Em dois meses, presidente chileno elevou salário mínimo e obteve conquistas no legislativo. Mas alta inflação herdada de Piñera abala sua popularidade. Etapa final da Constituição é decisiva para retomar esperanças. Oligarquias tentam sabotá-la
Por: Consuelo Ferrer | Tradução: Maurício Ayer
O dia 4 de maio foi crucial para o governo de Gabriel Boric, instalado em La Moneda há quase dois meses: nesse dia, quatro projetos emblemáticos de sua administração foram aprovados por um Congresso fragmentado, que foi difícil alinhar. Naquele dia, a Câmara dos Deputados aprovou o aumento do salário mínimo em US$ 60, diferentes comitês ratificaram o Acordo Escazú – um tratado ambiental que não foi assinado por Sebastián Piñera e que Boric promoveu em seus primeiros dias no cargo –, o Senado aprovou por unanimidade o projeto de lei para aumentar os recursos voltados à estabilização do preço do querosene no início da estação fria, e também ratificou a nomeação de Rodrigo Cid para a Televisão Nacional do Chile, permitindo que o canal tenham em sua direção, pela primeira vez, um jornalista com uma longa carreira na emissora pública.
Devido à magnitude dos projetos, ao inédito e contundente apoio alcançado no Congresso e ao simples fato da coincidência temporal – quatro projetos emblemáticos no mesmo dia –, as equipes de imprensa da administração Boric esperavam que, desta vez, os jornais lhes demonstrassem reconhecimento.
Mas as capas do dia seguinte não confirmaram essa expectativa: em El Mercurio, a principal manchete foi que o plenário da Convenção Constitucional havia aprovado “que os povos nativos têm direito ‘às suas terras’ e aos recursos encontrados neles”, e a segunda manchete foi uma pesquisa afirmando que “59% preferem que um comitê de especialistas elabore uma nova Constituição em vez de ratificar a que está sendo escrita pela Convenção”.
Efetivamente, não havia em todo o jornal qualquer menção ao que ocorreu no Congresso, algo que havia sido alcançado após intensas negociações lideradas pelo governo. A única nota que mencionou os movimentos no Parlamento foi uma entrevista com um deputado do Partido pela Democracia, um setor de centro-esquerda que fazia parte da antiga Nova Maioria, na qual ele afirmou que “a agenda fluiu” graças ao fato de que o ministro encarregado das relações com o legislativo e braço direito de Boric, Giorgio Jackson, estava “menos envolvido”.
O panorama em La Tercera, outro dos principais diários do país, era semelhante: a principal manchete referia-se às resoluções da Convenção sobre a restituição de terras aos povos indígenas. Também não houve relatos sobre o que havia acontecido no Congresso, embora houvesse conteúdo referente ao processo constituinte, com frases como “os arrependidos da Aprovação” e com “conselhos e críticas” da deputada do Partido Popular Espanhol, Cayetana Álvarez de Toledo, figura conhecida em seu país por seu questionamento ao feminismo e aos “movimentos identitários”. Houve, entretanto, uma nota com foco no presidente, na qual Boric advertiu, no início de sua viagem pela Região de Magallanes, sua terra natal, que todo o seu mandato “vai ser muito difícil”.
Os acertos despercebidos
Destas conquistas legislativas, o aumento do salário mínimo – que foi realizado em acordo com a Central Unitária dos Trabalhadores – e os recursos para estabilizar o preço do querosene fazem parte de um pacote mais amplo de projetos econômicos que o governo lançou em seus primeiros dias de governo. Outra iniciativa visa a aliviar os efeitos da inflação nos setores mais vulneráveis, um fenômeno que atingiu picos históricos no Chile – subiu para 10,5% em 12 meses, a primeira cifra de dois dígitos desde 1994 – e espera-se que continue aumentando. Este, para alguns analistas, é um dos fatores que complicam o governo mas que extrapolam sua área de ação, como é o caso da guerra na Ucrânia.
“A situação política e econômica atual é sem precedentes”, resume Claudia Heiss, professora do Instituto de Assuntos Públicos da Universidade do Chile e chefe do programa de Ciências Políticas. “A inflação se deve em parte aos enormes gastos públicos em 2021, o que era incomum para um governo de direita, especialmente depois da atitude mesquinha que teve em 2020 no momento mais difícil da pandemia, quando as pessoas não tinham nada para comer e, apesar disso, não receberam ajudas fiscais. A partir daí, eles passaram a fazer em 2021 programas de gastos públicos incomuns, totalmente contrários a todas as suas convicções e à realidade fiscal”, observa ela. De acordo com o Conselho Fiscal Autônomo, a ajuda potencial entre 2020 e 2021 totalizou US$ 38 bilhões. A isto se somam as retiradas dos fundos de pensão aprovadas pelo Parlamento, que ultrapassaram US$ 50 bilhões. Como parâmetro, em um ano normal o fisco chileno gastava cerca de US$ 70 bilhões.
“É verdade que foi um momento extraordinário devido à pandemia – embora em 2021 a necessidade fosse provavelmente menor que em 2020 –, mas também é verdade que foi um momento eleitoral e isso teve claramente um efeito sobre os auxílios econômicos. O governo Piñera ‘aqueceu muito’ a economia e por isso este governo, que vem com um discurso social e um programa de esquerda, teve que frear os gastos públicos, o que em si é uma situação muito estranha”, explica Heiss. Apesar disso, a pesquisadora assegura que “a gestão econômica aplicada pelo governo de Boric foi notável” e destaca, entre as conquistas, o freio às retiradas dos fundos de pensão, cuja quinta versão, muito mais restritiva que as originais, foi votada no Congresso em abril e rejeitada.
Para Heiss, a equipe econômica de Boric, liderada pelo ministro mais bem avaliado do gabinete, Mario Marcel, “tem sido eficaz em crescer em direção ao centro com políticas de responsabilidade fiscal” e também “em explicar que fenômenos como a inflação são, em última instância, prejudiciais para as pessoas mais pobres”. “Eles fizeram um esforço para que isso fosse compreendido e têm credibilidade junto ao presidente”, assegurou. Como prova do que ela descreve, há um vídeo: Boric está passeando por Santiago no final de uma tarde e um grupo de pessoas lhe pede uma foto. Depois de tirá-la, ao sair, alguém lhe diz para apoiar a política das retiradas, o que faz que o presidente se volte, aproxime-se deles e comece a falar sobre o que significa a inflação.
A conquista é especialmente significativa porque foi precisamente a questão econômica que seus detratores enfatizaram durante a campanha presidencial. “Diziam que era um grupo de pessoas irresponsáveis, ‘crianças’ que nunca tinham ganhado seu pão nem tinham que sustentar suas famílias, mas todo esse argumento de irresponsabilidade na gestão econômica ficou no passado e hoje este aspecto é uma força [do governo]”, acrescenta a professora.
Além das questões econômicas, o governo de Boric deu importantes sinais em termos de igualdade de gênero – apresentaram um projeto de lei para garantir o pagamento efetivo da pensão alimentícia por pais devedores – e cumpriu algumas de suas promessas centrais de campanha, como a retirada das ações judiciais com base na Lei de Segurança do Estado – uma das ferramentas mais extremas a que o poder executivo pode recorrer – que o governo Piñera havia apresentado contra os chamados “prisioneiros do ‘estallido’ [ou da explosão social]”.
Expectativas altas, queda alta
Apesar dos avanços que alguns analistas listam, a chegada de Boric ao governo tem sido complexa. Segundo as pesquisas, que no Chile passam por um momento complicado em termos de previsibilidade, sua popularidade vem caindo: de acordo com a Cadem, em 18 de março ele tinha uma taxa de aprovação de 50% e uma taxa de rejeição de 20%, e em 8 de maio o primeiro indicador tinha caído para 38% e o segundo, subido para 53%. De todo o gabinete, sua antiga chefe de campanha e agora ministra do Interior Izkia Siches tem o maior índice de desaprovação, com 63%.
Embora a queda tenha sido notória, de acordo com especialistas em pesquisa, este é um fenômeno comum no momento da instalação de um novo governo, principalmente devido às expectativas que os cidadãos acumulam em relação às mudanças de comando. Neste caso, com a partida de um governo que tinha que lidar com a agitação social e a chegada de um com figuras jovens cuja premissa era a renovação da política, as expectativas eram particularmente altas. Para Roberto Izikson, gerente de Assuntos Públicos e Estudos Quantitativos da Cadem, a queda pode ser explicada por quatro fatores principais.
O primeiro tem a ver com o fato de que a ampla ajuda econômica fornecida pelo governo Piñera em 2021 foi interrompida e também foram freadas as retiradas dos fundos de pensão. “As expectativas [econômicas] são negativas e a inflação está atingindo duramente o Chile. O governo não é o responsável, mas está preso entre a cruz e a espada no momento em que se opõe às retiradas, embora tenha sido a favor das anteriores”, disse ele a Las Últimas Noticias.
O segundo, em sua opinião, tem a ver com a ordem pública, uma área que tem pelo menos duas frentes principais no Chile: os excessos e a delinquência associados aos protestos que vieram com o “estallido” – que muitos pensavam que terminariam quando o governo de direita deixasse La Moneda, mas que continuam em alguns lugares emblemáticos – e a violência vivida na região de La Araucanía, que começou há décadas devido ao confronto entre o povo mapuche e o Estado chileno, mas onde problemas externos, como o narcotráfico, também foram se instalando. Nessa região, têm sido abundantes os ataques incendiários, os saques e outros episódios violentos. No início do mandato presidencial, Siches viajou para a área para estabelecer uma política de diálogo, mas teve que se retirar depois que uma série de tiros foram disparados em sua chegada. Pela mesma razão, o governo teve que lidar com greves e manifestações de caminhoneiros.
Para Izikson, o governo também foi afetado por erros cometidos pela ministra do Interior. Um deles foi em 6 de abril, quando, perante a Comissão de Segurança Cidadã da Câmara dos Deputados, Siches falou de um avião que partiu para a Venezuela com cidadãos expulsos e garantiu que “voltou com as mesmas pessoas”, fato negado pela administração de Piñera e pelo qual a ministra teve que pedir desculpas – e foi repreendida por Boric. Posteriormente, o ministério abriu uma investigação sobre o vice-diretor do Serviço Nacional de Migração, que teria fornecido essa informação a Siches em uma reunião dedicada à passagem de informações de um governo para o outro.
Izikson também identifica entre as razões da queda de popularidade de Boric a composição do gabinete, formado em sua maioria por jovens, o que faria com que os cidadãos “acima de 45 anos vejam o governo com distância”. Sobre este ponto há opiniões divergentes: para a professora Heiss, as nomeações foram um ponto forte do Executivo devido à alta qualificação dos/as titulares para os cargos que assumiram: uma especialista em mudanças climáticas está a cargo do Ministério do Meio Ambiente, um especialista em mobilidade no Ministério dos Transportes, o ex-vice-reitor de Pesquisa e Desenvolvimento da principal universidade pública do país é agora Ministro da Ciência e Tecnologia. Também houve nomeações simbólicas fora de La Moneda: a representação proporcional de gênero nos conselhos de administração das empresas públicas mudou significativamente graças ao novo governo. Na Codelco, a empresa estatal de mineração, o número de mulheres passou de uma para três.
O fator constituinte
O quarto ponto destacado pelo gerente da Cadem é aquele que se previa como crítico para qualquer governo que assumisse La Moneda em março: a sobreposição da nova administração com o processo constituinte e, no caso de Boric, o fato de seu projeto estar simbolicamente entrelaçado com o plebiscito. Vários analistas reconheceram que ele começou a surgir como candidato presidencial quando assinou o projeto para viabilizar um processo que levaria à elaboração de uma nova Constituição, algo que naquele momento, em 2019, seu partido não apoiava devido às características do acordo. Ele foi, portanto, um rosto associado à intenção de renovar a carta magna.
O caminho para a nova Constituição – que parecia pavimentado quando o “estallido social” explodiu em 2019 e quando essa opção foi aprovada por 78% em 2020 – hoje aparece como uma incógnita e se prevê um resultado “apertado”, em meio a pesquisas que mostram a Rejeição como uma alternativa crescente e uma cobertura midiática dominada pelos grandes grupos, que em seus editoriais já se declararam contra o processo constituinte ou o trabalho da Convenção.
Para a Convenção Constitucional, restam menos de duas semanas para aprovar as regras, depois vem uma etapa de harmonização do texto, que finalmente será votado em um referendo com votação obrigatória – o Chile tem tido votação voluntária desde 2012 – em 4 de setembro de 2022. A campanha, prevê-se, será dura, e para ela o governo estará relativamente de mãos atadas: a Controladoria Geral da República se pronunciou e o Executivo terá a obrigação de ser neutro na eleição, o que significa que não poderá alocar recursos públicos ou horas de trabalho para promover qualquer uma das duas opções.
Boric disse que seu dever será garantir uma campanha informada e que “a Constituição não é um capricho do governo”, mas o cenário parece complexo. Em meio à incerteza, o presidente ainda tem uma garantia: ele continua a receber muitos sinais de afeto nas ruas. De fato, seu governo pouco a pouco fez retroceder as cercas que separavam La Moneda dessa alameda que, em seu discurso de vitória, um emocionado Gabriel Boric prometeu abrir.
Veja em: https://outraspalavras.net/estadoemdisputa/chileo-conturbado-inicio-de-boric/
Comente aqui