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A nova batalha de Marina Silva

Deputada relata sua reaproximação com Lula. A conversa de duas horas com o candidato. A valorização do que fizeram no passado, diante dos horrores atuais. Os projetos para o resgate da agenda ambiental, num possível novo governo

Por: Eliane Brum, Carla Jiménez e Verónica Goyzueta | Entrevista com: Marina Silva

Nenhum apoio a Luiz Inácio Lula da Silva nestas eleições é mais importante do que o de Marina Silva para quem luta pela Amazônia. Se Lula pode afirmar em debates que seu governo reduziu significativamente o desmatamento da maior floresta tropical do planeta é porque teve essa mulher negra e indígena, filha de seringueiros, nascida e criada na floresta amazônica, no estado do Acre, como ministra do Meio Ambiente de 2003 até 2008. Com a imposição total da agenda desenvolvimentista que ditaria o ritmo e as escolhas nos anos seguintes, Marina deixou o ministério e o Partido dos Trabalhadores (PT). Há bem menos para se orgulhar do que veio depois dela na área ambiental dos governos do PT. Se o Brasil brilhava nas Cúpulas do Clima mundo afora, dentro do país, em especial na Amazônia e no Cerrado, vários povos podem contar uma história bem diferente. Que depois de 14 anos Marina tenha superado as discordâncias políticas, de interpretação do Brasil e do momento histórico, para compor a frente ampla de Lula, é um acontecimento com grande significado para quem compreende o que está em jogo nesta eleição: mais do que o destino da democracia, o futuro da vida neste planeta.

Marina Silva chegou para a entrevista em seu escritório no bairro de Pinheiros, na capital paulista, em tons de árvore. Seu estilo é impecável, mas discreto, quase austero. Chegou já como deputada federal eleita por São Paulo, com 237.526 votos. A figura magra, a voz que parece ter algo doloroso raspando nas cordas vocais, o coque apertado, sugere fragilidade. A força de pensamento e de vida que fez de sua trajetória uma das mais extraordinárias da política brasileira só se revela quando a escutamos. Empregada doméstica depois que deixou a floresta para buscar tratamento de saúde na cidade, Marina só conseguiu se alfabetizar aos 16 anos. Partiu do conhecimento sofisticado dos povos indígenas e ribeirinhos do Acre para um diálogo muito particular com os grandes pensadores europeus. Fez também uma travessia pela psicanálise, campo de investigação do inconsciente que marca suas respostas nesta entrevista. No atual cenário brasileiro, Marina é possivelmente a intelectual política – ou a política intelectual – com o pensamento mais complexo no Brasil, independentemente do gênero. Mas, por ser mulher, preta e amazônida, paga um preço alto pela ousadia.

Em um país em transfiguração religiosa, Marina é também a principal política com ideário alinhado mais à esquerda que também professa a ascendente fé evangélica – e uma das poucas que não usa sua crença para manipulações eleitoreiras. Na adolescência queria ser freira, as comunidades eclesiais de base, ligadas ao campo de esquerda da Igreja Católica, tiveram forte influência na sua formação política. Depois, como aconteceu com muitos brasileiros, encontrou mais sentido espiritual na fé evangélica. No passado recente, parte significativa da esquerda não foi capaz ou teve dificuldades para entender a força do que Marina representava ou podia representar. Por um lado, sua fé evangélica foi uma das razões pela qual parte do campo progressista a rejeitou. Por outro, parte dos evangélicos neopentecostais do rebanho dos grandes pastores de mercado ainda a consideram “pouco evangélica” diante do histrionismo messiânico de figuras como Damares Alves.

No corpo corroído por malárias, leishmaniose e contaminação por mercúrio de Marina, ele mesmo violado como a floresta de onde veio, a mulher diante das jornalistas de SUMAÚMA é amálgama do que há de mais novo no Brasil: a hegemonia da natureza na recentralização geopolítica do mundo, o crescente protagonismo das mulheres negras no Brasil patriarcal e estruturalmente racista, o acelerado crescimento da fé evangélica num país onde até o século passado havia domínio quase absoluto do catolicismo. Ao fazer 1% dos votos na eleição presidencial de 2018, porém, Marina Silva foi dada como acabada.

Nada mais longe da realidade para quem vem da Amazônia e sabe que o fim do mundo é meio. É o que ela mostra nesta entrevista em que, por quase duas horas, não deixou de responder a nenhuma pergunta. E algumas delas foram bem duras. Marina se emocionou, chorou pelo menos uma vez, mas principalmente mostrou por que o ato político e de sobrevivência mais importante de nossas vidas, hoje, é votar em Lula – e convencer os indecisos a votar em Lula.

Como foi sua decisão de se reaproximar do ex-presidente Lula e do PT, depois de uma relação extremamente desrespeitosa com você nas campanhas presidenciais anteriores, quando você também foi candidata?

Foi uma reaproximação política e programática. Muitas pessoas se perguntavam como ficaria meu posicionamento em relação a estas eleições, e eu confesso que trabalhei muito desde o início… Num diálogo com Ciro Gomes, [e com partidos como] o Cidadania, Rede, PV, um esforço muito grande para tentar apresentar uma alternativa à polarização. Mas não prosperou. A gente critica muito os negacionistas, mas a gente também não pode incorrer em negacionismo. A realidade fala, e ela nos deu uma mensagem de que a transformação necessária para o rompimento da polarização ainda não foi possível. A gente não pode ser negacionista diante de uma situação em que Bolsonaro e o bolsonarismo caminham a passos largos para a destruição da nossa democracia, que pode ser em dois níveis. Pode ser uma ruptura democrática abrupta, com ele o tempo todo ameaçando, tentando colocar na cena política as Forças Armadas. Também pode ser uma corrosão endógena, mudando a configuração do Supremo [Tribunal Federal], aprofundando essa mudança para a qual já existe maioria no Congresso e com todo esse aparato de pessoas armadas, numa mistura de polícia com milícia e com sociedade. É uma ameaça muito forte. Deus o livre, ao povo brasileiro, ele ganhar essa eleição. Sempre dizia que estaria aberta ao diálogo, desde que em bases políticas e programáticas. E sempre refutando uma forma, que é muito machista, de abordar essa divergência política que existia, e que existe em muitos aspectos, entre mim, o PT, e o próprio presidente Lula.

Machista como?

Eu saí do PT e fui candidata 3 vezes à presidência, apresentando um programa. Eu ajudei a criar um partido político [Rede Sustentabilidade]. Não era uma abordagem simplista, ou até mesmo machista, de ser uma questão de mágoa, uma questão de rancor, como muitos querem colocar as mulheres nesse lugar. Se é um diálogo com o [Geraldo] Alckmin, é [visto como] “superando divergências políticas”. Se é um diálogo com outro interlocutor, [significa que está] passando por cima de limites, até mesmo programáticos, ideológicos, para poder construir algo maior. Quando se trata de uma mulher, de origem humilde, preta, ambientalista, aí ficava sempre essa abordagem de: “Ah, tem que superar essa mágoa, tem que superar esse rancor”. No tempo certo, da forma certa, esse encontro se viabilizou. A convite do próprio presidente Lula.

Como foi esse diálogo com Lula?

Uma conversa pessoal de 2 horas e uma ação política, apresentando um conjunto de propostas assumidas publicamente com a sociedade brasileira. A única coisa que eu posso dizer é que foi uma conversa tão boa que gerou uma conversa pública, assumindo compromissos públicos na agenda socioambiental. Não por acaso, coloquei o nome de “Resgate atualizado da agenda socioambiental perdida”. Existe uma agenda que vinha dando certo, que conseguiu reduzir o desmatamento em 83% [de 2004 a 2012, depois voltou a crescer], que foi responsável por 80% das áreas protegidas criadas no mundo de 2003 a 2008 — enquanto Bolsonaro já é responsável por um terço das florestas virgens destruídas no mundo. Essa foi a agenda que conseguiu que evitássemos lançar na atmosfera 5 bilhões de toneladas de gás carbônico, a maior contribuição já dada até hoje por um país no contexto das ações de combate às mudanças climáticas. Ninguém melhor do que o ex-presidente Lula para fazer esse resgate. Porque isso aconteceu no governo dele.

Qual é a estratégia para que isso realmente possa acontecer, já que neste segundo turno Lula fez aliança com muitos predadores da Amazônia e de outros biomas? Até que ponto foi discutido se você vai ter uma participação mais ativa no seu governo, como por exemplo no Ministério do Meio Ambiente?

Não surgiu absolutamente qualquer coisa que tenha a ver com cargo. Foi uma conversa pessoal de duas pessoas que estavam há 14 anos sem falar de política, mas que nunca tinham perdido o vínculo do ponto de vista pessoal. Temos uma vivência de quase 30 anos, desde que nos conhecemos, quando eu ainda era muito jovem, nem era do PT ainda. Mas ajudei a criar o PT e nunca perdemos esse vínculo. Isso se expressou em momentos dramáticos de nossas vidas, que foi a morte do meu pai, a morte da dona Marisa, o câncer que ele teve, e que eu fui visitá-lo. O laço social que se estabelece tem uma base que não pode ser rompida, pelo menos quando não se trata de questões extremas. Acho que foi isso que garantiu que essa conversa política, altamente importante para o momento dramático da vida social, ambiental, civilizatória do Brasil, pudesse acontecer.

Igarapé próximo à aldeia do Demini, na Terra Indígena Yanomami, no estado do Amazonas. Foto: Pablo Albarenga/SUMAÚMA

Você representa também uma parcela significativa de brasileiros que têm muita dificuldade de apoiar o Lula por conta do que foi feito na área ambiental após sua saída. Como foi essa conversa interna, com você mesma? Por que as pessoas podem acreditar que esse compromisso programático, que já foi quebrado antes, será respeitado?

A política é um processo vivo, não pode ser repetido. Boa parte dos problemas que nós estamos vivendo tem a ver com a política [tratada] como mera repetição, o que leva sempre à estagnação. Faço esse movimento a partir da certeza de que será feito o pior que se possa imaginar se o Bolsonaro for eleito. Nossa democracia ainda tem muitas fragilidades. E tem fortalezas. Essa musculatura institucional, que já foi estressada em 4 anos, talvez não tenha músculos para sustentar mais 4 anos de Bolsonaro. Este é um risco que não podemos correr. Numa perspectiva, tenho o elemento da esperança e da crença. Hannah Arendt [filósofa alemã de origem judaica] disse que, diante do imprevisível, só existe uma coisa: o valor da promessa. E de uma promessa que não foi feita para uma pessoa, foi feita para um povo. Sinto que o presidente Lula está em paz com esse reencontro. Eu me sinto em paz. [Mas] terá disputa, sim. Com certeza é uma aliança ampla, mas é uma frente com os que querem também fazer a mediação pró–sustentabilidade. Sejam socialistas ou capitalistas, conservadores ou progressistas. Antes nós éramos os fora da curva.

Isso realmente mudou?

Agora o problema da mudança climática, da perda de biodiversidade, tudo o que está acontecendo no mundo se impõe pela ciência, pela razão, pelo bom senso, pela ética e até pela estética. E impõe que todos sejam “sustentabilistas”. Não é mais o desenvolvimento, é o “sustentabilismo”, [ainda que] uns serão conservadores, outros progressistas. Só os negacionistas não serão “sustentabilistas”. Eles estão dispostos a destruir o planeta.

PORTO VELHO, RO, 09.09.2019 – Queimada é vista na floresta Amazônia nas proximidades de Porto Velho, em Rondônia. (Foto: Bruno Rocha/Fotoarena/Folhapress) ORG XMIT: 1792449

E por quê?

Porque há uma visão fundamentalista por trás de tudo isso, de que sempre que acontece um grande caos, uma grande catástrofe, um dilúvio, você vai ter uma humanidade renovável, um reflorescimento. Eles trabalham com essa lógica. Mesmo sendo conservador, você tem que considerar que se continuar aumentando a temperatura da Terra, não tem Amazônia, não tem água nem agricultura. O mercado não estará preocupado se vai ou não vai preservar a cultura indígena, se vai ou não vai resolver o problema da desigualdade, do racismo, da homofobia. Mas estará preocupado com a natureza.

Você afirma que há um consenso, mesmo entre conservadores, em torno da sustentabilidade. Há, porém, uma crítica ao desenvolvimento sustentável. O próprio Ailton Krenak [intelectual indígena brasileiro] já disse que desenvolvimento sustentável é uma vaidade pessoal. Não seria possível ser sustentável num sistema completamente insustentável…

Eu acho que a gente opera em alguns níveis. De como a gente se comunica com 7 bilhões de pessoas. E já é difícil comunicar nessa frequência do desenvolvimento sustentável, que, a duras penas, foi se colocando materializável para muitas pessoas. Agora, o fato de ter essa frequência compreensível não significa que você tenha que abrir mão da alma. E esta é uma outra frequência. Se você não mantém aquilo que são os princípios do bem viver, que dá suporte para que a gente possa se reinventar numa relação com a gente mesmo, com a natureza e com as outras pessoas, aí é um conceito vazio. A sustentabilidade não é uma maneira de fazer. Tem que ser uma maneira de ser. Não é apenas uma forma técnica. Tem que ser uma visão de mundo, um ideal de vida, estar lastreada no terreno dos ideais identificatórios. Até 400 anos atrás, era o ideal identificatório do ser. Os romanos queriam ser grandes, fortes. Os gregos queriam ser sábios, livres. Os egípcios, imortais. Na Idade Média, as pessoas queriam ser santas. E elas acreditavam que, se elas fossem algo, elas mereceriam ter. Se eu sou sábio, livre, mereço entrar pra história. Isso nos trouxe até aqui, com todas as mazelas do que somos. O mercantilismo entrou na cena há 450 anos e há um deslocamento. Agora, se eu tiver, eu mereço ser. Se eu tenho dinheiro, carro, uma casa, eu mereço ser feliz. Só que a capacidade de desejar do ser humano é infinita, e nós temos 7 bilhões de pessoas desejando ter, e não dá para suportar. Então, dialogando aqui com Ailton Krenak, vamos ter que fazer um deslocamento. Há limites para todos terem um carro, para todos comerem carne. Mas não há limite para fazer a melhor matéria jornalística, para escrever a melhor poesia, para compor a melhor música. Nos limites extensivos, eu estou disputando coisas. Estou disputando ouro, terra, carne. Nos limites intensivos, estou disputando habilidades. É aí que nós vamos sobreviver nesse planeta finito.

Bolsonaro recebeu 51 milhões de votos no primeiro turno e foi eleito um Congresso ainda mais antiambiental. Como vai ser essa batalha, nos dois cenários – se Lula vencer e se Bolsonaro vencer? Como será lidar com figuras como o ex-ministro do meio ambiente de Bolsonaro, Ricardo Salles, por exemplo?

Nós estamos vivendo um grande retrocesso. É uma regressão a um ponto civilizatório anterior. Se antes as pessoas queriam um pai e uma mãe, nós regredimos para ter o messias. É o cúmulo da regressão de uma visão infantil, impotente, assustada, apavorada do mundo. Isso é muito perigoso, porque, aqueles que se apavoram, [que temem] enfrentar o mundo, são capazes de destruir o próprio mundo que os apavora. É isso que o trumpismo faz, e é isso que o bolsonarismo quer fazer aqui no nosso país. É aí que eu encontro a razão: não é para ser otimista, e sim para ser insistente. Um amigo psicanalista tinha uma frase que me capturou: “Aonde for, seja”. Aquilo que está ali, insista para ser. Se nós temos uma raiz que já conseguiu reduzir o desmatamento, vamos insistir nela. Temos que fazer a transição para a agricultura de baixo carbono. Temos que ir para o setor financeiro, que não pode simplesmente fazer o discurso do ESG [sigla, em inglês, para Social, Ambiental e Governança] e emprestar para quem vai fazer destruição de floresta, para quem não respeita a terra indígena. O cerco vai se fechar. Os produtos de carbono intensivo vão ser precificados, vão ser taxados, a União Europeia está fechando o cerco, os Estados Unidos [também]. A China não tem como ficar de fora. Na hora que isso acontecer, a gente não fez o dever de casa?

E se não fizer?

Nós temos aqueles que sempre se moveram pelo coração. E tem alguns que vão se mover pela razão. Os que não se movem nem pela razão e nem pelo coração terão que se haver com os interditos da lei. Uma das propostas [diz respeito aos] 57 milhões de hectares de terras públicas hoje ainda não destinadas. O que chamam de “regularização fundiária” tem sido dar [essas áreas] de presente para quem faz grilagem [roubo de terras públicas]. Esses 57 milhões [de hectares] de áreas têm que ser destinados para unidades de conservação, para demarcação de terras indígenas. Não pode ser mais para corte raso [desmatamento].

Desmatamento recente no município de Apuí, no sul do estado do Amazonas. Foto: Lalo de Almeida/ Folhapress

Você fala da infantilização da política, de sair do pai e da mãe, para o messias. É uma referência à forma paternalista de governar de Lula e da apresentação na campanha de 2010 de Dilma Rousseff como “mãe do PAC” [Programa de Aceleração do Crescimento]?

Não estou vindo com nomes. Estou indo para o imaginário político do povo, esse ethos político que existe no Brasil. Vamos pegar Getúlio Vargas, que foi um grande pai na história [do Brasil]. Quantas vezes as pessoas dizem isso para mim: “Você é a mãe do ambientalismo”. E eu digo: Não. Nós temos uma luta que é nossa, esqueça esse negócio de ter uma mãe, [porque] é uma forma infantilizada. Mas pelo menos essa era uma ideia que ainda estava no terreno do humano, da cultura. A regressão vai para um ponto anterior a esse do pai e da mãe. É a ideia de um messias, de um salvador da pátria. É algo muito mais profundo e, obviamente, muito mais perigoso. Porque aí você tira qualquer potência transformadora da política, né? As pessoas já não se colocam [mais] nesse lugar de sujeito de suas vidas, de suas histórias. E isso tem a ver com a ideia também de que na América Latina as figuras carismáticas têm muita força. Falo isso me colocando na cena. Eu sou uma pessoa carismática e sei o poder que isso tem. Se tem uma coisa para a qual eu quero usar o carisma é para convencer as pessoas de que não dependam dele, que [ao contrário, precisam se] responsabilizar. Isso é difícil, dolorido, a gente não quer isso. A gente quer alguém que brigue pela gente, que fale pela gente. Se responsabilizar é muito doloroso e fazer política com essa compreensão é um lugar incompreendido. Se nós olharmos [para a história], antes a disputa vinha assim: é metrópole ou é colônia? Aí a gente consegue a nossa independência. É República ou Império? A gente consegue ser uma República. É agricultura ou é só extrativismo? É agricultura ou é indústria? É democracia ou ditadura? Sempre a polarização, você está sempre disputando. Mas a polarização também foi regredindo, e ela vai para o terreno dos indivíduos. Sai do modelo político e econômico e vai para a polarização entre os partidos. E depois ela vira uma polarização entre as pessoas. Agora, nós estamos no nível que nós estamos polarizando entre Deus e o Diabo.

Como enfrentar isso?

Quando a gente vai para o limiar desse nonsense, alguma coisa tem que aflorar daí, algum sentido, alguma ressignificação. O que nós estamos fazendo hoje é um movimento para defender algo que é fundamental, que é a base e a superfície de sustentação de todos. É diferente de quando você está na normalidade democrática. Você tem um povo que elege algo que para ele é muito importante. Nós estamos elegendo a democracia, mas não pode ser a democracia solta, ela precisa de um programa. Não [um programa] de um só partido ou de um grupo, mas um mosaico de ideias. É por isso que tem um lugar para as nossas propostas, para a proposta da senadora Simone Tebet [MDB], do Ciro [Gomes, PDT]. É a chance de podermos continuar lutando por aquilo que a gente acredita, pois com o Bolsonaro a chance está muito diminuída.

Como seria sua atuação num segundo governo Bolsonaro, uma vez que esta é uma possibilidade?

Um segundo governo de Bolsonaro é impensável. Porque coloca a Amazônia no mais alto risco e coloca as populações indígenas no mais alto nível de vulnerabilidade. Um impensável que tem que ser pensado. E se a gente não consegue pensar, a gente tem que agir. Neste momento, é atuar com o voto para tornar o Brasil vitorioso. A gente não pode reduzir o que nós estamos fazendo só a derrotar Bolsonaro, do mesmo jeito que a gente não pode reduzir apenas à vitória do Lula. O que nós estamos fazendo é dar vitória para o Brasil. Quando entrou em cena o [Fernando] Haddad e o Bolsonaro [na eleição de 2018], não precisou nem ter conversa programática. Eu sabia o que o Bolsonaro significava. Como agora eu sei tudo o que está em jogo para a democracia, para as políticas sociais, para os direitos humanos, para a Amazônia. Lá atrás, eu disse: o Bolsonaro vai atravessar as fronteiras do que é uma democracia ocidental. E ele atravessou. Agora, ele vai querer atravessar todos os limites por dentro, mudando o Supremo, fazendo impeachment de ministros, com esse parlamentarismo de usurpação, com orçamento secreto para botar dinheiro. Aí você vai ser uma Honduras, uma Nicarágua, uma Venezuela de direita.

Você acredita que existe uma massa mais crítica, hoje, que se entende como sociedade, menos vinculada ao paternalismo?

Sim, e isso está colocado no imaginário. Boa parte das soluções neste país foram produzidas pela sociedade. Essa é a nossa base de esperança, é aí que nós vamos insistir. É “Aonde for, seja”. O SUS vem de sanitaristas, de médicos comprometidos com a saúde pública. De onde vem a ideia de políticas sociais para atender os pobres, os vulneráveis? Da luta do Betinho, de Dom Mauro Morelli, e ganha força com a ciência, com um olhar social de economistas, com Ricardo Paes de Barros, [Anna] Maria Peliano, com Cristovam Buarque. De onde vem a ideia de que se deveria proteger a Amazônia? Vem do Chico Mendes, vem da Aliança dos Povos da Floresta. Quem ajudou a sistematizar isso? Mary Allegretti, Mauro Almeida, Manuela Carneiro da Cunha, Steve Schwartzman. De onde vem essa força potente da população preta, dos jovens nas periferias, das mulheres periféricas? Vem dessa capacidade de se perceber como sujeito. Eu falo e vou ficando emocionada. A gente tem um lado infantil, mas a gente está “adultecendo”. É nesse “adultecer” que vamos nos segurar.

 

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