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A utopia, a história e o desafio de governar

Se retornar ao governo no Brasil, a esquerda estará de novo diante de um dilema. Como gerir produção e Estado capitalistas, orientando-os para fins socializantes. Vale a examinar a história deste desafio, que permanece sem resposta satisfatória

Although anything can happen within the train, much of it
unpredictable, there is one thing the historian must nor forget:
trains can go faster or slower, they can come to a stop, they
can explode, but there are constrained by the tracks. History is
about what people do within the limits of their landscape, their
needs and their past1

Donald Sassoon, One Hundred Years of Socialism

Todos os partidos socialistas que governaram democraticamente os Estados europeus na primeira metade do século XX tiveram que enfrentar o mesmo desafio ou “duplo paradoxo” de gerir o quotidiano de uma economia capitalista, propondo-se ao mesmo tempo reformá-la ou transformá-la numa economia socialista, através de políticas públicas que necessitam do sucesso capitalista para poder se autofinanciar e sobreviver. O mesmo desafio que enfrentarão, nesta terceira década do século XXI, os partidos e governos de esquerda latino-americana que estão sendo chamados a governar e administrar uma economia capitalista que se encontra em frangalhos depois da pandemia do coronavírus e do fracasso generalizado dos governos ultraliberais do continente. Esses governos terão que enfrentar alguns problemas que são novos e que não estavam postos da mesma maneira no caso dos governos socialistas europeus, mas a contradição fundamental segue sendo a mesma: depender do sucesso capitalista para realizar “objetivos socializantes”.

Este paradoxo foi formulado pela primeira vez por Gerrard Winstanley (1609-1676), que foi soldado do exército de Oliver Cromwell (1599-1688) antes de se transformar num agitador e líder revolucionário, após a derrubada da monarquia inglesa em 1649, quando as tropas vitoriosas de Cromwell começaram a discutir o futuro da república que haviam acabado de proclamar. Foi então que Winstanley formulou pela primeira vez – num panfleto distribuído entre os soldados – o que viria a ser uma proposta central da utopia socialista, em todos os tempos e lugares: a ideia de que os homens só seriam livres e iguais quando se apropriassem coletivamente da propriedade da terra e de seus frutos. Por esse motivo, Winstanley considerava que toda e qualquer reforma política que fosse implementada naquele momento seria inútil ou ineficaz enquanto não se acabasse com a propriedade privada, que estava na raiz da desigualdade econômica entre os homens.

No século seguinte, vários pensadores franceses, entre eles Marechal (1750-1803) e Babeuf (1760-1797), defenderam a mesma tese central de Winstanley, mas tocou a Jean Jacques Rousseau (1712-1778) abrir um caminho novo na direção do coletivismo e da democracia, ao propor que o Estado assumisse, em última instância, a propriedade coletiva da terra. Uma ideia que foi retomada por Karl Marx (1818-1883) no programa mínimo de governo que aparece no final do Manifesto Comunista escrito com Friedrich Engels (1820-1895), a pedido da Liga dos Comunistas, de origem alemã mas que havia se reunido na cidade de Londres em 1847. Nesse programa, a estatização progressiva da propriedade privada substitui a ideia originária da comunidade utópica de Winstanley e aprimora a proposta estatal de Rousseau. A estatização passava a ser o caminho ou estratégia de governo, mas o objetivo final do programa comunista seguia sendo o “fim da propriedade”, e mais à frente, o fim do próprio Estado, que deveria ser demitido de sua função de administrador das pessoas.

Seria instalado aí, nesse momento e de forma definitiva, o paradoxo da proposta socialista de administração e reforma simultânea do modo de produção capitalista. Um problema que não se colocava para os “socialistas utópicos” ou para os “anarquistas” que não se propunham a tomar o governo dos Estados capitalistas; pelo contrário, o que propunham era construir, a partir da própria sociedade, experiências econômicas comunitárias, cooperativas ou solidárias, através da prática de políticas locais e do exercício da democracia direta. O mesmo se pode dizer das revoluções comunistas que tomaram o Estado e coletivizaram a propriedade privada, desmontando o sistema capitalista e propondo-se a construir de imediato as bases de um novo “modo de produção”.

Mesmo sem querer esgotar um assunto de tamanha complexidade, é possível contar a história da experiência governamental da esquerda e de seus partidos socialistas ou social-democratas do século XX, como um debate ou tensão permanente entre sua proposta de eliminar a propriedade privada e sua obrigação de gerir um sistema econômico e uma sociedade com base na propriedade privada; e entre seu objetivo final de eliminação do Estado e a intenção de utilizar o Estado estrategicamente como seu principal instrumento para modificar ou revolucionar o desenvolvimento capitalista. Essa tensão permanente atravessou a história dos debates socialistas do século passado, como foco central das sucessivas “revisões” táticas a que foi submetida a utopia original através do tempo.

A mais famosa dessas “revisões” foi proposta pelo social-democrata alemão Eduard Bernstein, em 1894. Segundo Bernstein, o progresso técnico e a internacionalização do capital haviam mudado a natureza da classe operária e do sistema capitalista, e por isso ele propunha que o socialismo já não fosse mais considerado o objetivo último do movimento, e que este movimento de transformação e transição fosse assumido como um “processo sem fim”. Uma tese que foi conquistando cada vez maior número de adeptos dentro da social-democracia europeia da primeira metade do século XX, período em que os socialistas participaram de várias coalizões governamentais com menor ou maior grau de sucesso – neste caso, com destaque para o caso sueco. Até o momento em que a maioria dos social-democratas europeus já tinha abandonado a ideia/projeto do fim da propriedade privada e do próprio Estado, à altura dos anos 1950/60, quando os partidos socialistas, social-democratas e comunistas europeus formularam – já depois da Segunda Guerra Mundial (1938-1945) – seus dois grandes projetos ou programas de reforma e “gestão igualitária do capitalismo” que dominaram o pensamento socialista europeu até a crise econômica capitalista dos anos 70 e a grande virada conservadora do pensamento econômico ocidental.

O primeiro foi o projeto do “Estado de bem-estar social” adotado pela maioria dos governos social-democratas ou trabalhistas europeus entre 1946 e 1980. Seu objetivo fundamental foi o crescimento econômico, o pleno emprego e a construção de redes públicas universais de educação, saúde e proteção social. O segundo, e menos experimentado, foi o do “capitalismo organizado”, que se propunha a construir um capitalismo mais justo e igualitário, regulado e planejado pelo Estado, associado a um “núcleo econômico estratégico” composto por grandes empresas estatais e privadas. Este projeto esteve presente na concepção do programa de governo de Salvador Allende, no início dos anos 70, e também na primeira fase do governo de François Mitterand, no início da década de 1980.

Esses dois projetos ou estratégias tinham em comum uma nova versão da proposta original do soldado inglês Gerard Winstanley e dos próprios socialistas do século XIX. Nos dois casos, a equação socialista era a mesma: “liberdade = igualdade econômica = fim da propriedade privada”. A partir da década de 1950, entretanto, esta equação socialista adotou uma nova fórmula: “liberdade = igualdade social = crescimento econômico acelerado”. A partir de então, os socialistas e social-democratas deixaram de esperar pela “crise final” do capitalismo e passaram a apostar no maior sucesso possível do próprio capitalismo, como forma de criar empregos e estratégia para financiar suas políticas sociais e distributivas de caráter cada vez mais universal. O novo projeto exerceu grande influência em toda a periferia europeia, e em todos os partidos de esquerda latino-americanos que adotaram a bandeira do “desenvolvimentismo”, defendendo políticas econômicas favoráveis ao crescimento do capital e ao pleno emprego. E foi então que nasceu a convergência dos socialistas e social-democratas com as ideias, teses e políticas keynesianas.

Essa aliança ou convergência, entretanto, se complicou depois da crise econômica capitalista e ocidental dos anos 70, quando ficou claro que a nova heterodoxia político-econômica” só havia funcionado simultaneamente a favor do capital e do trabalho durante o período limitado e excepcional da reconstrução e expansão “regulada” do capitalismo após a Segunda Guerra, entre 1945 e 1975, aproximadamente. Foi depois desse período de bonança, e em particular depois do fim do “mundo comunista”, que os socialistas promoveram sua terceira “grande revisão”, nas décadas de 80 e 90, liderados pelos trabalhistas ingleses e social-democratas alemães. Só que neste caso o novo programa da chamada “terceira via” abriu mão de boa parte do que havia sido construído pelos trabalhistas e social-democratas sob a bandeira do “Estado de bem-estar social”, uma vez que a “promoção do capital” pelas novas políticas econômicas neoliberais envolvia a perda de muitos dos direitos conquistados pela classe trabalhadora. Assim mesmo, esta terceira grande “revisão socialista” exerceu grande influência sobre muitos grupos da esquerda norte-americana, e sobre amplos setores da esquerda latino-americana, depois do fim das ditaduras militares do continente, e após a queda do Muro de Berlim, em 1989.

Por esse caminho, o que no início foi considerado como uma sucessão de “ajustes estratégicos” bem-sucedidos, no seu devido tempo acabou levando os socialistas europeus a uma espécie de beco sem saída. De “revisão em revisão”, eles primeiro abriram mão do seu objetivo socialista de longo prazo, depois abandonaram sua proposta de estatização radical da propriedade privada, para colocar em dúvida, finalmente, o custo das políticas sociais que haviam se transformado na sua marca distintiva no século XX. Apesar disto, é necessário sublinhar, os socialistas e a social-democracia deram uma contribuição decisiva para o sucesso econômico, social e político da Europa, sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial. Também é verdade que estas sucessivas mudanças foram atingindo a própria identidade utópica dos partidos socialistas, social-democratas e trabalhistas que foram abandonados pelo seu eleitorado e quase varridos do mapa político europeu nas duas primeiras décadas do século XXI. Mesmo assim, conseguiram retornar ao governo de alguns países importantes da União Europeia, nos dois últimos, e hoje são os partidos e governos que estão na linha de frente – ao lado dos EUA – no enfrentamento com a Rússia na Ucrânia, e no encaminhamento de propostas visando ao rearmamento e à militarização da Europa2, e é muito provável que acabem pagando caro pela crise europeia induzida ou piorada pelas “sanções econômicas” impostas à Rússia.

O desafio de governar a América Latina na terceira década do século XXI envolve problemas e desafios que não se colocavam com a mesma urgência para a esquerda europeia do século passado, como as questões da “sustentabilidade”, das “identidades” e da “reinvenção democrática”. Além disso, o continente latino-americano ainda tem que resolver problemas do “passado europeu”, como o do próprio desenvolvimento econômico com um mínimo de igualdade, mas também o da educação, saúde e proteção social universal de suas populações. Por isso, seja qual for o futuro da social-democracia europeia, sua história passada segue sendo um importante roteiro de discussão sobre as estratégias e políticas que deverão ser adotadas pelos novos governos progressistas da região, para enfrentar o desafio de governar e reconstruir um continente devastado pelo fanatismo ideológico e econômico da extrema-direita ultraliberal.

 

Veja em: https://outraspalavras.net/direitosouprivilegios/a-utopia-a-historia-e-o-desafio-de-governar/


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