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As armadilhas do feminismo radical

A luta contra o capitalismo continua sendo o único caminho para a plena libertação das mulheres.

Por: Erica West | Tradução: Adria Meira| Foto: Kheel Center / Flickr. Membros da Liga do Sindicato das Mulheres de Nova Iorque posam com um cartaz exigindo um dia de trabalho de 8 horas em 1910.

Criticar o feminismo liberal é fácil para muitas feministas socialistas. Muitas de nós vieram para o socialismo a partir do liberalismo, então compreendemos bem suas limitações.

No entanto, a história e a essência do feminismo radical não é assim tão conhecida. Se o “radical” do feminismo radical sugere uma política que os socialistas poderiam adotar, um olhar mais cuidadoso revela uma ideologia incompatível com o feminismo socialista. Marcado por uma estreita compreensão sobre a opressão de gênero e tendo uma estratégia equivocada para a transformação, o feminismo radical — em última instância — falha ao não conseguir oferecer às mulheres um caminho nítido para sua libertação.

O feminismo radical surgiu do feminismo da segunda onda na década de 1970, ao lado, mas de maneira mutuamente exclusiva, do feminismo socialista e marxista. No entanto, compartilham alguns pontos em comuns. Como as feministas socialistas, as feministas radicais problematizam o individualismo do liberalismo e argumentam que as escolhas pessoais e as conquistas individuais não são suficientes para transformar a sociedade. Além disso, elas localizam a opressão das mulheres em um contexto mais amplo e referente à sociedade.

Desde o seu princípio, o feminismo radical elencou como questões essenciais a violência sexual e a violência doméstica, considerando-as fundamentais para sustentar a opressão contra as mulheres. Andrea Dworkin, uma das feministas radicais mais proeminentes da década de 1980, se distinguiu em sua trajetória contra a violência sexual. Em um de seus discursos mais famosos, ela pedia uma trégua de 24 horas durante a qual não houvesse um único caso de estupro. Dworkin implorava aos homens na platéia para que tentassem entender o profundo medo da violência sexual que as mulheres vivem todos os dias.

Esse compromisso de combater a violência sexual — um flagelo que dificulta todos os aspectos da vida das mulheres — é admirável. Assim como também é a ênfase das feministas radicais na reforma em larga escala ao invés de vitórias parciais em uma escala micro.

Contudo, o modo como as feministas radicais passaram a lidaram com o caminho para a concretização de mudanças é preocupante e sintomática de falhas mais profundas em sua ideologia.

O seu trabalho anti-pornografia é emblemático. Na década de 1980, muitas feministas radicais trabalharam pela proibição da pornografia, a considerando como sendo inerentemente misógina e violenta. Algumas, como Dworkin e Catherine MacKinnon — uma feminista radical acadêmica, advogada e professora — foram ainda mais longe. Se aliando a reacionários cristãos como o ex-procurador geral dos EUA, Edwin Meese, elas pressionaram por uma série de decretos locais banindo a pornografia. “Entre os muitos legisladores com quem trabalhamos”, MacKinnon disse entusiasmada em um artigo de opinião de 1990 no New York Times, “uma delas é uma política conservadora. Tivemos a honra de trabalhar com ela”.

Alguns aspectos da pornografia são, sem dúvida, desprezíveis, racistas e violentos. Entretanto, a proibição da pornografia faria pouco para abordar as preocupações materiais e imediatas das mulheres envolvidas no setor. Além do mais, não faz sentido se aliar aos conservadores para combater a opressão contra as mulheres – essas são as mesmas pessoas que querem restringir os direitos reprodutivos das mulheres e tornar ainda pior o já precário Estado de Bem-Estar social.

O trabalho anti-pornografia das feministas radicais lança uma luz sobre os perigos em uma identificação errônea das raízes da opressão contra as mulheres. Nos basear na censura, encorajar o aparelho carcerário, fazer alianças com os inimigos de mudanças progressistas — é para aí que a análise do feminismo radical nos conduz.

Classe e a origem da opressão contra a mulher

No núcleo dos erros teóricos do Feminismo Radical está a sua concepção de classe.

Para as feministas radicais, as duas classes principais da sociedade não são a classe trabalhadora (que vende sua força de trabalho) e os capitalistas (que os exploram), mas os homens (os opressores) e as mulheres (as oprimidas). Esta é a teoria do patriarcado.

As feministas radicais nem sempre reconhecem a existência do capitalismo, e mesmo quando o fazem, o consideram como sendo uma esfera completamente separada, isolada da opressão feminina. Seu objetivo final é abolir o gênero, que elas consideram inerentemente hierárquico e opressivo em relação às mulheres.

Enquanto as marxistas compartilham dessa antipatia em relação ao patriarcado, nós temos uma concepção diferente sobre as classes e as raízes da opressão das mulheres. Definimos a classe não em termos de gênero, mas em termos econômicos: a classe de uma pessoa é determinada pela sua relação com os meios de produção e o Estado. Hillary Clinton e Sheryl Sandberg, por exemplo, pertencem a uma classe diferente da de uma estudante de pós-graduação que luta em um sindicato ou a mãe de quatro filhos que trabalha em um restaurante de fast food em troca de salário mínimo.

As socialistas se opõem a todos os comentários machistas lançados contra Clinton, Sandberg e outras mulheres da elite, mas o fato é que os interesses delas como capitalistas e políticas bem colocadas estão fundamentalmente em desacordo com os interesses da grande maioria da sociedade.

Eis um exemplo recente: quando as trabalhadoras de um hotel Double Tree Hilton tentaram se sindicalizar em Cambridge, Massachusetts, há alguns anos, elas pediram explicitamente o apoio de Sandberg, afirmando que elas estavam tomando seu conselho de “fazer acontecer”. Sandberg recusou-se a apoiá-las. E não é de admirar. A “sororidade” ou “irmandade” universal estava correndo contra os interesses concretos do capital. As verdadeiras lealdades de Sandberg vieram à tona, de forma alta e evidente.

Como marxistas, sabemos que o inimigo não são os homens, mas a classe capitalista — que é plural nos quesitos de gênero e raça — e que a nossa estratégia deve refletir isso. A opressão contra as mulheres não é inata aos seres humanos, mas, pelo contrário, surgiu em um momento histórico e político particular, ao lado do desenvolvimento da sociedade de classes e do núcleo familiar.

A opressão contra as mulheres persiste não apenas porque os homens nos odeiam, mas por conta do papel que desempenhamos historicamente no núcleo familiar. Enquanto os homens iam trabalhar todas as manhãs para participar da produção capitalista — fazendo carros na fábrica, escrevendo documentos no escritório — as mulheres estavam tipicamente envolvidas naquilo que hoje é conhecido como reprodução social: a reprodução biológica de novos trabalhadores (ou seja, ter filhos) e a reprodução diária dos trabalhadores — lavar roupa, alimentar a família, preparar os filhos para a escola, e assim por diante.

Mesmo nas últimas décadas, conforme as mulheres entraram em massa na força de trabalho assalariada, elas ainda tendem a arcar com a “dupla jornada”, realizando a reprodução social em casa ao retornarem do trabalho.

Essas tarefas são vitais para o capitalismo. Os trabalhadores precisam ser alimentados, vestidos e preparados todos os dias para que o capitalismo funcione. Mas é do interesse do capitalismo que este trabalho seja feito de graça e na esfera privada.

Como resultado, as feministas socialistas argumentam que a única maneira de libertar as mulheres é acabar com a sociedade de classes, de uma vez por todas.

Ao longo do caminho, existem reformas pelas quais podemos e devemos lutar, como aumentar o salário mínimo, introduzir a licença-maternidade remunerada e implementar a creche universal. Feministas socialistas como Silvia Federici também defenderam “salários para tarefas domésticas“, a fim de proporcionar às mulheres a independência financeira e reconhecer sua labuta na esfera doméstica como trabalho. Outras, como Angela Davis, propuseram socializar essas tarefas domésticas para eliminar o ônus desigual e de gênero das mulheres.

Mas nenhuma dessas reformas — e muito menos a derrubada do capitalismo — será conquistada sem movimentos sociais unitários e de massas. E é aí que entra a classe trabalhadora. Devido à sua posição na sociedade, a classe trabalhadora como um todo — em toda a glória de sua pluralidade de gênero, raça e gerações — é o agente social que pode lutar para reformar radicalmente o capitalismo — e, em última instância, para se ir além dele.

Esse objetivo final inclui a abolição do gênero? Provavelmente! Citando Engels:

Isso será respondido quando uma nova geração surgir: uma geração de homens que nunca em suas vidas souberam o que é comprar a rendição de uma mulher com dinheiro ou qualquer outro instrumento social de poder; Uma geração de mulheres que nunca souberam o que é entregar-se a um homem de qualquer outra forma que não o amor real ou se recusar a se entregar ao seu amante pelo medo das conseqüências econômicas. Quando essas pessoas estiverem no mundo, eles vão se importar muito pouco com o que alguém acha hoje que eles deveriam fazer; eles vão fazer sua própria prática e sua opinião pública correspondente sobre a prática de cada indivíduo — e esse será o fim disso.

O feminismo radical e suas exclusões

Nos últimos anos, a visão de muitas pessoas sobre o Feminismo Radical tem sido influenciada por suas opiniões sobre as TERFs, ou “feministas radicais trans-excludentes”, na sigla em inglês. Nem todas as feministas radicais são TERFs. MacKinnon tem sido uma defensora aberta dos direitos das trans durante décadas, e tem criticado as TERFs por seu preconceito. “Qualquer pessoa que se identifica como uma mulher, quer ser uma mulher, se sente como uma mulher, no que me diz respeito, é uma mulher”, disse ela em uma entrevista em 2015.

Mas, embora não sejam sinônimos, o feminismo radical contém muitas TERFs em suas fileiras, e suas idéias centrais se prestam a uma exclusão das pessoas trans, especialmente das mulheres trans.

Para muitas feministas radicais, não importa o gênero com que alguém se identifica e se apresenta — só importa o sexo que lhe foi atribuído no nascimento. Se os homens são os opressores e a fonte da opressão contra as mulheres, por consequência esses homens mantêm esse poder de oprimir, mesmo após a transição. A sua socialização como homem, não importa quão pouco vivida ou atormentada pela violência de gênero, os tornaria agentes da opressão feminina. Assim, muitas feministas radicais proíbem as pessoas trans, e especialmente as mulheres trans, de seus espaços políticos e organizacionais.

Essa exclusão não é apenas uma questão de intolerância — é também hipocrisia: enquanto as feministas radicais lutam vigorosamente contra a violência sexual, proporcionalmente as mulheres trans são as maiores vítimas de violência física e sexual, especialmente as mulheres trans negras.

As TERFs podem argumentar que as mulheres trans não têm o mesmo sistema reprodutivo que as mulheres cis e que, portanto, elas não poderiam compreender as lutas das mulheres em relação ao controle de natalidade e contra a esterilização forçada. Mas, então, o que elas teriam a dizer a respeito de solidariedade com as mulheres lésbicas, ou mulheres cis que não podem ou escolhem não ter filhos? Os argumentos que as TERFs apresentam são tão fracos quanto são preconceituosos.

O feminismo radical também se mantém em um notável silêncio sobre a questão do racismo e está imerso em uma estratégia politicamente suspeita sobre como lutar contra isso.

Os homens negros perpetuam o machismo exatamente da mesma forma que os homens brancos. Mas sua experiência com o racismo também fortalecem seus laços com as mulheres negras em suas comunidades. Como Sharon Smith escreve, “a necessidade de lutar ao lado dos homens na luta contra o racismo ou na luta de classes [faz] as idéias separatistas não parecerem atraentes” para mulheres negras.

Na verdade, para muitas mulheres, a luta contra o racismo está intrinsecamente ligada à luta contra o machismo (ambos arraigados no capitalismo).

O Coletivo do Rio Combahee, um grupo lendário de socialistas feministas negras, incorporou esse entendimento, escrevendo em sua declaração de 1979: “Precisamos articular a verdadeira situação de classe de pessoas que não são apenas trabalhadores sem raça e sem sexo, mas para quem a opressão racial e de gênero são determinantes em suas vidas econômicas/no trabalho”.

As mulheres não podem reduzir suas experiências de opressão apenas ao seu gênero. A maioria de nós são trabalhadoras. Muitas de nós são mães, não-brancas, LGBTs e muito mais. Precisamos entender como todas essas coisas se amarram para combater a dominação em todas as esferas — e vencer.

 

Saiba mais em: https://jacobin.com.br/2022/04/as-armadilhas-do-feminismo-radical/

 

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