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Sociologia da claridade e da escuridão

Por Boaventura de Sousa Santos / Créditos da foto: Night Fog, de Valerio Zaccone (Reprodução/bit.ly/3x9J7Y0)

Este é o terceiro mini-ensaio sobre a luz e a sombra, a claridade e a escuridão. Nele procuro analisar o modo como a claridade e a escuridão não só afetam as relações sociais e com a natureza como as criam. Numa perspectiva sociológica, são fenômenos naturais-sociais de enorme ductilidade ou ambiguidade, o que lhes permite ter valências múltiplas e contraditórias com o poder social, político e cultural. A claridade e a escuridão e todos os graus intermédios de luminosidade condicionam o modo como vivemos, como nos movemos, como nos comunicamos, como avaliamos o que está perante nós, como criamos obras de arte, sejam elas pintura, poesia, romance, cinema, teatro ou música. Basta recordar o filme noir com os seus contrastes chiaroscuro, sob influência do expressionismo alemão, ou o novo gênero musical, surgido no século XVIII, o notturno (Nachtmusik),música instrumental para ser tocada à noite.Haydn compôs oito notturni e Mozart a Serenata notturna (k239). Neste texto, concentro-me no modo como a claridade e a escuridão do espaço e do tempo intervêm em relações de poder, seja ele de natureza capitalista, racista, sexista ou religiosa, e também em relações de resistência e de convivência.

O dia e a noite. O dia e a noite são desde tempos imemoriais os marcos divisores das formas de sociabilidade e das relações com a natureza.O escuro da noite foi sempre fundamental para ver o céu e interpretar os astros. A auscultação dos astros era crucial para saber as horas, prever as condições meteorológicas, navegar em águas desconhecidas, decidir os trabalhos e os ritmos agrícolas, adivinhar o futuro, etc. Também a vida dos animais se regulava pelos astros. Durante milênios, a vida social foi estruturada pela claridade do tempo diurno em total contraste com o tempo noturno em que as formas de sociabilidade eram totalmente distintas. A noite era o tempo do descanso, dos perigos, dos excessos e dos prazeres ilícitos. Nas cidades medievais, andar de noite pela rua era perigoso, não só por causa dos ladrões, dos assassinos ou das bruxas, mas também das fezes e outros lixos atirados das janelas.Dentro das casas, as velas criavam pequenos pontos de luz que mal competiam com a escuridão envolvente. É certo que as pessoas se orientavam pelos cheiros, pelos sons e pelo tato com uma eficiência que hoje só se encontra entre os invisuais. Segundo os diários da vida doméstica medieval que chegaram até nós, tipicamente um casal deitava-se pouco depois do sol pôr, dormia o primeiro sono de quatro horas, acordava e ficava na cama mais duas horas a conversar e a amar e ao raiar do dia levantava-se para ir trabalhar ou iniciar as tarefas diárias.

A sedução da luz estava associada à revelação desde o tempo bíblico. Não foi por acaso que a afirmação da racionalidade moderna se designou por Iluminismo, ainda que, como referi em textos anteriores, tivesse havido muitos outros iluminismos e renascimentos além dos europeus. Foi também por essa razão que a Idade Média se passou a designar, sobretudo no século XIX, por “a idade das trevas”, quase ao mesmo tempo em que o colonialismo foi afirmando a superioridade da Europa sobre o “continente escuro” habitado por “gente escura”, qualquer que fosse a sua cor de pele. Entretanto, o desenvolvimento do capitalismo exigia uma forte disciplina dos trabalhadores e isso traduziu-se numa crescente vigilância da noite, o período em que a burguesia tinha menos controle sobre as “classes perigosas”. A escuridão dos bairros pobres ou periféricos sublinhava ainda mais a suspeita de possíveis comportamentos depravados ou revoltosos. A iluminação pública surgiu assim como uma forma de biopolítica, disciplinar os corpos por via de maior vigilância em nome do progresso e da manutenção da ordem. A noite foi, assim, banida da cidade e passou a ser sinônimo de perigo, de crime. Mas nada disto ocorreu sem resistência porque a noite tinha uma sedução que ia muito além da vida monótona do casal burguês. A noite era também o espaço da autonomia. Por isso, a escuridão da noite sempre foi usada para escapar aos detentores do poder, como bem ilustra o caso dos escravos fugitivos.

A luz natural e a luz artificial. A difusão da luz artificial a partir do século XIX veio transformar profundamente as relações entre a noite e o dia. Foi um progresso extraordinário, mas, como todos os outros, não era politicamente inócuo e acabou por produzir efeitos perversos. A luz artificial permitia clarear a noite e noturnizar a vida e de tal modo que muitas atividades, antes separadas pelo ritmo natural do dia e da noite, podiam ser realizadas indistintamente de dia ou de noite. O glamour da “cidade que não dorme” tornou-se irresistível. Nada disto ocorreu sem resistência nem custos. Os primeiros candeeiros públicos a gás foram apedrejados por aqueles e aquelas para quem a escuridão da noite era considerada uma condição essencial da sua sobrevivência ou profissão, fossem ladrões, prostitutas, artistas, traficantes de drogas, boêmios ou revolucionários. Com a crescente invasão da luminosidade artificial, os artistas, ainda que menos condicionados pela divisão do dia e da noite, passaram a preferir a escuridão para a sua criatividade e tiveram de a procurar em caves, bares, túneis, canais de esgoto, periferias urbanas ou no campo. Uma vez desprovida da sua presença natural, a escuridão transformou-se numa nova atração, um divertimento público, ambiente propício para a evocação de espíritos em sessões espiritistas ou para filmes de terror. Prospera hoje uma economia da noite em que a escuridão é um elemento fundamental do sublime urbano noturno.

Os custos, para além dos gastos de energia, traduzem-se hoje num novo conceito, a poluição da luminosidade, entendendo-se por tal a excessiva e invasiva iluminação do espaço público nas cidades do Norte global. A iluminação excessiva produz uma nova forma de cegueira. Até ao início do século XX, era possível ver à noite e a olho nu cerca de 2.500 estrelas. Hoje, vêem-se menos de uma dúzia. Em 1994, ocorreu um terremoto na Califórnia que provocou um apagão na cidade de Los Angeles. Muitos residentes telefonaram para a polícia em pânico, dizendo estar a ver “uma imensa nuvem prateada no céu”. Era a Via Láctea…que eles viam pela primeira vez. Calcula-se que hoje mais de um terço da humanidade não pode ver a Via Láctea. Quanto mais brilha a terra, mais o firmamento se esconde. Para o comum das pessoas, o firmamento deixou de ser uma complexa e rica fonte de informação e de contemplação e passou a ser uma abóbada tão transparente quanto opaca. Isto é certamente um problema para os astrônomos, mas tem muitas outras ramificações, na vida dos animais humanos e não humanos, na saúde mental, na aprendizagem, nos ciclos de vida.

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