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As novas encruzilhadas da América Latina

 

Movimentos populares na Bolívia

A situação regional é marcada pelo cenário traumático gerado pela pandemia. A América Latina tem sido um dos epicentros internacionais da infeção, com dois países com o maior número de mortes por milhão de habitantes. O perigo de enfrentar uma segunda vaga de Covid-19 com poucas vacinas começa agora a surgir.

O coronavírus espalhou-se num terreno fértil para a explosão dos contágios, entre setores empobrecidos e alojados em habitações sem água corrente. A sobrelotação tornou impossível satisfazer os requisitos mínimos do distanciamento social e verificaram-se cenários dantescos de venda de oxigénio, hospitais sobrelotados e falta de camas.

Este impacto foi mais devastador nos países afetados pelo desmantelamento dos sistemas públicos de saúde. No Peru, os testes foram totalmente ineficazes devido à ausência de cuidados primários para as pessoas infetadas. O país mais elogiado pelo neoliberalismo lidera a percentagem de vítimas fatais.

O negacionismo criminoso de Bolsonaro multiplicou o número de mortes no Brasil. O alucinado presidente andou pelas praias a fazer discursos contra o distanciamento social, enquanto os mortos por asfixia se acumulavam nas unidades de cuidados intensivos. Bolsonaro dificultou todas as medidas de ajuda e permitiu que a doença se disseminasse descontroladamente entre os estratos de rendimento mais baixos.

Este extremismo impiedoso coexistiu na região com a improvisação, em todos os países que subestimaram a doença e introduziram quarentenas tardias ou ineficazes. Na Argentina, as políticas de proteção impediram a saturação dos hospitais, as mortes nas ruas e os enterros em valas comuns. Mas o número de mortos aumentou quando as salvaguardas se esgotaram. A campanha de erosão que a direita conduziu minou todos os cuidados que o governo não soube como manter.

Cuba mostrou como evitar estas hesitações. Com uma estratégia solidária de organização territorial, garantiu a prevenção e conseguiu uma baixa taxa de mortalidade estável.

O grande desafio agora é acelerar a vacinação para assegurar uma diminuição da infeção. Mas a América Latina não tem tido acesso às tão desejadas vacinas. No início da operação internacional contra a Covid-19, três quartos das vacinas foram administrados em 10 países avançados. Em 130 países com 2,5 mil milhões de pessoas, ainda não foram administradas quaisquer doses, e a América do Sul recebeu apenas 5% das vacinas distribuídas em todo o mundo.

Degradação em todas as áreas

O impacto económico e social da pandemia tem sido tão grave quanto o seu efeito sobre a saúde. Aprofundou a desigualdade e afetou gravemente os 50% da força de trabalho que sobrevive no setor informal, que se viram forçados a aumentar as suas dívidas familiares para contrariar a queda brutal dos rendimentos.

A desigualdade digital também aumentou, com consequências terríveis para os excluídos dos serviços básicos de comunicação. Apenas 4 em cada 10 lares da região possuem banda larga fixa. Esta lacuna impediu o ensino à distância de funcionar e levou a um ano escolar perdido para metade das crianças e 19% dos adolescentes. [1]

A pandemia também precipitou um colapso económico brutal. A contração estimada do PIB no ano passado variou entre 7,7% e 9,1%. A América Latina sofreu a maior contração global em termos de horas de trabalho. Esta queda foi o dobro da média internacional, acompanhada por uma diminuição dos rendimentos da mesma dimensão [2].

Dado a região ter vindo a passar por um período de estagnação de cinco anos, o coronavírus acentuou um enorme declínio económico. As previsões de há poucos meses apontavam para o desaparecimento de 2,7 milhões de empresas, a perda de 34 milhões de empregos e a incorporação de 45,4 milhões de novas pessoas pobres no universo dos desprotegidos. [3]

Para piorar a situação, os sinais de recuperação são fracos. A previsão de crescimento na região para 2021 (3,6%) é muito mais baixa do que a média mundial (5,2%). Se esta estimativa se confirmar, o PIB da América Latina não voltará ao seu nível pré-pandémico antes de 2024. Estes números decepcionantes dependerão, por sua vez, do fornecimento de vacinas e da continuidade de uma recuperação económica sem influência de novas estirpes de coronavírus.

Uma recuperação mais rápida terá de enfrentar o esgotamento das reservas fiscais e monetárias após um ano de grandes ajudas governamentais. É também pouco credível o reinício de um ciclo de endividamento massivo. O Fundo Monetário Internacional (FMI) continua a fazer discursos hipócritas de ajuda, mas na realidade limitou-se a implementar um alívio irrisório da dívida de alguns países ultra-empobrecidos. Repete a atitude que assumiu na crise de 2008-10, elogiando a regulação durante a tempestade e afinando as suas exigências tradicionais de ajustamento.

O coronavírus também não sensibilizou as empresas transnacionais que se dispensaram de qualquer dissimulação humanitária, continuaram a exigir pagamentos e a distribuir lucros. Os governos latino-americanos que assinaram tratados internacionais de “proteção do investimento” enfrentaram novas exigências de enormes somas durante a tragédia sanitária [4].

Assim, a Covid-19 agravou todos os desequilíbrios provocados por décadas de neoliberalismo, aposta no setor primário e endividamento, bem como acentuou a asfixia financeira, o desequilíbrio comercial, a diminuição da produção e a contração do poder de compra. Estas restrições só começarão a ser resolvidas com outro modelo e outra política.

Crise nas lideranças conservadoras

A pandemia tem sido utilizada pelos governos de direita para militarizar as suas administrações. Na Colômbia, Peru, Chile e Equador, foram instaurados estados de exceção com um protagonismo crescente das forças armadas. A repressão incluiu formas virulentas de violência estatal. O assassinato de uma jovem malabarista por carabineros no Chile e o massacre de jovens raparigas no Paraguai são exemplos recentes desta barbárie. Todas as semanas se ouve o nome de algum militante social colombiano morto pelas forças paramilitares.

Os governos da restauração conservadora estão determinados em estabelecer regimes autoritários. Não promovem as tiranias militares explícitas dos anos 70, mas sim formas disfarçadas de ditadura civil. Esta nova espécie do golpismo institucional tem um elevado nível de coordenação regional.

Na direita, a divisão entre correntes extremistas e moderadas persiste, mas ambos os grupos unem forças nos momentos decisivos e promovem uma estratégia comum de proscrição dos principais líderes do progressismo.

A direita utiliza os dispositivos do lawfare para desqualificar os adversários e capturar os governos. Obstruiu as candidaturas de Rafael Correa no Equador e Evo Morales na Bolívia alargando a outros países o modo de atuação utilizado para o afastamento de Lula no Brasil, e coordenou golpes parlamentares, judiciais e mediáticos para afastar os adversários, em operações que tentaram invalidar o mandato de AMLO no México ou de Cristina Kirchner na Argentina [5].

A fraude funciona como um complemento a esta proscrição. Está a ser utilizada na América Central, falhou na Bolívia e foi imaginada no Chile para manipular a Constituição. Com mecanismos equivalentes, numerosas mudanças foram consumadas no Peru face a cada colapso do sistema político.

Estas operações de constrangimento do progressismo têm o apoio explícito das forças armadas. Na Bolívia o golpe militar voltou a acontecer e no Brasil ficou a conhecer-se os detalhes da insurreição que a liderança militar estava a preparar, caso Lula participasse na corrida presidencial.

No Brasil verificou-se também a participação da classe judicial e dos meios de comunicação hegemónicos no golpe. O comportamento do juiz Sérgio Moro foi tão descarado como as mentiras espalhadas pela rede Globo. Os principais meios de comunicação assumiram uma importância sem precedentes na definição da agenda das classes dominantes em toda a região.

A embaixada dos Estados Unidos também mantém a sua tradicional importância na arquitetura das conspirações. Os EUA apoiaram diretamente o golpe na Bolívia e estão atualmente a intervir no Equador para colocar o seu candidato na presidência.

Para além disto a direita também ressuscitou os discursos primitivos e campanhas delirantes contra o comunismo, por exemplo alertando contra conspirações fantasiosas chinesas e denunciando ocultos objetivos socialistas em figuras bem conhecidas do establishment.

A ideologia conservadora conta com o importante apoio das igrejas evangélicas que se expandiram lutando contra as variantes contestatárias do cristianismo (por exemplo, a teologia da libertação). Entrincheiraram-se em campanhas contra o aborto, incorporando todos os mitos do neoliberalismo. Patrocinam presidentes, ministros e deputados e conquistaram uma enorme influência ao substituírem o Estado na ajuda aos mais desprotegidos [6].

Mas o projeto conservador de regresso ao poder que sucedeu ao ciclo progressista encontra-se afetado pela erosão de que sofrem as suas principais figuras. Sebastián Piñera governa quase sozinho, Jeanine Añez tenta escapar aos tribunais, Álvaro Uribe passou várias semanas em prisão domiciliária e Lenin Moreno está a fazer as malas. Infortúnio semelhante é vivido por Juan Guaidó – que ficou sem cúmplices – ou Mauricio Macri que fantasia em solidão sobre um regresso improvável.

As derrotas sofridas pela direita na última ronda de eleições (Argentina, México, Brasil, Chile, Bolívia) confirmam o seu momento difícil. No Equador, Guillermo Lasso perdeu recentemente metade dos votos recolhidos na eleição anterior.

Mas esta crise da direita não é sinónimo de declínio do neoliberalismo, modelo que persiste com experiências mais devastadoras. Os seus gestores estão a promover a “doutrina do choque” para implementar, no período pós-pandémico, novas políticas de privatização, liberalização do comércio e desregulamentação laboral. A experiência de 2009 confirma que o neoliberalismo não desaparecerá pela mera presença da crise ou pela crescente regulação do Estado. O seu afastamento exige uma mobilização popular.

A curto prazo, a continuidade da onda conservadora de regresso ao poder está sujeita ao destino das suas duas figuras principais. Na Colômbia, Iván Duque encontra-se num conflito com Álvaro Uribe que tem minado a homogeneidade do bloco de direita, tudo isto num contexto de ressurgimento da luta social e de consolidação da figura alternativa de Gustavo Petro.

No Brasil, o destino de Bolsonaro suscita previsões muito diferentes. Alguns analistas sublinham que continua a comandar o sistema político, salientando que mantém o controlo do Congresso e utiliza novas medidas assistencialistas nas políticas sociais para seduzir, com maior despesa pública, os eleitores desfavorecidos. Em sentido contrário, uma outra corrente de analistas realça a derrota esmagadora dos candidatos de ultradireita nas recentes eleições estaduais, salientando a indignação predominante quanto à gestão da pandemia e afirmando que o establishment está já a preparar uma substituição de centro-direita. Em qualquer caso, o nível de intervenção popular será determinante para o que acontecer no futuro.

Continuidades e eventuais mudanças com Biden

A derrota de Trump introduz um grau de dificuldade acrescida à direita da região, tendo as figuras retrógradas (Mike Pompeo, Elliott Abrams) que geriram as últimas conspirações na América Latina abandonado o Departamento de Estado norte-americano.

Bolsonaro ficou sem referência, Álvaro Duque tenta construir novas redes de apoio e o Grupo de Lima encontra-se à deriva. Já não será fácil repetir o desprezo imperial pela região, com provocações contra imigrantes ou desrespeito pelos compromissos na gestão de organizações multilaterais (BID).

Por outro lado, o assalto ao Capitólio, instigado por Trump, também afeta a direita latino-americana, pois pulverizou os argumentos utilizados por Washington para intervir na região e minou a autoridade do Departamento de Estado dos EUA para manter o lawfare. Além disso, o escandaloso processo eleitoral nos Estados Unidos também dificulta a contestação de eleições em países hostilizados. A crítica da OEA às eleições na Venezuela contrasta agora com o silêncio face à ocupação fascista do Congresso dos EUA.

Biden tentará ultrapassar estes obstáculos através de uma política de dominação com bons modos. Procurará enterrar a má educação e o desrespeito do seu antecessor, a fim de reatar alianças com o establishment latino-americano. Os seus antecedentes não deixam quaisquer dúvidas sobre a sua política externa: apoiou Margaret Thatcher na Guerra das Malvinas, apoiou os crimes do Plano Colômbia e ocultou as operações da DEA na América Central.

Durante a campanha eleitoral, Biden utilizou os mesmos slogans que Trump para seduzir os reacionários de Miami, tendo já afirmado que reconhecerá a presidência fantasma de Juan Guaidó na Venezuela e não se pronunciando sobre quando revogará a classificação de Cuba como um Estado terrorista.

Biden irá procurar artifícios para reduzir a presença da China na América Latina. Procurará encontrar parceiros regionais para as multinacionais norte-americanas que estão a deslocar fábricas da Ásia para locais próximos do mercado norte-americano. Tentará também formas de coordenação hemisférica para os novos negócios e empresas que a digitalização do trabalho faz prever.

O mito de que os Estados Unidos não estão interessados na América Latina foi desmentido pela própria administração de Trump, que promoveu 180 cimeiras empresariais e 160 acordos e trocas comerciais com grandes grupos capitalistas da região. Tanto os Republicanos como os Democratas aspiram a retomar o domínio de Washington sobre o continente, como um prelúdio para a desejada reconquista da primazia mundial. Esse objetivo exige, antes de mais, que se contenha a presença esmagadora da China na região.

Mas Biden está condicionado pelo fracasso do seu antecessor nesse objetivo. O gigante asiático consolidou os seus investimentos e exportações em todos os países, sem que os Estados Unidos conseguissem impedir essa avalanche. Até mesmo Bolsonaro – que inicialmente insinuou pretender um arrefecimento das relações com a nova potência – teve de recuar, sob pressão dos exportadores brasileiros.

Nem mesmo a assinatura do novo acordo de comércio livre com o México (T-MEC) enfraqueceu a presença chinesa. As empresas asiáticas continuam a fazer negócios na América Central e o lítio é a nova atividade em disputa na Bolívia, Chile e Argentina, constituindo um teste para ver se Biden consegue inverter as dificuldades atuais das empresas americanas. Mas a verdade é que todos os acordos que Washington prevê fazer dependerão do contexto político predominante.

 

Saiba mais em: https://iela.ufsc.br/noticia/novas-encruzilhadas-da-america-latina

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