Os pequenos Kambeba aprendem português e ciência ocidental, mas também língua e saberes ancestrais. Professores são indígenas — e lecionam com elementos da floresta. Caso é exceção, mas há brechas para escolas descolonizadoras
Por: Ariel Bentes e Jullie Pereira
Manaus (AM) – Quem vê Raynete Kambeba recolhendo folhas, gravetos e pedras numa tarde qualquer pode não imaginar que aquela coleta será usada para a aula da manhã seguinte. Os materiais são importantes para a professora de 25 anos ensinar numerais e quantidades para os alunos do ensino fundamental na Escola Kanata T-Ykua, na Comunidade Três Unidos, situada próximo ao rio Cuieiras, no Amazonas. Para ensinar o português e o kambeba, Raynete prefere cantar. E com o tambor e o chocalho, feitos pelos próprios indígenas, aproveita para ensinar a história de cada instrumento, sempre traduzindo para as duas línguas.
Os princípios da educação indígena devem incluir a recuperação e manutenção de memórias históricas dos povos, a reafirmação das identidades étnicas e a valorização de suas línguas originais e as ciências. Raynete gabarita em todos esses quesitos preconizados pelo Conselho Estadual Indígena de Educação do Amazonas. E ela faz isso resgatando a sua própria história.
Raynete dá aulas desde os 13 anos. Coube a então adolescente assumir o ensino dos pequenos quando a comunidade ficou sem o único professor, que era seu pai, Raimundo Kambeba. Ele precisava terminar a graduação e ela, que já admirava a profissão, ficou responsável por continuar o ensino de seu povo. Hoje, Raimundo é diretor da escola, onde Raynete leciona. “Este sempre foi meu sonho, de ajudar o meu pai, a minha comunidade e o meu povo. Eu quero sempre estudar mais, formar novos guerreiros, não somente professores, mas também médicos e juízes. Essa é a minha vontade e acredito que avançamos muito”, diz.
Muito daquela trajetória que começou na adolescência permanece na essência da aula que a professora dá, sempre envolvendo o cotidiano dos estudantes. Mas, muitas vezes, Raynete não está sozinha. Os anciãos também aparecem na sala de aula e contam eles próprios o que viveram e escutaram de seus pais e avós. É parte da tradição indígena passar o conhecimento de geração para geração.
No primeiro contato com a agência Amazônia Real, Raynete estava em sala de aula. Pediu um tempo para atender a reportagem e contou que o horário do almoço era o que ela tinha, porque à tarde ela faz seus planejamentos e à noite tem aulas no curso de pedagogia, que ela deve concluir esse ano.
Apesar da dificuldade em precisar se desdobrar como aluna e professora, esse ambiente já foi mais difícil. Antes, a escola não possuía prédio e os alunos de séries diferentes estudavam na mesma sala. As elaborações do conteúdo a ser ensinado precisavam ser melhor pensadas para agregar crianças de diferentes idades. Hoje ela dá aulas para o ensino fundamental e seus 14 alunos são apenas do povo kambeba, o que facilita.
“Antes era bem difícil, porque trabalhávamos com a sala multisseriada, numa escola muito pequena. O desafio era fazer dois, três, quatro planejamentos, era pouco tempo, eu tinha que sair correndo”, explica.
O currículo indígena
A bonita história da professora Raynete, que consegue criar aulas com foco nas histórias de seu povo, é uma exceção no Brasil, e longe de um dia virar regra. Não há educadores suficientes para todas as mais de 300 etnias. Professores indígenas alertam para o drama de conseguir fazer os currículos serem aplicados para cada povo. Algumas escolas trabalham com alunos de diferentes etnias em uma turma só. Isso dificulta a adoção de um ensino que aborde todas as especificidades, o que é hoje a maior reivindicação da luta pela educação indígena.
“Fazer com que as diretrizes curriculares da educação escolar indígena sejam aplicadas é o nosso maior desafio. Na verdade, já deixou de ser um desafio e passou a ser um drama”, afirma Gersem Baniwa e outros professores indígenas do Amazonas entrevistados pela Amazônia Real.
Apesar das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indígena na Educação Básica, que completa 10 anos no mês de junho, professores pedem que seja criado um sistema próprio. Pela legislação brasileira, a coordenação nacional das políticas de educação escolar indígena fica a cargo do Ministério da Educação (MEC), mas cabe aos Estados e municípios a garantia desse direito.
“Há pouca ou quase nenhuma diferença entre o currículo das escolas indígenas e não indígenas. Isso prejudica os sonhos dos povos indígenas de terem uma escola própria que atenda às suas demandas do presente e do futuro”, afirma Gersem, que nasceu na Aldeia Yaquirana, do povo Baniwa, localizada no Alto Rio Negro. Mestre em Antropologia Social, ele é professor do curso de Licenciatura Específica de Formação de Professores Indígenas da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e o primeiro professor indígena amazonense na Universidade de Brasília (Unb).
Até a três décadas atrás, a educação indígena no Brasil era marcada pela catequização e integração forçada dos indígenas “à sociedade” feita por jesuítas e missionários, conforme o artigo “Políticas de línguas e educação escolar indígena no Brasil” de Rodrigo Bastos Cunha, doutor em Linguística Aplicada pela Unicamp. Isso significava, na prática, que era preciso ensinar a língua portuguesa e fazer esquecer a língua nativa.
A partir da mobilização do movimento indígena, a política educacional no País passou a mudar com a Constituição Federal de 1988. A Carta Magna assegurou aos povos indígenas o ensino por meio das suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem, direito que se consolidou em 1996 com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). A LDB garante aos povos originários o direito a uma educação escolar específica diferenciada, intercultural, bilíngue/multilíngue e comunitária.
Em 1999, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) e o MEC realizaram o primeiro e único Censo Escolar Indígena, publicado dois anos depois. O levantamento permitiria conhecer as escolas e o perfil de estudantes e professores indígenas no Brasil. À época, o país possuía 1.392 escolas presentes em terras indígenas, 3.059 professores e 93.037 estudantes indígenas.
Novos dados foram publicados pelo MEC em 2005 no estudo “Dados estatísticos sobre educação escolar indígena no Brasil”, no qual foram identificadas 2.323 escolas, 163 mil estudantes indígenas e mais de 8.400 professores. Como não se trata de uma pesquisa específica, o documento não informa quanto desses professores eram indígenas, mas estima-se que 90% deles faziam parte dos povos originários.
Ao longo dos anos, somaram-se às conquistas jurídicas e legislativas a publicação do Referencial Curricular Nacional para a Escola Indígena, que apresenta sugestões de trabalho para a construção dos currículos escolares específicos a cada realidade. Além do Plano Nacional de Educação, decretado pela Câmara dos Deputados em 2000, que estipulava entre as suas metas a criação das categorias oficiais de escolas indígenas e de professores indígenas como carreira específica do magistério, e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indígena na Educação Básica de 2012, que assegura a utilização de materiais didáticos bilíngue (português e língua indígena) nas escolas, o que é raro segundo os professores.
As escolas indígenas
Para Marlete Costa, do povo Kambeba, professora da Escola Indígena Tururukari-uka, localizada na aldeia homônima em Manacapuru, a 98 quilômetros de Manaus, essas conquistas na educação indígena formam uma estrutura jurídica que possibilita que as populações tenham projetos educacionais alinhados às suas reais necessidades. Ela própria se beneficiou do avanço na compreensão dessa questão, tornando-se educadora por meio do magistério indígena, responsável por formar professores para trabalhar na sua respectiva comunidade.
“A escola indígena, diferentemente da escola colonizadora e integracionista, passa a ter a possibilidade de uma organização baseada nas realidades socioculturais e sociolinguísticas das populações indígenas. O maior desafio é fazer com que o que está assegurado nas leis seja de fato transformado em políticas públicas concretas”, alerta Marlete. A Escola Tururukari-uka atende cerca de 15 crianças indígenas da educação infantil ao 5º ano.
A professora ressalta que é possível encontrar semelhanças e aproximações linguísticas e culturais entre os povos indígenas, mas que as diferenças são maiores e devem ser levadas em conta na construção dos currículos das escolas. “A escola indígena deve ser capaz de valorizar e fortalecer os saberes tradicionais e as línguas maternas na mesma proporção em que deve oportunizar aos indígenas o acesso a conhecimentos científicos ocidentais”, diz Marlete.
No último Censo Populacional do Instituto Brasileiro de Estatística e Geografia (IBGE), mais de 817 mil pessoas se autodeclararam indígenas, de 309 povos e 219 línguas faladas. O IBGE não inclui nessa estatística indígenas que vivem em área urbana, sendo criticado por organizações e ativistas.
Por um sistema federal
De acordo com o Censo Escolar 2005, com exceção do Piauí e do Rio Grande do Norte, todos os Estados possuem escolas indígenas. Ao todo, 52,4% das escolas são municipais, 46,6% estaduais e 0,95% particulares.
Tanto o professor Gersem quanto a professora Marlete, afirmam que no Amazonas, onde 80% das escolas indígenas são municipais, não são criadas condições pedagógicas, materiais e financeiras pelos gestores. Eles também defendem a criação de um sistema federal de educação escolar indígena, discurso que tem crescido em movimentos indígenas, mas que teria sido interrompido com a eleição do atual presidente da República, Jair Bolsonaro.
Segundo eles, a medida pode levar novos avanços para a modalidade como a possibilidade jurídica para que cada escola de cada povo pudesse ter seu próprio currículo. “Na ausência de um sistema nacional e na ausência da regulamentação de sistemas próprios municipais, os currículos acabam seguindo somente as diretrizes padrões do município. Quando o município não é constituído por um sistema é pior ainda, pois as escolas indígenas tem que seguir as normas do Estado”, diz o professor Gersem Baniwa.
Faltam professores
Além da importância de ter um currículo escolar específico nas salas de aula, os professores alertam para a necessidade de se investir em suas formações. No Censo de 2005, 64,8% dos professores indígenas tinham o ensino médio e apenas 13,2% o ensino superior. Apesar disso, a Resolução nº3/99 das diretrizes indígenas orienta que os sistemas de ensino devem oferecer formação específica e continuada para os professores por meio de programas e parcerias com instituições de ensino.
“As universidades apresentam poucas iniciativas voltadas para a formação de professores indígenas no Brasil. A lacuna entre o número de professores indígenas sem formação e o número de vagas ofertadas em cursos superiores é abissal”, afirma Marlete.
Organizações indígenas e indigenistas também podem oferecer essas formações, mas desde que sejam solicitadas pelas comunidades indígenas e tenham suas propostas autorizadas pelo Conselho de Educação. O professor Gersem explica que a quantidade de professores formados é tímida e a qualidade da formação é relativa. Hoje, boa parte dos formadores dos professores indígenas é composta de brancos.
“Por mais sensíveis e comprometidos que sejam com a causa, eles ainda são brancos e possuem vícios do pensamento colonial. Quando falo de formação, não estou falando apenas de diploma e certificado, mas também de formação informal, de vivência. Precisamos de formadores que conheçam a realidade, que vivam a nossa cultura e falam as nossas línguas”, diz.
O estudo da língua
O ensino da língua indígena é um dos principais componentes do currículo escolar e tem grande valor para as comunidades que correm o risco de perderem seu dialeto. Uma das preocupações é a falta de registro, que pode tornar a língua extinta. Isso ocorre quando os falantes morrem e não conseguem estabelecer um dicionário ou uma gramática. É o caso da língua Baré, que foi extinta ainda no período colonial e fazia parte da família linguística Aruak.
Quando a língua é de alguma forma registrada, ela é considerada língua morta, mas ainda com a possibilidade de ser revitalizada e inserida em novas comunidades, caso exista interesse em aprendê-la. Daí vem a necessidade de estudar línguas, escrever sobre elas, ensiná-las.
O professor Ademar Lima, autor do livro Para compreender Manaus: da etimologia à cultura e línguas dos manauaras e profissional da Secretaria de Educação Indígena de Manaus, explica que é necessário estabelecer políticas linguísticas de manutenção dos dialetos. “As línguas indígenas no Brasil estão em risco porque são línguas minoritárias e faladas em comunidades pequenas. Elas precisam ser ensinadas porque se isso não ocorrer muitos grupos indígenas vão deixar por completo de falar sua língua e essa morte será acelerada”, diz.
De acordo com a Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco), o Brasil tem 190 línguas indígenas ameaçadas de extinção. No Amazonas existem três línguas indígenas oficializadas: nheengatu, baniwa e tukano. O Censo de 2010 mostra que as línguas mais faladas no país são a tikuna (34 mil falantes), a guarani kaiowá (26,5 mil), a kaingang (22 mil), a xavante (13,3 mil) e a yanomami (12,7 mil).
Mais do que o ensino de uma língua, a pedagogia usada na educação indígena é específica, com recortes a partir de conhecimentos de cada povo. “Todo o conhecimento de ensino de uma língua se dá com o processo de letramento, e isso envolve mais do que ler e escrever, mas também considera o conhecimento aprendido desde que a criança nasce, usando como referência o contexto dos povos da floresta. É dessa forma que os professores indígenas ensinam, usando como base elementos próprios da vivência da fauna e da flora”, explica Ademar.
Veja em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/a-riqueza-e-os-desafios-do-ensino-indigena/
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