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A política da cor: o racismo e o colorismo

Por Boaventura de Sousa Santos   Créditos da foto: (Shutterstock)

A pele é o nosso maior invólucro protector natural. Por que é que a cor da pele tem um significado social infinitamente maior do que a cor da pupila dos olhos? Tanto na tradição cristã (incluindo o secularismo em que ela se prolongou) como na tradição budista, a escuridão e a claridade foram metáforas conceptuais que pretenderam dar conta do aperfeiçoamento da pessoa humana nas suas relações com poderes que a transcendem. Referem-se a movimentos do conhecimento e da vida interior. A trajectória da escuridão para a claridade está aberta a todos os seres humanos. E, aliás, a máxima claridade (por exemplo, na presença da divindade) pode converter-se na máxima escuridão, sendo disso exemplo o horror divino de George Bataille, ou no máximo silêncio do universo, no caso do José Saramago. Porém, com a moderna expansão colonial europeia, sobretudo a partir do século XVI, a escuridão e a claridade foram sendo progressivamente utilizadas para distinguir entre seres humanos, para os classificar e hierarquizar. Foi então que a escuridão e a claridade foram mobilizadas como factores identitários, para definir as cores da pele dos humanos, transferindo para essa definição significados antigos. Se antes tais significados partiam da ideia da condição comum dos humanos, a partir de então a cor da pele vai constituir um dos vectores fundamentais da linha abissal que distingue entre humanos e sub-humanos, a distinção que subjaz ao racismo. Uma vez aplicada à pele humana como factor determinante, a cor passou a designar características “naturais” que definem à partida trânsitos sociais permitidos e proibidos. O “natural” passou a ser uma construção social concebida como factor extra-social da legitimidade da hierarquia social definida a partir das metrópoles coloniais. O “escuro” passou a ser “cor”, símbolo do negativo, e o “branco”, “a ausência de cor”, símbolo do positivo. Assim surgiu o racismo moderno, um dos principais e mais destrutivos preconceitos da modernidade eurocêntrica. Como bem analisa Francisco Bethencourt, o racismo, não sendo um exclusivo ocidental, assumiu com a expansão colonial europeia um papel central na classificação hierárquica das populações (Racismos: das cruzadas ao século XX. 2015). Apesar de ter passado por muitas mutações, o preconceito racial tem mantido uma notável estabilidade. Por um lado, a imensa diversidade de traços fisiológicos e de tonalidades de cor de pele não impedem que o preconceito se adapte e reconstitua incessantemente segundo os contextos, ora parecendo um resíduo do passado, ora reemergindo com renovada virulência. Por outro lado, o seu carácter insidioso decorre da sua “disponibilidade” para ser interiorizado por aqueles e aquelas que são vítimas dele, caso em que uns e outras passam a avaliar a sua existência e o seu papel na sociedade em função do cânone da hierarquia racial. Finalmente, a lógica racial da cor insinua-se tão profundamente na cultura e na língua que está presente em contextos tão naturalizados que parecem nada ter a ver com o preconceito. Por exemplo, no espaço de língua portuguesa (pelo menos no Brasil e em Portugal) as crianças aprendem que o lápis de cor bege é o lápis cor-de-pele.

A primazia dada à visão na análise eurocêntrica do mundo faz com que a cor da pele seja uma das variações mais visíveis entre os humanos. Está relacionada com as respostas à radiação de raios ultravioletas. A pele mais escura, com mais melanina, protege as populações originárias de regiões próximas do equador. É, pois, na sua origem uma resposta físico-biológica ao meio ambiente. Como é que, apesar de a origem da humanidade ter ocorrido em regiões com maior radiação ultravioleta, a cor da pele acabou por se converter em marcador de deshumanização? Foi um processo histórico longo que, em alguns contextos, foi evoluindo para converter a pele clara e a pele escura em conotação de rígida hierarquia social, o que designamos por racismo e por colorismo. A percepção da cor deixou de ser uma característica física da pele para se tornar um marcador de poder e uma construção cultural. O século XIX e as primeiras décadas do século XX foram o tempo do apogeu da explicação científica das diferenças raciais das quais resultava logicamente a hierarquia social e a recomendação da não-miscigenação, da eugenia, do apartheid e da eliminação do que se considerava ser raças inferiores (por exemplo, Nancy Stepan, The Idea of Race in Science: Great Britain 1800-1960. 1982). O conceito de “under man” (sub-homem) tornou-se popular com o livro do norte-americano Lothrop Stoddard, The Revolt against Civilization: the Menace of the Underman, publicado em 1922, que viria a ser a cartilha dos nazis. Depois da Segunda Guerra Mundial e ante a catástrofe genocida do nazismo e do fascismo, o paradigma da ciência racista foi sendo desmontado. Hoje, os estudos genéticos mostram que como as classificações raciais não se traduzem em diferenças genéticas importantes, não faz sentido falar de raça enquanto categoria biológica. Aliás, a variação genética entre grupos raciais é pequena quando comparada com as diferenças genéticas no interior do mesmo grupo. Ou seja, a ideologia racista sobrevive ao desmonte das “bases científicas” do racismo.

Apesar do descrédito da base científica do racismo, o racismo como ideologia permanece e tem-se mesmo acentuado nos tempos mais recentes. Traços morfológicos do rosto, do cabelo, ou da cor da pele continuam a ser usados como marcadores da discriminação racial, e em muitos países determinam as variações na discriminação que têm por alvo vários grupos sociais racializados, sejam eles negros, asiáticos, indígenas, ciganos ou latinos, para não falar, dependendo do tempo e do contexto, em judeus, irlandeses, portugueses, espanhóis, italianos, eslavos. A cor da pele, em especial, tem assumido um significado particularmente insidioso ao determinar diferenças sistemáticas de tratamento dentro de grupos que partilham a mesma “identidade racializada” ou “comunidade de cor”. Nas Américas, este fenómeno levou à formulação do conceito de colorismo para designar esse tratamento diferencial. Não há colorismo sem racismo nem colonialismo. O colorismo potencia a complexidade e a gravidade das narrativas e das práticas racistas e reitera a violência epistémica e ontológica do projecto colonial, uma violência ainda mais cruel quando ocorre no interior dos grupos racializados. O código colorista estabelece que quanto mais “branca” é a cor da pele, maior é a probabilidade de alguém ser candidato aos privilégios da branquitude, mas, tal como acontece com a identidade racial, a definição da cor da pele é uma construção social, cultural, económica e política. Os estudos sociais da cor de pele mostram que a identificação e a classificação da cor de pele variam de sociedade para sociedade e mesmo dentro da mesma sociedade. Vem a propósito recordar que Bethencourt decidiu estudar a história do racismo para poder responder a esta pergunta: como é possível que a mesma pessoa seja considerada negra nos Estados Unidos, de cor no Caribe ou na África do Sul e branca no Brasil? Eu acrescentaria duas outras perguntas. Por que é que a classificação varia dentro do mesmo país? No caso da sociedade brasileira, quem é considerado branco na Bahia pode ser considerado negro em São Paulo. E poderá a classificação variar no tempo?

Quando se fala criticamente de racismo é grande a tendência para salientar os danos, a violência e a destruição que ele causa nas populações racializadas. Mas, desta forma, a cor dos que causam o racismo torna-se invisível. A pele de quem exerce a atitude racista não tem cor, sobretudo em contextos em que a ‘cor branca’ está associada à manutenção de privilégios herdados do esclavagismo e do colonialismo. O mesmo se poderia dizer da pele dos árabes sauditas em relação aos paquistaneses, filipinos ou bangladechianos ou dos chineses em relação a africanos. Tornam-se assim invisíveis quer a cor da pele quer os privilégios que ela justifica. Porque é que a análise crítica do racismo incide sobretudo nas discriminações sofridas por corpos racializados e negligencia os privilégios dos corpos não racializados? Afinal, quando se fala de “supremacia branca” não se fala da qualidade da cor, mas do poder e dos privilégios que ela invoca. Muito para além dos contextos da supremacia branca (a branquitude), o uso racista da cor e da ausência de cor está sempre ligado à instrumentalização do poder e dos privilégios. Referi acima o racismo dos chineses na China contra os negros africanos. A verdade é que o tribunal superior da África do Sul considerou em 2008 que, para efeito de acesso às acções afirmativas em vigor para promover o “empoderamento económico dos negros”, os chineses nascidos na África do Sul eram considerados…negros.

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