Para os socialistas, estabelecer a confiança popular na viabilidade de uma sociedade socialista tornou-se um desafio existencial. Sem uma crença renovada e bem fundamentada na possibilidade de funcionamento do socialismo, é quase impossível imaginar como reviver e sustentar o projeto socialista. Este ensaio assume esse desafio ao apresentar um conjunto de arranjos institucionais e relações sociais ilustrativos que promovem a defesa da plausibilidade do socialismo.
Por Sam Gindin/ Tradução Everton Lourenço/ Imagem Catalyst
Quando, há cerca de quatro décadas, Thatcher arrogantemente afirmou que “não há alternativa”, uma esquerda confiante poderia ter virado de ponta-cabeça essa declaração, ao acrescentar que “sim, de fato não há alternativa real – sob o capitalismo”. Só que essa esquerda não existia. A esquerda radical era pequena demais para ter importância, e os partidos social-democratas já haviam abandonado a defesa do socialismo como uma opção sistêmica. Ao longo das décadas que se seguiram, em geral – e apesar do advento de um vago “anticapitalismo” – os passos em direção a uma transformação radicalmente igualitária e democrática da sociedade retrocederam ainda mais.
Das duas tarefas centrais que a construção do socialismo exige – convencer uma população cética de que uma sociedade baseada na propriedade pública dos meios de produção, distribuição e comunicação poderia de fato funcionar, e agir para acabar com o domínio capitalista – a esmagadora maior parte do foco daqueles que ainda seguem comprometidos com o socialismo tem estado na batalha política para derrotar o capitalismo. O verdadeiro aspecto da sociedade no final do arco-íris, com algumas notáveis exceções, tendeu a receber atenção apenas retórica ou superficial. Porém, sob a triste sombra lançada pela marginalização do socialismo, a afirmação improvisada sobre os aspectos práticos do socialismo não será o suficiente. Conquistar as pessoas para um esforço complexo e prolongado para introduzir formas profundamente novas de produzir, viver e se relacionar com os outros exige um envolvimento muito mais profundo com as possibilidades reais do socialismo.
Para os socialistas, estabelecer a confiança popular na viabilidade de uma sociedade socialista é agora um desafio existencial. Sem uma crença renovada e bem fundamentada na possibilidade desse objetivo, é quase impossível imaginar como reviver e sustentar o projeto. É preciso enfatizar, não se trata de uma questão de provar que o socialismo é possível (o futuro não pode ser verificado) e nem de traçar um plano completo (como seria o caso com a tentativa de se projetar o capitalismo antes de sua chegada, tais detalhes não podem ser conhecidos) , mas de apresentar um quadro estrutural que contribua para a defesa da plausibilidade do socialismo.
Parte 1. Quando a esperança “soa estranha em nossos ouvidos”
Afamosa reprimenda do Manifesto Comunista aos utópicos por gastarem seu tempo com “castelos no ar” ia além da tensão entre o sonhar e o fazer, embora, é claro, também falasse disso. Ao enfatizar que nossas visões e as ações que correspondem a elas precisam se basear em uma análise da sociedade e na identificação da agência social, Marx e Engels introduziram o que equivalia a uma exposição inicial do materialismo histórico. Sem uma lente histórica, argumentam eles, os utópicos simultaneamente ficavam para trás e, ainda assim, prematuramente corriam à frente da História: ficavam para trás, ao deixar de notar a importância de um novo ator revolucionário emergente, o proletariado; e precipitadamente se apressavam à frente, ao se deixar absorver no detalhamento de um mundo distante que naquele momento só poderia ser imaginado nos termos mais gerais e abstratos.
Esta crítica mais profunda ao utopismo desencorajou as futuras gerações de socialistas revolucionários de um engajamento a sério com a questão da viabilidade do socialismo – uma relutância que, como já observado, em grande parte ainda persiste. A orientação da política socialista se voltou para a análise da economia política do capitalismo, apreendendo sua dinâmica e contradições e para a facilitação da formação dos despossuídos em uma classe coerente com o potencial de refazer o mundo. Somente no processo de luta para transformar o capitalismo, insistiam os marxistas, poderiam surgir as capacidades coletivas para construir o socialismo, e somente no processo de enfrentamento aos novos dilemas levantados, poderiam vir à tona soluções institucionais.
Tal orientação é claramente indispensável ao projeto socialista, nossa intenção aqui certamente não é menosprezá-la. No entanto, ela não justifica, especialmente na conjuntura atual, o comum desdém marxista por contemplações utópicas. Na esteira da profunda derrota da esquerda socialista e do consequente fatalismo generalizado sobre alternativas transformadoras, não é suficiente se concentrar em chegar lá. Agora, é no mínimo tão importante quanto isso convencer socialistas em potencial de que realmente existe um “lá” para onde ir.
Em retrospecto, as advertências de Marx e Engels contra a fixação em um futuro desconhecido possuem um ar convincente. Naquela fase inicial do capitalismo, nem o carro – sem falar no avião, no computador eletrônico e na internet – ainda não havia sido inventado. Os sindicatos estavam apenas surgindo, o sufrágio universal ainda estava a uma época de distância, o Estado moderno ainda não seria reconhecível e, acima de tudo, a Revolução Russa e as novas questões que ela colocava ainda não haviam surgido no palco político. Debater naquelas condições como poderia ser a aparência do futuro socialista certamente, em retrospecto, confirma quão presunçoso teria sido dedicar atenção demais à operacionalidade de uma sociedade socialista.
Além disso, a relativa juventude do capitalismo na época do Manifesto tornava aquele período comparativamente mais aberto ao vislumbre de sua rejeição: as barreiras dos laços culturais, religiosos e familiares tradicionais bloqueavam o caminho para o domínio total do capitalismo e a absorção da classe trabalhadora no novo sistema social permanecia incompleta. Nas décadas após 1873, o ano em que Marx cunhou o bordão de chacota sobre “escrever receitas para as cozinhas do futuro”, o socialismo estava no ar de uma forma que não está mais atualmente. O socialismo era amplamente discutido entre os trabalhadores, e em Londres estava “na moda até mesmo para os jantares do West End [distrito central] simular o interesse e o conhecimento do tema.” [1] Partidos socialistas de massa estavam surgindo em toda a Europa e esses desenvolvimentos eram amplamente seguidos, com ansiedade ou esperança. Nos Estados Unidos, embora um partido socialista de massas nunca tenha se firmado, a segunda metade do século XIX marcou o início de uma “longa era de anticapitalismo” que incluia um “desejo de derrubar a nova ordem das coisas”. [2]
Essa abertura para o socialismo persistiu após a Primeira Guerra Mundial. Como observa o prefácio de uma obra de Karl Polanyi sobre contabilidade socialista, no início dos anos 1920 Polanyi era “apenas um dos muitos cientistas sociais que consideravam contabilidade, preços e socialismo o tópico mais excitante da época”. [3] Surpreendentemente, essa atitude existia mesmo dentro da economia neoclássica, que emergiu à sombra da Comuna de Paris essencialmente como uma oposição a Marx. [4] No final da década de 1920, o presidente da prestigiada Associação Econômica Americana (American Economic Association) começou sua palestra declarando que “como a maioria dos professores de teoria econômica, descobri que vale muito a pena passar algum tempo estudando qualquer problema específico a partir do ponto de vista de um Estado Socialista.” Continuando a palestra e abordando como uma sociedade sem propriedade privada dos meios de produção poderia determinar preços e alocar recursos, afirmava com segurança que suas autoridades “não teriam dificuldade em descobrir se a avaliação padrão de qualquer fator específico estaria muito alta ou muito baixa” e concluia que “com isso tendo sido aprendido, o resto seria fácil”. [5]
Mais tarde, Murray Rothbard, um discípulo vitalício do arqui-conservador Ludwig von Mises, lamentava que quando ele ingressou na pós-graduação, após a Segunda Guerra Mundial, “o establishment da Economia estava todo decidido, à esquerda, direita e centro, que […] os únicos problemas do socialismo, como poderia ser, eram políticos. Economicamente, o socialismo poderia funcionar tão bem quanto o capitalismo”. [6] Com o socialismo carregando tal grau de credibilidade econômica, a elaboração dos detalhes de uma sociedade socialista funcional parecia algo decididamente menos urgente para os socialistas do que desenvolver a política para alcançá-la.
Mas tais aberturas para um mundo diferente, por mais qualificadas que fossem, hoje se contraíram de maneira impressionante. Erik Olin Wright começa seu monumental tratado sobre “utopias reais” relembrando melancolicamente que “houve uma época, não muito tempo atrás, em que tanto os críticos quanto os defensores do capitalismo acreditavam que ‘outro mundo era possível’. Geralmente era chamado de ‘socialismo’.” Wright segue, lamentando que “a maioria das pessoas no mundo hoje, especialmente em suas regiões economicamente desenvolvidas, não acredita mais nessa possibilidade.” [7]
O frequentemente observado paradoxo de nosso tempo é que mesmo com a intensificação das frustrações populares com o capitalismo, a crença em alternativas transformadoras continua a definhar. Há claramente um apetite por mudança e o discurso de “anticapitalismo” permeia os protestos, mas a sublime linguagem de esperança em uma alternativa sistêmica “soa estranha em nossos ouvidos”. [8] A persistência e até mesmo o fortalecimento do capitalismo diante de grandes crises parecem confirmar ainda mais sua permanência. A fé do Manifesto nos “coveiros do capitalismo” se choca com a atomização dos trabalhadores, a profundidade de suas derrotas, sua integração multidimensional ao capitalismo e sua dolorosa incapacidade de defender os ganhos do passado – quem dirá falar em agendas radicais. A perspectiva avassaladora de assumir um capitalismo global que parece estar além do alcance de qualquer Estado em particular, aparentemente nos deixa sem um alvo tangível, reforçando o senso de que “não há alternativa”, agora difundido entre múltiplas gerações .
Se adicionarmos as traições da social-democracia da Terceira Via, o fatídico colapso da União Soviética, a via chinesa para o capitalismo, os fracassos de outras revoluções dos séculos XX e XXI que ocorreram em nome do socialismo e a recente reversões política na América Latina e na Europa (por um tempo, o corbynismo pareceu uma possível exceção), fica nítido que a “mudança radical” é hoje, na maioria das vezes, um cartão de visitas da direita. O atual zeitgeist de que nenhuma alternativa ao capitalismo seria possível parece, tirando alguns bolsões teimosos, algo estabelecido. A libertadora confiança que o Manifesto irradiava foi substituída por um ceticismo onipresente sobre possibilidades transformadoras.
Saiba mais em: https://jacobin.com.br/2021/01/socialismo-para-realistas/
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