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Quem lucra com o bombardeio suicida em Cabul?

O EI-Khorasan busca provar aos afegãos e ao mundo que o Talibã não consegue proteger a capital

Por Pepe Escobar| Créditos da foto: (Wakil Kohsar/AFP) |Tradução: de Isabela Palhares

O horrível bombardeio suicida em Cabul introduz um vetor extra em uma situação já incandescente: busca provar, aos afegãos e ao mundo, que o nascente Emirado Islâmico do Afeganistão é incapaz de proteger a capital.

Ao que parece, ao menos 103 pessoas – 90 afegãos (incluindo ao menos 28 talibãs) e 13 militares estadunidenses – foram mortos e ao menos 1.300 feridos, de acordo com o ministério da Saúde afegão.

A responsabilidade pelo bombardeio veio por meio de declaração através do canal no Telegram da “Amaq Media”, a agência de notícias oficial do Estado Islâmico (EI). Isso significa que veio do centro de comando do EI, embora os perpetradores fossem membros do EI-Khorasan, ou EI-K.

Com a presunção de herdar o peso histórico e cultural das terras da Ásia central, que, no tempo do Império Persa, se estendiam até o Himalaia ocidental, esse desdobramento corrompe o nome de Khorasan.

O homem-bomba que conduziu a “operação martirizada perto do aeroporto de Cabul” foi identificado como sendo Abdul Rahman al-Logari. Isso sugeriria que ele é afegão, da província vizinha Logar. E isso sugeriria que o bombardeio pode ter sido organizado por uma célula adormecida do EI-K. Análises eletrônicas sofisticadas das suas comunicações seriam capazes de provar isso – ferramentas que o Talibã não possui.

O modo como o EI – especialista em redes sociais – escolheu conduzir a carnificina, merece uma crítica cuidadosa. A declaração na Amaq Media ataca o Talibã por estar “em uma parceria” com o exército dos EUA na evacuação de “espiões”.

Faz piada das “medidas de segurança impostas pelas forças estadunidenses e pela milícia talibã na capital Cabul”, ao passo que o seu “mártir” foi capaz de chegar “a uma distância de não menos que cinco metros das forças estadunidenses, que estavam supervisionando procedimentos”.

Então, fica claro que o recém renascido Emirado Islâmico do Afeganistão e a potência que o ocupava estão lidando com o mesmo inimigo. O EI-K representa um punhado de fanáticos, denominados “takfiris”, porque eles definem outros muçulmanos – nesse caso o Talibã – como “apóstatas”.

Fundado em 2015 por jihadistas migrantes enviados ao sudoeste do Paquistão, o EI-K é uma besta duvidosa. Seu líder atual é Shahab al-Mujahir, que era um comandante de nível médio da rede Haqqani sediada em Waziristan do Norte nas áreas tribais do Paquistão. A rede é uma coleção de diferentes “mujahideen” e aspirantes a jihadistas sob o guarda-chuva da família.

Washington rotulou a rede Haqqani como sendo uma organização terrorista em 2010, e trata diversos membros como terroristas globais, incluindo Sirajuddin Haqqani, o chefe da família, após a morte do fundador Jalaluddin.

Até agora, Sirajuddin era o líder adjunto do Talibã nas províncias do leste – no mesmo nível que Mullah Baradar, o chefe do escritório político em Doha, que foi libertado de Guantánamo em 2014.

Essencialmente, o tio de Sirajuddin, Khalil Haqqani, anteriormente no comando do financiamento estrangeiro da rede, está agora no comando da segurança de Cabul e trabalhando como diplomata integralmente.

Os líderes anteriores do EI-K foram extinguidos por ataques aéreos em 2015 e 2016. O EI-K começou a se tornar uma força verdadeiramente desestabilizadora em 2020 quando o bando reagrupado atacou a Universidade de Cabul, uma ala da maternidade dos Médicos Sem Fronteiras, o Palácio Presidencial e o aeroporto.

Inteligências da OTAN captadas por um relatório da ONU atribuem um máximo de 2.200 jihadistas ao EI-K, divididos em células menores. Significantemente, a maioria absoluta não é afegã: iraquianos, sauditas, kuwaitianos, paquistaneses, uzbeques, chechenos e uighurs.

O real perigo é que o EI-K trabalha como um tipo de imã para todos os tipos de chefes de guerra desorientados e descontentes que não têm para onde ir.

O alvo fácil perfeito

A comoção civil nos últimos dias no aeroporto de Cabul foi o alvo fácil perfeito para uma carnificina a estilo EI.

Zabihullah Mujahid – o novo ministro da informação do Talibã em Cabul, que, nessa qualidade, conversa com a imprensa global todos os dias – foi quem alertou membros da OTAN sobre um eminente bombardeio suicida do EI-K. Diplomatas de Bruxelas confirmaram.

Em paralelo, não é segredo entre os círculos de inteligência na Eurásia que o EI-K se tornou desproporcionalmente mais poderoso desde 2020 por causa das rotas de fuga de Idlib na Síria para o leste do Afeganistão, informalmente conhecidas como “Linhas aéreas Daesh”.

Moscou e Teerã, mesmo em altos níveis diplomáticos, culparam o eixo EUA- Reino Unido como os principais facilitadores. Até mesmo a BBC reportou no final de 2017 sobre centenas de jihadistas do EI recebendo passe livre para fora de Raqqa, e para fora da Síria, bem debaixo do nariz dos estadunidenses.

O bombardeio de Cabul aconteceu após dois eventos importantes.

O primeiro foi a alegação de Mujahid durante uma entrevista concedida à NBC News dos EUA de que “não há provas” de que Osama bin Laden estava por trás do 11 de setembro – um argumento que eu já indiquei que estava vindo em um podcast.

Isso significa que o Talibã já começou uma campanha para se desconectar do rótulo de “terrorista” associado com o 11 de setembro. O próximo passo pode envolver argumentar que a execução do 11 de setembro foi estabelecida em Hamburgo, e os detalhes operacionais coordenados de dois apartamentos em Nova Jérsei.

Nada a ver com os afegãos. E tudo dentro dos parâmetros da narrativa oficial – mas essa é uma outra história imensamente complicada.

O Talibã precisará mostrar que o “terrorismo” tem tudo a ver com o seu inimigo letal, o EI, e que vai muito além da velha guarda al-Qaeda, que o nutriram até 2001. Mas porque estão tímidos em relação a tais alegações? Afinal, os EUA reabilitaram o Jabhat al-Nusra – ou al-Qaeda na Síria – como “rebeldes moderados”.

A origem do EI é um material incandescente. O EI foi gerado em campos carcerários no Iraque, seu núcleo composto de iraquianos, suas habilidades militares vêm de ex-oficiais do exército de Saddam, um grupo selvagem demitido há anos em 2003 por Paul Bremmer, o chefe da Coalizão de Autoridade Provisória.

O EI-K conduz o trabalho do EI desde o sudoeste da Ásia até as encruzilhadas da Ásia central e do sul asiático no Afeganistão. Não há evidências legítimas de que o EI-K tenha laços com inteligências militares paquistanesas.

Ao contrário: o EI-K é amplamente alinhado com o Tehreek-e-Talibã (TTP), também conhecido como o Talibã paquistanês, o inimigo mortal de Islamabad. A agenda do TTP não tem nada a ver com o moderado Talibã afegão liderado por Mullah Baradar que participou no processo de Doha.

A SCO ao resgate

O outro evento significativo até mesmo relacionado com o bombardeio em Cabul foi o fato de que aconteceu um dia após outro telefonema entre os presidentes Vladimir Putin e Xi Jinping.

O Kremlin salientou a “prontidão do par em aprimorar as iniciativas para combater ameaças de terrorismo e tráfico de drogas que venham do território do Afeganistão”; a “importância do estabelecimento da paz”; e “evitar a disseminação da instabilidade em regiões adjacentes”.

E isso levou ao fator decisivo: eles se comprometeram em conjunto a “tirar o maior proveito do potencial” da Organização de Cooperação Xangai (SCO), que foi fundada 20 anos atrás como o “Cinco de Xangai”, mesmo antes do 11 de setembro, para lutar contra o “terrorismo, separatismo e o extremismo”.

A cúpula da SCO é no mês que vem em Dushanbe – quando o Irã, certamente, será admitido como membro interino. O bombardeio em Cabul oferece a SCO a oportunidade de avançar com força.

Independentemente de qual coalizão tribal complexa seja formada para governar o Emirado Islâmico do Afeganistão, será entrelaçada com o aparato completo da cooperação regional econômica de segurança, liderada pelos três principais atores da integração euro-asiática: a Rússia, a China e o Irã.

O histórico mostra que Moscou tem tudo o que é necessário para ajudar o Emirado Islâmico contra o EI-K no Afeganistão. Afinal, os russos tiraram o EI de todas as partes importantes da Síria e o confinaram em Idlib.

No fim das contas, ninguém além do EI quer um Afeganistão aterrorizado, assim como ninguém quer uma guerra civil no Afeganistão. Então a ordem do dia indica não somente uma luta frontal liderada pela SCO contra as células terroristas existentes do EI-K no Afeganistão, como também indica uma campanha integrada para drenar qualquer base social em potencial dos “takfiris” na Ásia central ou no sul asiático.

Veja em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Pelo-Mundo/Quem-lucra-com-o-bombardeio-suicida-em-Cabul-/6/51486

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