Clipping

“A República de chinelos”: a simbologia do bolsonarismo

Em livro, pesquisadora de iconografia política Luciana Villas Bôas analisa como escolhas simbólicas de Bolsonaro comprovam o total desprezo do presidente pelos fundamentos da democracia e da representação política.

 

As transgressões cotidianas de Jair Bolsonaro não se resumem a atos administrativos e de gestão. Um presidente que despreza a liturgia do cargo revela, com seu modus operandi,  a intencionalidade de minar a democracia representativa. Em A República de chinelos – Bolsonaro e o desmonte da representação, Luciana Villas Bôas, professora do Departamento de Letras Anglo-Germânicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), traduz com precisão o poder de uma imagem.

Em fevereiro de 2019, o então líder do governo na Câmara, deputado Major Vítor Hugo,  postou no Twitter uma fotografia que mostrava Bolsonaro usando chinelos, uma calça de nylon e um paletó sobre uma camisa do Palmeiras. Bolsonaro não estava em um momento casual: a imagem foi registrada após uma reunião com a equipe ministerial na qual foi discutida o projeto de reforma da Previdência.

O que nos diz a figura de Bolsonaro de chinelos num encontro oficial? Qual é a simbologia de substituir comunicados à nação por lives semanais destinadas a apenas uma facção de eleitores, com uso contínuo de uma linguagem de baixo calão e bélica? Como admitir a presença de eleitores armados dentro das cabines de votação, digitando com armas o número de Bolsonaro nas urnas eletrônicas?

Pesquisadora de iconografia política, Luciana Villas Bôas afirma, nesta entrevista à DW Brasil, que os símbolos são centrais à vida política e que tudo o que cerca o atual presidente do Brasil, do vestuário à linguagem, comprova o seu total desprezo pelos fundamentos da democracia e da representação política.

“As quebras de protocolo podem até propiciar a identificação do presidente com o homem rude e simples, com o suposto outsider no poder. Mas, na verdade, exacerbam a assimetria do poder, o abuso do arbítrio, o monopólio da obscenidade”, afirma Villas Bôas, em trecho do livro.

DW Brasil: O quão importantes são os símbolos no exercício do poder e quando falamos de política, especificamente sobre democracia representativa?

Luciana Villas Bôas: Os símbolos, a dimensão imaginária, simbólica e os meios – as imagens, encenação e ordenamento do espaço – tudo isso é essencial à vida democrática. Não é possível tornar perceptíveis as instituições e o ordenamento jurídico sem essa dimensão, sem os recursos que tornam a ordem política, o regime, perceptíveis a todos. Ou seja, diria que a política tem uma dimensão que é constitutivamente simbólica, teatral e imaginária.

O título do seu livro é bastante sugestivo. O que significa o presidente de chinelos no Palácio da Alvorada?

Não tenho absolutamente nada contra chinelos, sou grande amiga de chinelos, e mais ainda de ficar descalça (risos). Não se trata disso, evidentemente. Se trata de entender como funciona o cargo da Presidência, como se dá a associação entre o indivíduo Jair Bolsonaro e o presidente, entre Bolsonaro e a República. Essa associação precisa ser produzida, encenada. Para isso existem uma série de protocolos, cerimônias, isso que a gente chama de investidura do cargo. É lindo porque o próprio português nos ensina. Acho que nunca houve um ocupante do cargo que se empenhasse tanto em impedir que o cargo falasse.

Essa caracterização, do vestuário, tem uma relação com quebra de protocolos e um presidente que, intencionalmente, não está disposto a seguir a liturgia do cargo. No seu livro você aborda a ambiguidade de Bolsonaro, quando se analisa o público e o privado, como se misturam. Em que medida as atitudes do presidente seriam intencionais, uma construção populista?

Há razão para se levantar essa dúvida, em que medida [o comportamento de Bolsonaro] não se trata de uma estratégia de marketing, mas minha análise não enfoca isso. Concordo que algumas coisas são estratégicas. Estava mais interessada em ver o efeito do exercício do cargo, em o que essa quebra sistemática dos protocolos produz, com os chinelos, o moletom no centro do poder, numa fotografia oficial.

Essa confusão entre o âmbito privado e o público, seja o uso do baixo calão, da linguagem chula, essa notável ineloquência do palavrão, e o que isso causa. Interpreto e sustento que isso é um desprezo profundo pelos espaços democráticos, pela dimensão do público e, portanto, um desprezo pelo pluralismo, que é fundamento da democracia.

Em relação ao modelo discursivo, Bolsonaro introduziu a comunicação oficial por meio de lives semanais e tem uma relação hostil com a imprensa. Criou até o “cercadinho” para a mídia, no Alvorada. Seriam essas também constatações da rejeição dos espaços democráticos e das instituições do Estado democrático de direito?

É exatamente isso. É um desprezo e uma recusa à praça, no sentido não físico, mas simbólico, aquele lugar que é aberto, comum, de visibilidade a todos. É um lugar por excelência plural. O cercadinho de Bolsonaro está exatamente na contramão. O sujeito que ocupa o cargo de presidente, e o cargo é uma função, se recusa a falar para todos. Quer falar só para os seus iguais, só para a sua facção. E isso é uma ameaça muito grande à vida democrática.

Outro aspecto abordado no seu livro é o belicismo na linguagem do presidente, como isso revela a incivilidade. A retórica bolsonarista, que despreza a tolerância e a mediação, também seria indicativo da falta de compromisso desta gestão e do atual presidente com a democracia?

Creio que sim. O uso do baixo calão, que é realmente extraordinário, não está isolado. Isso acaba associado a declarações que, na frequência em que ocorrem, ferem princípios fundamentais do Estado de direito de forma inédita. Nem gostaria de citar episódios recentes que fazem elogios a práticas fora do Estado de direito pelo ocupante máximo do poder. Isso se traduz na linguagem. A linguagem também é uma intermediação, é como se torna comunicável o cargo de presidente, que diz respeito a todos os cidadãos e cidadãs.

Em uma segunda parte do livro você analisa o simbolismo do voto, quando em 2018 eleitores de Bolsonaro foram votar armados, muitos até digitaram o número do presidente na urna eletrônica usando cano da arma. O contraponto foram eleitores de Fernando Haddad (PT) que levaram livros. O uso da arma, como simbologia, evoca também essa disposição latente de ruptura, golpe, que ameaça o pleito de 2022?

Sem dúvida a produção desta ameaça de ruptura do regime democrático é contínua. Mas antes de entrar no mérito deste risco, gostaria de sublinhar que o livro está baseado em imagens concretas, imagens-síntese da nossa iconografia política. Um conjunto de imagens que pertencem ao repertório da cultura e que são mobilizadas, deslocadas e se atualizam, visibilizando o que é a vida política.

No primeiro ensaio eu analiso o ocupante do poder, como ele se “fenomena”  no cargo – e eu uso esse neologismo –, procurando entender o que isso produz. Na segunda parte me concentro no símbolo-mor da democracia, que é a urna. Tento contextualizar a disputa da urna por armas e por livros, porque foi isso o que aconteceu no processo eleitoral.

Isso não é trivial, porque a urna, o voto, é o fundamento da soberania popular, do regime democrático, do governo de muitos, do demos, do povo. O que significa isso ter acontecido e se prolongar no presente? Foco nesta imagem do eleitor de Bolsonaro digitando o voto com o cano da arma, que é claramente uma violação da lei eleitoral, mas também uma violação simbólica terrível que evoca uma série de práticas do passado, desde o voto de cabresto a um tipo de masculinidade miliciana, faroéstica, de invadir o corpo da urna com a arma. Nem é preciso saber psicanálise para entender o que está sendo encenado ali.

Mas o que me parece mais importante é que o que aconteceu no processo eleitoral nos obriga a explicitarmos o que é para nós a urna, o que é para nós o voto. A urna é a instância intermediária entre participação e representação. Sem ela, não há democracia. Essa disputa que aconteceu em 2018 também revela qual é a natureza do poder na democracia, porque se as armas evidentemente querem subjugar a voz à força, a escolha à sujeição, os livros trazem de volta o voto para o âmbito da voz, interno, o foro íntimo de decisão de cada eleitor, que é soberano.

Tenho a suspeita de que o ataque bolsonarista à urna, paradigmaticamente à urna eletrônica, é um ataque à democracia talvez menos na dimensão participativa e mais na dimensão da representação, das instâncias intermediárias que dizem respeito ao Estado democrático de direito.

Como surgiu a ideia do livro? Foi algo que na eleição te chocou ou uma pesquisa acadêmica que você amadureceu ao longo do mandato de Bolsonaro?

De fato a história deste livro me ensinou como estão enlaçadas a minha vida como cidadã, meus interesses presentes, e como encaminho meus projetos de pesquisa. Fiquei totalmente revoltada já no primeiro turno quando circularam aquelas imagens de armas sobre as urnas. Achei aquilo um indício gravíssimo. E, ao mesmo tempo, eu venho estudando iconografia política, sobretudo do século 16.

No início de 2020, estava na Alemanha, com bolsa da Fundação Humboldt, para estudar justamente a representação do modelo de governante pela persuasão, pela eloquência, como isso concorre os modelos aristocráticos, mas fui invadida pela história. Deixei de lado a conclusão deste projeto para aplicar o que eu tinha aprendido, estudando as imagens e as intervenções do século 16 e aplicar isso à iconografia do presente, da atualidade que vivo. Não são arquivos acadêmicos. São textos dirigidos a um público amplo.

 

Veja em: https://www.dw.com/pt-br/a-rep%C3%BAblica-de-chinelos-a-simbologia-do-bolsonarismo/a-61556654

Comente aqui