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Trincheiras indígenas no coração das cidades

Relato de uma liderança guarani, em nova série de Outras Palavras. Crescimento vertiginoso de SP emparedou sua aldeia. Com a devastação, veio o colonialismo de igrejas e escolas. Mas eles resistem para manter viva sua cosmovisão…

Por Angela Pappiani| Relato de Tupã Mirim (povo Guarani M’byá)

O Censo Demográfico realizado a cada 10 anos pelo IBGE deveria ter acontecido em 2020, foi adiado para 2021 e agora definitivamente cancelado, a não ser que o Supremo Tribunal Federal consiga reverter a decisão do presidente.

Sem o Censo, o Brasil continuará não conhecendo o Brasil. A constatação unânime é de que os prejuízos são incalculáveis, afetarão políticas públicas, planejamento, decisões importantes para a economia e desenvolvimento social do país. Além do aspecto estatístico, de dados cruciais para orientar os governos, existe o aspecto humano, coletivo, de pertencimento, de possibilidades de reconhecimento de quem somos e do que queremos. E entre tantos desconhecimentos e desencontros, não saberemos como cresceu a população declarada indígena em nosso país, que outras etnias saíram do anonimato, vencendo o medo de se afirmarem como povos originários; onde e como estão vivendo essas pessoas tão ignoradas e desrespeitadas ao longo de séculos, o que têm feito para garantir os recursos necessários à vida, como se organizam, que idiomas ainda falam, diante de tanta dificuldade e tentativas de apagamento.

É fato que a população nas aldeias tem aumentado, deixando para trás a possibilidade, tão acalentada pelos mandatários da nação, de que até a década de 1970 os povos indígenas desapareceriam definitivamente, absorvidos-engolidos pela sociedade dominante, fortalecendo a ideia de um país único e homogêneo. Como um feitiço que se voltou contra o feiticeiro, as aldeias florescem, a população cresce e se fortalece, as novas gerações vivenciam os rituais de passagem, se afirmam em sua identidade. Apesar de alguns povos com população reduzida seguirem sob a ameaça de desaparecimento, principalmente os que estão em isolamento voluntário em áreas cobiçadas, invadidas e destruídas sistematicamente, com incentivos do Palácio.

Pelo Censo de 2010, viviam no Brasil 305 povos, falando 274 línguas, com uma população de 896.917 pessoas que se declaravam ou se consideravam indígenas, sendo 324.834 indígenas em área urbana, sem especificar exatamente o que seria área urbana. Hoje existem bairros inteiros com população indígena organizada, em periferias de grandes cidades e pequenas vilas ou aglomerados dentro ou próximos de Terras Indígenas. Aqui em São Paulo, a população Guarani M’bya vive em territórios Indígenas demarcados dentro do perímetro da cidade, assim como os Guarani Kaiowá, em Dourados, Mato Grosso do Sul.

Mas quem são os indígenas que estão vivendo nas cidades, sozinhos ou em grupos? Por que estão fora da aldeia? O que motiva essa migração? São muitos os fatores. Em alguns casos, pessoas e até comunidades inteiras foram expulsas de seus territórios dominados por invasores, por ideologias, seitas religiosas, doenças, exiladas pelo medo e violência, ou se retiraram diante da total falta de recursos para sua sobrevivência. Em outros casos, a saída foi por escolha própria, curiosidade, busca do estudo, do tratamento de saúde, trabalho.

Mesmo saindo, mesmo estando longe de casa, o que liga essas pessoas a suas raízes, à tradição de seu povo? O desejo de retorno existe? Essas questões sempre me intrigaram. Ouvi, ao longo da convivência com pessoas indígenas, muitas histórias, verdadeiras sagas em busca de direitos e de uma vida melhor, com alguns finais felizes, outros nem tanto. Decidi então conversar com algumas pessoas de diferentes etnias que estão vivendo fora de suas aldeias agora, que estiveram fora por longo período e retornaram há pouco tempo, ou estão dentro da cidade, mesmo não estando.

Neste artigo e nos próximos, teremos a oportunidade de ouvir essas vozes e conhecer a trajetória de algumas pessoas que representam muitas outras em suas lutas por uma vida digna, com respeito à sua diversidade, enfrentando preconceitos, perigos e medos.

E para começar, quem fala de sua relação com a cidade de São Paulo é Tupã Mirim, professor de 38 anos que vive hoje na Tekoá Itakupé, na Terra Indígena Jaraguá, região noroeste da cidade. Apesar da pouca idade, Tupã é avô de 3 netos e já andou por muitas aldeias e cidades do país, em sua luta pelos direitos dos povos indígenas e por uma educação diferenciada e de qualidade.

Tupã Mirim pertence ao povo Guarani M’byá, uma grande nação indígena que sempre ocupou a Mata Atlântica, na costa brasileira, desde o Rio Grande do Sul até o Espírito Santo, atravessando fronteiras com a Argentina, Uruguai, Bolívia e Paraguai. Um vasto território que conhecem profundamente, por onde andam há milhares de anos e onde cuidam de seu Tekoa, o lugar onde se realiza o modo de ser, onde acontece o Nhandereko, o modo de viver Guarani, com reverência ao criador Nhanderu e à Terra Sagrada.

Quando nasceu, na aldeia Tenondé Porã, no extremo sul do município de São Paulo, a cidade ainda estava longe. A terra era coberta por matas onde os Guarani circulavam e ainda circulam por trilhas que descem até o mar e ligam as aldeias do planalto às do litoral, onde o material para o artesanato era abundante, havia caça, plantas medicinais e água pura. Não havia estradas, cercas, condomínios, ruas, casas, transporte público. Mas a cidade cresceu.

Em sua fala, Tupã diz que tudo seria diferente se tivesse nascido na Amazônia onde a natureza é abundante. Só que a realidade dos povos que lá vivem também é de luta diária para proteger da destruição o que ainda resta. Acredito que a presença do povo Guarani aqui em São Paulo é uma grande bênção para nós todos, pelo que garantem de natureza e vida para todos, pela sua espiritualidade e força, pelo exemplo de generosidade e amorosidade.

Tupã tem um jeito muito suave de falar, pausado, pronunciando com cuidado e força cada palavra. Sua fala nos transporta para um outro tempo, e, mesmo à distância, pude sentir a fumaça do Pytinguá, o cachimbo cerimonial, subindo em direção ao céu e o fogo iluminando a Opy, a Casa de Rezas. Com a palavra, Tupã Mirim:

“Eu não vim para a cidade, eu nasci numa aldeia dentro da cidade de São Paulo, na Tenondé Porã, em Parelheiros. Só que, naquele tempo, a gente não tinha muito conhecimento sobre a cidade. Meu avô era cacique da aldeia Krukutu, ali do lado. Mas naquela época eu não tinha nenhuma relação com a cidade, a gente nem tinha facilidade para sair dali. A locomoção era muito difícil, não tinha transporte, carro, ônibus, como tem hoje. A gente não tinha noção do que era a cidade. A gente vivia na floresta, na natureza, isolado. Era uma vida boa, com mais segurança. A gente aprendia a plantar com os velhos, a preparar a terra na época certa da lua. Esse conhecimento dos mais velhos mantém a nossa tradição até hoje.

“A escola, o que ela traz para a aldeia primeiro é a dominação: domina a memória, domina a perspectiva, domina a vida”

Eu só percebi a presença da cidade através da escola. Quando eu era criança, começava a se falar que a gente tinha que estudar, aprender uma outra língua, o português. A escola foi o meu primeiro contato com a cidade, até então todo o conhecimento, a ciência, a cosmovisão, a cosmologia era passada pelos velhos.

Saiba mais em: https://outraspalavras.net/descolonizacoes/vida-e-resistencia-indigena-nas-cidades-brasileiras/#:~:text=Relato%20de%20uma%20lideran%C3%A7a%20guarani,colonialismo%20de%20igrejas%20e%20escolas.

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