “A ciência como vocação” ao concluir que o trabalho intelectual não deve buscar as explicações finalísticas, pois estas se esvaem no tempo diante de novas descobertas, mas perseguir a arte da criação na perquirição diletante ante a realidade concreta, pois se as respostas são formuladas esperando sua superação, as dúvidas permanecem eternas.
Luiz Gonzaga Belluzzo e a dialética: a dúvida ao serviço do saber e a paixão pelo conhecimento
Em dois dos diálogos com Belluzzo, duas frases me marcaram em meio aos diamantes despejados aos montes a cada comentário realizado pelo mestre (com a devida licença da paráfrase): “…tenho muito receio para com aqueles que preservam muitas certezas” e prossegue em outro diálogo: “muito difícil e um tanto constrangedor para um discípulo de Inácio de Loyola opinar sobre sua trajetória intelectual. Mas, posso garantir que ao longo de minha vida a paixão pelo conhecimento foi infinitamente mais intensa que a afirmação do ego”.
Essas frases proferidas em diálogos informais esboçam fragmentos do testemunho vivo de um intelectual na acepção mais nítida das palavras, como aquele que transpassa o mimetismo habitual do saber econômico e lança-se sem receio ao desconhecido, operando o árduo e autêntico exercício da dúvida com a humildade herdada de suas origens como seminarista na ordem dos Jesuítas, conjugando-a ao aprimoramento do pensamento dialético herdado do materialismo histórico. Tenho para mim, como discípulo que segue apaixonadamente os passos do mestre, que o fio que amarra a densa e farta obra de Belluzzo não é tecido somente pelos caminhos teóricos que destrinchou para seus discípulos, mas o aprimoramento de um método de investigação autêntico capaz de concatenar diversos campos de conhecimento, recheando suas interpretações de diversas fontes na busca incessante pelo encaminhamento das contradições. Não por menos, certa vez disse: “no capitalismo tudo parece mudar, para permanecer igual” e continuou: “pensar o capitalismo é ter a noção de que [dialeticamente], ‘uma coisa é uma coisa, e outra coisa é a mesma coisa”, demonstrando a boa ironia herdada certamente de John Maynard Keynes.
O que distingue Belluzzo dos economistas convencionais não é, como Borges, aquilo que escreveu, mas seu visceral interesse pela leitura e a atenção dada à interpretação do “movimento das estruturas”, isto é, da contradição em movimento própria ao modo de reprodução do capital. A teoria econômica na grande maioria de seus esforços explicativos, esmera-se em “matar o movimento das estruturas” acomodando-se ao lugar-comum em que “tudo mais constante” à causalidade das correlações estatísticas é garantida. Belluzzo, por outro lado, persegue a contradição não com o objetivo de dissolvê-las esquematicamente, mas de explicitar suas conexões. Outro aspecto que marca a trajetória do intelectual palestrino é sua generosidade para com seus pares e discípulos, ato testemunhado de forma unânime. A construção coletiva do conhecimento marca a obra de Belluzzo, certamente, assemelhando-se ao contubérnio das eras poéticas, tão amplo quanto o horizonte de Borges.
Como palmeirense apaixonado, não se limitou ao vislumbre das retinas com a magia divina de Ademir da Guia, como reproduziu em seu estilo de escrita a elegância do Divino do Palestra.
A emergência da dúvida e a elegância com que enfrenta o espinhoso caminho da dialética desenha uma genealogia intelectual (e, porque não espiritual) da união da elegância de Ademir, da ironia de Keynes, da peregrinação dialética de Marx, da dúvida de Borges e, retornando às raízes, da humildade Jesuítica. Reunidos essas heranças, Luiz Gonzaga Belluzzo é, em simultâneo, mestre e eterno aprendiz, desbravador que para muitos abriu caminho, e, acima de tudo um questionador incansável que realiza na plenitude o preceito de Weber: o ato da dúvida eternizada em seus escritos, as certezas rechaçadas pela humildade de quem tanto conhece, consciente da existência do inesgotável universo do saber a ser conhecido e desbravado.
Ao mestre, com carinho dedico uma poesia de minha autoria (desculpando-me antecipadamente por não fazer jus ao talento de Borges):
Ode às certezas
“O que é conhecer, senão duvidar?
Receoso, me ponho a pensar
Um universo tão vasto
Para nos acomodarmos com o comum
Tanta tinta, papel gasto
Que não leva a lugar nenhum
Por isso a emergência da dúvida
No admirável vislumbre do desconhecido
Afinal, se tudo muda
O que fazer, quando todas nossas certezas já haviam desaparecido”
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