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Uma revolução molecular assombra a América Latina

A região está diante de insurreições que colocam em questão todos os níveis das estruturas de reprodução da vida social. Tal dinâmica chegará ao Brasil, mas em um cenário muito mais dramático

Por Vladimir Safatle

O termo veio pelas mãos de Álvaro Uribe, ex-presidente da Colômbia e líder efetivo da direita linha dura que hoje Governa o país. Diante das inéditas manifestações que tomaram as ruas da Colômbia, fazendo o Governo abandonar um projeto de reforma tributária que mais uma vez passava para os mais pobres os custos da pandemia, não lhe ocorreu ideia melhor do que conclamar os seus à luta contra uma “revolução molecular dissipada” que estava a tomar conta do país. No que, há de se reconhecer, Uribe tinha razão. Normalmente, são os políticos de direita que entendem primeiro o que se passa.

A América Latina, ou ao menos uma parte substantiva do continente, está a passar por um conjunto de levante populares cuja força vem de articulações inéditas entre recusa radical da ordem econômica neoliberal, sublevações que tensionam, ao mesmo tempo, todos os níveis de violência que compõem nosso tecido social e modelos de organização insurrecional de larga extensão. As imagens de lutas contra a reforma tributária que tem à frente sujeitos trans em afirmação de sua dignidade social ou desempregados a fazer barricadas juntamente com feministas explicam bem o que “revolução molecular” significa nesse contexto. Ela significa que estamos diante de insurreições não centralizadas em um linha de comando e que criam situações que podem reverberar, em um só movimento, tanto a luta contra disciplinas naturalizadas na colonização dos corpos e na definição de seus pretensos lugares quanto contra macroestruturas de espoliação do trabalho. São sublevações que operam transversalmente, colocando em questão, de forma não hierárquica, todos os níveis das estruturas de reprodução da vida social.

De fato, o século XXI começou assim. Engana-se quem acredita que o século XXI começou em 11 de setembro de 2001, com o atentado contra o World Trade Center. Essa é a maneira como alguns gostariam de contá-lo. Pois seria a forma de colocar o século sob o signo do medo, da “ameaça terrorista” que nunca passa, que se torna uma forma normal de governo. Colocar nosso século sob o signo paranoico da fronteira ameaçada, da identidade invadida. Como se nossa demanda política fundamental fosse, em uma retração de horizontes, segurança e proteção policial.

Na verdade, o século XXI começou em uma pequena cidade da Tunísia chamada Sidi Bouzid, no dia 17 de dezembro de 2010. Ou seja, começou longe dos holofotes, longe dos centros do capitalismo global. Ele começou na periferia. Nesse dia, um vendedor ambulante, Mohamed Bouazizi decidiu ir reclamar com o governador regional e exigir a devolução de seu carrinho de venda de frutas, que fora confiscado pela polícia. Vítima constante de extorsões policiais, Bouazizi foi à sede do Governo com uma cópia da lei em punho. No que ele foi recebido por uma policial que rasgou a cópia na sua frente e lhe deu um tapa na cara. Bouazizi então tacou fogo em seu próprio corpo. Depois disso, a Tunísia entrou em convulsão, o Governo de Ben Ali caiu, levando insurreições em quase todos os país árabes. Começava assim o século XXI: com um corpo imolado por não aceitar submeter-se ao poder. Começava assim a Primavera Árabe. Com um ato que dizia: melhor a morte do que a sujeição, com uma conjunção toda particular entre uma ação restrita (reclamar por ter seu carrinho de venda de frutas apreendido) e uma reação agonística (imolar-se) que reverbera por todos os poros do tecido social.

Saiba mais em: https://brasil.elpais.com/opiniao/2021-05-19/uma-revolucao-molecular-dissipada.html

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