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A emergência da Agricultura Urbana

Ela propõe reinventar as cidades: hortas, praças e saberes coletivos em vez de especulação. No lugar dos desertos de concreto, a natureza, os afetos e a comida de verdade. No Dicionário de Agroecologia, sua potência desperdiçada pelo Brasil

Por Juliana T. Luiz, Uschi C. Silva e André R. Biazoti

Este texto é o verbete Agricultura Urbana do Dicionário de Agroecologia e Educação, recém-lançado pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), com apoio da Presidência da Fiocruz e as lideranças do Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST), e em parceria com a editora Expressão Popular. Ao todo, são 106 verbetes, elaborados por 169 autores de 68 instituições distintas – universidades públicas, institutos federais de educação, movimentos sociais, institutos de pesquisa etc. O livro pode ser adquirido aqui na loja da editora (quem colabora com o jornalismo de Outras Palavras tem 25% de desconto) e, também, baixado gratuitamente.

 

O termo Agricultura Urbana (AU) não se refere apenas à produção agrícola em espaços urbanos. São relações sociais, políticas, culturais, econômicas e ecológicas estabelecidas nos territórios urbanos e metropolitanos, que envolvem agriculturas. É uma agricultura que existe em múltiplas escalas, como hortas e quintais, pomares, agroflorestas, assentamentos metropolitanos, quilombos, comunidades indígenas e em territórios pesqueiros como atividades produtivas e de subsistência alimentar, as quais, em sua maioria, associadas aos espaços de moradia. A AU é reivindicada, em uma diversidade de contextos, enquanto possibilidade de construção do direito à cidade e à alimentação saudável e adequada. A terra urbana é seu chão principal, e uma diversidade de sujeitos dão múltiplos sentidos à prática de AU. É por meio de uma visão sistêmica e polivalente que se propõe uma leitura sobre o que é AU.

São partilhadas questões centrais que a colocam num terreno de disputas históricas. Também são apresentados alguns marcos legais e normativos, reconhecidos como atores políticos na história recente da AU enquanto possibilidade de política pública e social a partir do contexto brasileiro.

Nesse entremeio, são valorizadas contribuições do Coletivo Nacional de Agricultura Urbana (CNAU), um movimento composto por uma diversidade de atores que advoga a AU como possibilidade de uma via de transformação social mais ampla e em diálogo com os princípios da agroecologia, e que tem acompanhado um processo de tentativa de construção de uma política nacional de agricultura urbana, desencadeado nos marcos do contexto de participação sociopolítica em torno da segurança alimentar e nutricional no Brasil.

Agricultura urbana: um conceito em construção

O desenvolvimento da agricultura está diretamente relacionado à urbanização e à vida na cidade. A relação indissociável entre produção de alimentos e formas de constituir cidade, onde estas são capazes de se alimentar por meio do que produzem, é verificada em documentos e estudos sobre antigas civilizações como os incas, maias e astecas. Como o caso de “Las Chinampas”, hoje localizadas ao sul da Cidade do México, uma tipologia ancestral de agricultura que conjugava formas de ocupar terras junto aos lagos com estruturas urbanas. Também estudos realizados em Gana, Paquistão, Índia, Iraque e China demonstram que as cidades produziam seus alimentos e possuíam sistemas complexos de irrigação, manejo do solo e tratamento dos resíduos orgânicos (Van der Ryn, 1995; Smit; Nasr; Ratta, 1996).

Durante o século XX, as experiências de AU ganharam destaque em diferentes contextos históricos e geográficos, principalmente após a Segunda Guerra Mundial. Estas experiências expressam uma multiplicidade de práticas, escalas, espaços, sujeitos e vocabulários intimamente ligados aos seus contextos. Isto quer dizer que as práticas de AU são reveladas por um conjunto de situações às quais se entrelaçam diversos aspectos sociais, políticos, econômicos e culturais, e também condições de poderes desiguais nos territórios, das dinâmicas de cada lugar e cidade.

Para Almeida (2015), o conceito de AU é um campo aberto e em disputa. A autora argumenta que

a agricultura urbana deve trazer à tona a reflexão sobre as relações históricas entre a agricultura e a cidade, bem como sobre as conexões entre questões relevantes no mundo atual, com as relações entre o rural e o urbano, entre a sociedade e a natureza. (Almeida, 2015, p. 53)

 

Nessa perspectiva, principalmente nos últimos 30 anos, a agricultura urbana tem estado refletida em uma multiplicidade de questões, muitas vezes indissociáveis, a depender do contexto onde ocorre: segurança e soberania alimentar; questões do mundo trabalho; resiliências e acesso a recursos naturais na cidade como terra e água; condições habitacionais; biodiversidade, planejamento urbano, educação ambiental, saúde coletiva, saúde mental, circuitos próximos de comercialização, sistemas agroalimentares metropolitanos, agroecologia, dentre outros.

Considerando essa perspectiva, a construção conceitual de AU se apresenta de forma dinâmica e, também está localizada em pautas de luta pelo direito à cidade democrática, em contraposição ao modelo hegemônico de urbanização, apropriação e produção do espaço urbano.

A prática da AU pode, então, representar ações concretas que interferem na lógica mercantil dos espaços da cidade e revelar virtualidades do espaço urbano, contrapondo-se às dinâmicas capitalistas e ao planejamento urbano quando construído de cima para baixo.

No campo da agroecologia – enquanto ciência, movimento e prática social – é recente, do ponto de vista histórico, a integração das pautas da AU, embora muitas experiências existentes em diferentes contextos revelem que a agroecologia também é um paradigma estruturante de práticas que convergem com lutas históricas de movimentos por reforma urbana.

São exemplos, no contexto brasileiro, experiências registradas principalmente nos últimos anos no âmbito de movimentos como Brigadas Populares e assentamentos de movimentos como MST e Sem Teto em contextos urbanos.

Do ponto de vista dos sujeitos, a AU também compreende uma diversidade de grupos sociais: mulheres, comunidades pesqueiras, agricultores familiares, grupos indígenas, comunidades quilombolas, ribeirinhas, dentre outras comunidades tradicionais em contextos urbanos, jovens permacultores, dentre outros grupos que dão vida a diferentes formas e expressões das agriculturas urbanas; a roça, a horta, o quintal, o sítio. São praticadas individualmente, no âmbito familiar, coletivamente (por meio de bases comunitárias ou associativas) e por movimentos sociais. São iniciativas que revelam práticas tradicionais de cultivar alimentos, plantas medicinais, plantas ornamentais e criação animal para consumo imediato da família e da vizinhança próxima. Mas também alcançam, ao exemplo de escalas da agricultura familiar, mercados locais próprios (feiras, distribuição de cestas com produtos frescos) e estruturas mais complexas, ao exemplo de processos que incluem as relações produtor-consumidor, além de mercados institucionais.

No âmbito espacial, pratica-se AU em residências – casas e apartamentos, quintais, lajes, terraços, telhados, chácaras, sítios, terrenos baldios, laterais de estradas, ruas, praças, jardins e áreas públicas não ocupadas por edificações.

Também é comum em ambientes institucionalizados, tais como escolas, creches, asilos, penitenciárias, centros de saúde, universidades, associações, entre outras instituições públicas ou privadas. A composição de espaços ocupados por AU pode contribuir inclusive para a recuperação de corredores verdes ecológicos e estar integrada em sistemas florestais urbanos, dentre outras tipologias espaciais caracterizadas como áreas verdes. As ocupações de terras e imóveis cuja função social não é cumprida também constituem espaços de AU. Considerando esse contexto, compreende-se a agricultura praticada em diferentes espaços urbanos com a possibilidade de múltiplos alcances, em simultâneo, não unicamente com o objetivo de suprir a demanda alimentar das cidades, embora destaque a contribuição inequívoca da AU para a segurança alimentar e nutricional e para o resgate das culturas e saberes das comunidades. Compreende-se a AU num processo de defesa mais amplo, de um outro projeto de sociedade, pautado em valores democráticos, de justiça social, ambiental, econômica e cultural.

Por essa via, as práticas de agricultura na cidade são orientadas por bases agroecológica e popular. Essa concepção nos convida a uma abordagem dialética dos fatos que emergem do espaço urbano, considerando inclusive experiências que sempre existiram e resistiram utilizando os recursos naturais disponíveis nos contextos do urbano e reconhecendo politicamente a contribuição ecossistêmica e social de diferentes sujeitos sociais invisibilizados e marginalizados por um sistema desigual de sociedade.

Espaço urbano e direito à cidade

No Brasil e em muitos contextos do Sul Global, a urbanização se deu de maneira diferenciada em relação aos países do Norte, como aponta Singer (1985). Segundo o autor, a problemática urbana que se estabelece no Sul está relacionada à falta de moradia adequada, ineficiência nos serviços urbanos como abastecimento de água encanada e esgoto, falha nos sistemas de saúde e educação, entre outros.

A cidade adquire um conceito reducionista de centro produtor, composta por políticas, governos, fábricas e mercados.

Em contraposição, o campo foi determinado como lugar de produção de alimentos e lugar da natureza. A cidade é apartada dessas funções. Há uma mudança paradigmática e uma quebra dos vínculos comunitários, o rompimento das relações e da organização de terras comunais e das tradições e instituições locais voltadas às estruturas comunitárias agrícolas. Se dá então a defesa da propriedade privada e o mercado livre guiado pela oferta e pela demanda.

O processo industrial brasileiro iniciado na primeira metade do século XX atraiu para as cidades do eixo Rio de Janeiro–São Paulo grande massa de trabalhadores.

Uma visão crítica da urbanização brasileira tem origem na percepção de que o movimento migratório de trabalhadores rurais originou um processo de transformação socioespacial. Camponeses desenraizados do meio rural tornaram-se marginais no espaço urbano para serem transformados em exército industrial de reserva (Singer, 1985).

A complexidade da produção do espaço urbano e o crescimento das cidades relaciona-se não somente à industrialização, mas ao crescimento do setor de serviços que se estruturou como um modo de acumulação tipicamente urbano. É no espaço urbano onde uma nova exploração desses trabalhadores se configura, na medida em que o trabalho informal se amplia, o custo de reprodução da mão de obra diminui e os trabalhadores buscam sua reprodução e sobrevivência às próprias custas. Esses trabalhadores também desempenham o papel de consumidores necessários à implantação da indústria e do vasto setor de serviços que se estrutura à sua margem (Oliveira, 2013).

O aumento da demanda urbana por produtos, incluindo os alimentos, deu ao Capital a oportunidade de penetrar no campo brasileiro por meio da produção agrícola em maior escala. Em contrapartida, permitiu a maior especialização dos espaços, com funções econômicas bastante demarcadas. Esses processos históricos circunscritos no espaço urbano aprofundaram a dicotomia campo-cidade/rural-urbano, fragmentando as relações entre sociedade e natureza na medida em que atestava uma visão fraturada da vida e dos espaços (Kois; Morán, 2015).

No entanto, a produção do espaço urbano não resulta apenas da intervenção dos proprietários dos meios de produção, proprietários fundiários, promotores imobiliários e do Estado. Os sujeitos marginalizados também produzem espaço na cidade (Corrêa, 2016). Os movimentos de luta por moradia, assentamentos em regiões metropolitanas, favelas, cortiços e ocupações no centro da cidade são exemplos concretos das lutas cotidianas e da produção do espaço.

Nestes locais, a prática da AU redesenha o espaço e a paisagem urbana. Em lugar de terrenos ociosos, hortas comunitárias, praças e áreas de lazer. Em tornos desses processos coletivos emergem os debates sobre: direito à alimentação saudável e adequada; qual cidade se quer e como construir o direito à cidade; violência urbana nas periferias; mobilidade urbana e saneamento ambiental.

No campo simbólico, há a valorização dos saberes e das memórias ancestrais; das culinárias populares, das sementes crioulas; das plantas medicinais e das relações solidárias.

Essas experiências nas cidades são ilhas de re-existência que inscrevem no espaço urbano outros modos de vida contrários à imposição do sistema capitalista.

Se, por um lado, o modo capitalista de produção provocou o inchaço das cidades e o esvaziamento do campo, rompendo a relação metabólica [ver Ruptura do Metabolismo Socioecológico] existente entre seres humanos e a natureza (Foster, 2012), gerando desequilíbrios e excessos de desperdício no ambiente, por outro, as práticas dos sujeitos que realizam a AU nos apontam para a construção de espaços que valorizam a reprodução da vida em todas as suas manifestações, reconectando a sociedade urbana com a natureza.

Saiba mais em: https://outraspalavras.net/cidadesemtranse/a-emergencia-da-agricultura-urbana/

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