Clipping

Varoufakis imagina uma utopia dos trabalhadores

Em Outra Realidade, ex-ministro grego imagina mundo paralelo após a crise de 2008. Rebeliões sepultaram o capitalismo – uma democracia real emergiu, sem bancos ou propriedades privadas. Obra convida a pensar: “tudo pode ser diferente”

Yanis Vaoufakis, em entrevista ao El Diario, com tradução na Carta Maior

“Outra Realidade”, o último livro de Varoufakis (Falero, Grécia, 1961) está disfarçado de ensaio. A imagem do ex-ministro das Finanças grego na capa pode fazer pensar no “O Minotauro Global”, análise da crise econômica publicada em 2011, ou “Comportar-se como Adultos”, crônica de sua experiência nas tripas da União Europeia publicada em 2017 e levada ao cinema por Costa-Gavras. Mas isso é ficção. Concretamente, ficção especulativa, ficção científica. Na obra, o também cofundador do movimento pan-europeu DiEM 25 narra a vida de um grupo de amigos que descobre uma espécie de sistema potencializador de multiversos. Em um desses mundos paralelos, uma constatação: o capitalismo já não existe mais.

Varoufakis utiliza os avatares e discussões do grupo para expor uma proposta utópica, essa outra realidade, colocando interesse especial no mercado financeiro, na organização de corporações privadas e na renda universal. Nesse universo, as empresas são completamente horizontais e a propriedade é dos empregados, não existem bancos, nem a bolsa e todas as pessoas têm ao nascer o mesmo patrimônio. Os amigos contemplam esse outro mundo com incredulidade: será possível algo assim? O autor defende que o primeiro passo para que esse mundo seja possível é imaginar. Ainda que sobre o presente, particularmente sobre o papel da União Europeia ou sobre as ferramentas e a atitude da esquerda, o autor seja menos otimista. Uma última observação: a revolução cidadã que tornou possível a troca dessa outra realidade não está no futuro, já aconteceu, nos devastadores anos que seguiram a crise de 2008. Nessa realidade, sabemos, não foi assim. A questão é se poderia acontecer.

Seu livro é de ficção científica e imagina o fim do capitalismo em um universo paralelo. Por que a ficção científica é útil para explicar sua agenda política? Por que não somos capazes de imaginar o fim do capitalismo a não ser em um universo paralelo?

Um famoso filósofo disse há anos: “Algo estranho está acontecendo. É mais fácil para nós imaginarmos o fim do mundo do que o fim do capitalismo”. Eu uso a ficção científica política para responder à pergunta: bem, se alguns de nós na esquerda não gostam do capitalismo, qual é a alternativa? A razão para usar um romance é porque, na hora de descrever o capitalismo, eu posso fazê-lo com um estudo, o que eu fiz em vários livros sobre o meu diagnóstico do presente no qual nos encontramos. Mas quando se trata de escrever sobre o futuro, sobre uma utopia, uma sociedade ideal, o que eu creio que deveríamos ter no lugar do que temos, começo a não estar de acordo comigo mesmo. Creio que muitas pessoas sensatas estariam cheias de dúvidas sobre um mundo alternativo, sobre o que queremos construir. A melhor maneira de negociar esses desacordos era ter personagens – cada um deles representa aspectos distintos do meu próprio pensamento -, confrontar-los com essa estrutura socioeconômica alternativa e fazer com que conversem entre si. Se colocamos tudo isso junto, temos um romance de ficção científica política.

O que essa crise nos ensinou sobre o sistema político e econômico em que vivemos? Por exemplo, com a recusa de liberar a patente das vacinas contra a covid-19, inclusive após o recebimento de financiamento público.

Esse livro é sobre algo além do capitalismo, mas já estamos em algo além do capitalismo. Desde 2008 eu escrevi e falei sobre a ideia de que o capitalismo se transformou em algo distinto. O capitalismo que eu conhecia antes de 2008 eu já não reconheço. Já não existem mercados competitivos, não há separação entre Estado e setor privado, existem corporações enormes movidas pela tecnologia criando espaços onde não há mercado, onde não há Estado. Se vemos a Amazon, o Facebook, entramos em um ecossistema digital: é um mercado, é claro, mas um mercado no qual cada loja é propriedade de um só homem. As ruas digitais pelas quais caminhamos são propriedade de um só homem, o que vemos, o que escutamos, todas as sugestões que recebemos das diferentes lojas dessa plataforma digital são controladas por um só homem. Isso é o feudalismo, não o capitalismo. Por isso eu chamo de tecnofeudalismo. O que estávamos vivendo antes de sermos golpeados pela covid-19 era algo próximo ao tecnofeudalismo. A covid simplesmente o piorou: podemos ver em toda a indústria das vacinas, o fiasco das vacinas da União Europeia, nossas provas, problemas e fracassos como seres humanos em utilizar a fantástica tecnologia e ciência que temos e pressionar para colocá-las a serviço da maioria.

Mas, após a covid, estamos mais conscientes dos perigos e falhas desse sistema?

Creio que sim. A covid-19 foi uma experiência horrível para muitos, pessoas perderam suas vidas, pessoas ficaram doentes, pessoas que ficaram sem emprego…Mas, como todas as crises, fez soar alarmes em nossas cabeças, nos ensinou lições que simplesmente tínhamos esquecido. Por exemplo, inclusive na esquerda subestimamos o papel do Estado. Na era da globalização, dizíamos, o Estado encolheu, não é mais tão importante como era, temos um comércio global, uma cadeia de suprimentos global, o que podemos fazer? E, de repente, nos damos conta de que o governo tem um enorme poder, e de que pode fazer muito, inclusive nessa era da globalização. A covid-19 nos despertou, até certo ponto.

E você, acredita que mudou no ano passado, a nível pessoal ou ideológico?

Sempre mudamos, mas no meu caso, que já não sou jovem, a mudança tem sido mais gradual, uma evolução lenta. Me pergunto como será para alguém de 18 ou 16 anos essa grande interrupção do processo de socialização. Não, não creio que mudei muito, exceto pelo fato de que tive mais tempo para pensar sobre o capitalismo, a União Europeia, e nossos problemas coletivos. Tem sido um processo de evolução importante, mas lento.

Falando de mudanças: podemos ver como a resposta dos governos inclusive do FMI ou da União Europeia tem sido diferente agora do que foi em 2008. Acredita que, tendo isso em vista, estamos mais próximos ou mais distantes do futuro melhor que você imagina?

Me permitiria refutar a premissa da pergunta? Não creio que a reação tem sido tão diferente. O que eu acredito que foi absolutamente diferente tem sido a propaganda, a comunicação das políticas. A União Europeia foi um completo desastre em 2012, 2010 ou 2008 em relação à propaganda de suas próprias políticas. No seu país, no meu país, foram lamentáveis, davam coletivas de imprensa e, em cinco minutos, todo mundo estava rindo deles. Agora são muito bons, até o ponto de que muita gente acha que a UE respondeu de forma diferente em relação à 2010: toda essa conversa sobre os fundos de recuperação da União Europeia, sobre o fato de estarem proporcionando todo esse dinheiro… Mas, na realidade, a resposta macroeconômica da UE é um crime contra a lógica, é tão ruim como em 2010, esse fundo de recuperação é irrelevante, é macroeconomicamente irrelevante. A UE está sofrendo uma derrota atrás da outra, podemos ver com os EUA: com o dobro do impacto na nossa economia do que na economia dos EUA, temos um terço do estímulo estadunidense. E ainda assim são muito bem-sucedidos na hora de comunicar sua reação como se fosse um êxito.

Saiba mais em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/varoufakis-imagina-uma-utopia-dos-trabalhadores/

Comente aqui