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Ainda temos esquerda, cidadãos!

Por Manuel Cabieses Donoso / Créditos da foto: (Reprodução/Twitter)

Senhores e senhoras da direita, não cantem vitória antes do tempo, pois é prematuro. A dispersão do povo é transitória, e ele logo recuperará a sua bússola política. A confusão em seu meio e a desorientação ideológica são realidades dolorosas, embora o amanhecer esteja próximo. Ao final, a vontade e o destino histórico dos plebeus prevalecerão para se que se inicie uma época igualitária de deveres e direitos. Um tempo em que meninos e meninas terão as mesmas oportunidades para se realizarem na vida.

É sabido que vossas senhorias conseguiram ludibriar consideráveis setores do povo, subordinando-os à cultura excludente da oligarquia. Por intermédio de serviços pagos pela casta política, somados ao poder sedutor do mercado e o trabalho de corrosão das consciências da mídia escrita e audiovisual, abriram-se os desvios que confundem e debilitam as forças sociais de mudança. Como a autointitulada “centro-esquerda”, por exemplo, que de centro tem pouco e de esquerda tem quase nada.

Não é preciso ser um Sherlock Holmes para descobrir quem vem ganhando terreno na disputa política. Basta verificar a edição do ‘El Mercurio’ de 18 de julho, um dia depois das primárias presidenciais, para saber que Sichel e Boric são duas caras da mesma moeda. O trompetista da oligarquia celebra em seu o editorial ”a meritória campanha de Boric” e elogia o espírito dialógico do candidato da Frente Ampla.

Em seguida, adverte: “Boric não deve se esquecer que seu triunfo se deve de forma relevante à rejeição dos eleitores diante de propostas extremas como as do PC”. O presidente da poderosa Confederação de Produção e Comércio, Juan Sutil, afirma: “havia na esquerda uma diferença muito importante entre a esquerda democrática, que representa a Frente Ampla, e a esquerda não democrática, como o Partido Comunista”.

O mesmo é apontado por líderes da Sociedade Nacional de Mineração, Sociedade Nacional de Agricultura, Associação de Bancos, Conselho do Salmão, Fedefruta, etc. Os aplausos da Bolsa de Valores não foram interrompidos por uma eloquente demonstração de confiança do capital financeiro no resultado das próximas eleições. As suas imensas fortunas não correm risco, independentemente de quem ganhar as eleições presidenciais e parlamentares.

O triunfalismo da oligarquia fala por si só. Elementar, meu caro Watson!

A oligarquia – os ricaços e as corporações que governam o país – tem atuado com astúcia.

A economia (a do modelo neoliberal, claro) está se recuperando. No ano passado caiu 6%, mas em 2021 aumentará pouco mais que 8%. O consumo está subindo como um foguete, graças ao combustível dos fundos de pensão e dos títulos públicos. Ou seja, das economias e dos impostos pagos pelos trabalhadores.

Os chamarizes do modelo são automóveis, celulares e televisores ao alcance de milhões. A venda de carros novos e usados cresce de forma vertiginosa. São mais de 20 milhões de carros no país (mais de 2,5 milhões só em Santiago). Mais de 20 milhões de celulares e 2,7 televisores por família (números do Instituto Nacional de Estatísticas). Em 11 de setembro de 1980, disse Pinochet: “Um em cada sete chilenos terá um automóvel; um em cada cinco terá um televisor; e um em cada sete terá um telefone”. Os partidos de centro-esquerda cumpriram a promessa de Pinochet, e ainda a levaram ao paroxismo.

O consumismo é um verme que corrompe consciências e valores éticos. A lei do mais forte passou a vigorar no cotidiano da população e se transformou em regra de ouro da corrupção e desperdício de recursos públicos.

No jargão da loucura consumista desta Pompeia da América do Sul, as economias dos trabalhadores se converteram em sal e água. A oligarquia e as suas garras – o governo e o parlamento – prometem seguir estimulando esta agitação do mercado. Mais de 90 bilhões de dólares foram injetados na veia do consumo. Especialmente ao que o grande economista e jornalista Aníbal Pinto Cruz chamou de ”consumo conspícuo”[1].

Sua publicidade – carros, relógios, uísque, etc. – estampam as páginas dos jornais e ocupa a tela dos televisores. A Renda Familiar de Emergência e os fundos de pensão se tornaram um colossal suborno eleitoral, enquanto as entranhas da pobreza suplicam por comida.

Senhoras e senhores da direita: o Chile carrega em seu ventre o seu próprio Vesúvio. Este vulcão entrou em erupção em outubro de 2019 e segue dando sinais de atividade. E isso está explícito na resistência inabalável do povo Mapuche, na luta nas ruas pela liberdade dos presos políticos, nas demandas das mais de 86 mil famílias que vivem em 969 acampamentos de madeira e papelão[2], e – acima de tudo – na esperança do povo codificada na Convenção Constitucional. Nessas células ativas do movimento popular estão as fortalezas sociais e culturais que permitirão a recriação da esquerda. Uma esquerda socialista como no passado, mas sem a extrema carga estatal e a burocracia ineficiente.

O Chile não é apenas um longo e estreito mercado de bijuterias. É também, acima de tudo, a dolorosa experiência de um país saqueado e de um povo metralhado todas as vezes em que exigiu os seus direitos. A frustração histórica iniciada em 11 de setembro de 1973 exige uma Constituição e leis que abram o caminho para a justiça. Sob a casca do reluzente neoliberalismo está o verdadeiro Chile dos 600 mil que passam fome e dos mais de três milhões que sofrem de insegurança alimentar (como afirma a FAO).

É possível que a oligarquia manipule as eleições presidenciais e parlamentares deste ano. O mural da abstenção, por maior que seja, não poderá impedi-las, e a sua denúncia é surda e muda. O esforço de construção do povo estará focado na Convenção Constituinte, e não nas eleições, e a sua obra – a Carta Magna –, aprovada em plebiscito, vai demarcar o terreno onde se definirá o histórico confronto povo-oligarquia. Do campo da batalha ideológica e social que se aproxima se erguerá a esquerda chilena desta era. A direita está ciente, e por isso empreendeu uma campanha de desprestígio da Constituinte. Ela tenta executá-la através de sua balbúrdia noticiosa cotidiana e, sobretudo, com a manobra de submeter a maioria a um processo de negociação e concessões para atingir o quórum de 2/3.

Diante dessas manobras, a esquerda conseguirá reconstruir suas forças e munir-se de novas formas de organização e luta vitoriosa.

20 de agosto de 2021.

Veja em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Pelo-Mundo/%A1Aun-tenemos-izquierda-ciudadanos-/6/51399

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