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As veias da África, abertas da novo

O “século XXI africano” era um mito. O boom das commodities passou e os lucros estão no exterior. Juros internacionais em alta elevam o peso da dívida e a inflação de alimentos. Há saídas. Exigem coragem para desafiar a ortodoxia econômica

Por: Ndongo Samba Sylla | Tradução: Antonio Martins

A contínua pilhagem dos recursos naturais da África, drenados pela fuga de capitais, está começando outra vez. Mais nações africanas enfrentam recessões prolongadas em meio à crescente pressão da dívida, como se alguém esfregasse sal em feridas profundas do passado. Agora com muito menos divisas, receitas fiscais e espaço político para enfrentar choques externos, muitos governos africanos acreditam que têm pouca escolha a não ser gastar menos, ou fazer novos empréstimos em moedas estrangeiras.

A maioria dos países africanos está lutando para lidar com crises alimentares e energéticas, inflação, taxas de juros mais altas, eventos climáticos adversos, menos sistemas de proteção social e de saúde. Os protestos estão aumentando, devido à deterioração das condições, apesar de alguns aumentos nos preços das commodities africanas.

Hemorragia econômica

Após “décadas perdidas” do final dos anos 1970, a África tornou-se uma das regiões de crescimento mais rápido do mundo no início do século XXI. O alívio da dívida, um boom no preço das matérias-primas e outros fatores pareciam apoiar a narrativa enganosa da “ascensão da África”.

Mas ao invés da transformação econômica há muito esperada, o continente tem visto crescimento sem emprego, o avanço das desigualdades econômicas e mais transferências de recursos para o exterior. A fuga de capitais – recursos saqueados através de bancos estrangeiros – tem sangrado a África

De acordo com o Painel de Alto Nível sobre Fluxos Financeiros Ilícitos da África, o continente está perdendo mais de 50 bilhões de dólares anualmente. Isto se deve principalmente ao que é chamado eufemisticamente de “erro de faturamento comercial”. As exportações são subfaturamento; e as importações, superfaturadas, o que permite transferir moedas fortes ao exterior sem que haja entrada correspondente de produtos.

As empresas transnacionais (TNCs) e as redes criminosas são responsáveis por grande parte deste dreno de excedentes econômicos africanos. Os países ricos em recursos são mais vulneráveis à pilhagem, especialmente onde a entrada e saída de capitais foram liberalizadas.

Programas de ajuste estrutural (SAPs, em inglês) impostos externamente, após as crises de dívida soberana do início dos anos 1980, forçaram as economias africanas a se abrirem ainda mais – o que teve enorme custo econômico. Os SAPs tornaram os países ainda mais dependentes das importações (em especial de alimentos) e ao mesmo tempo aumentaram sua vulnerabilidade aos choques de preços das commodities e aos fluxos de liquidez global.

O economista Leonce Ndikumana, do Burundi, e seus colegas estimam que mais de 55% da fuga de capitalis – definida como aquisição ou transferência ilegal de ativos – da África provêm de nações ricas em petróleo, sendo que só a Nigéria perdeu US$ 467 bilhões entre 1970 e 2018. Ndikumana é atualmente membro do Comitê de Políticas de Desenvolvimento das Nações Unidas e autor de diversos livros sobre a sangria de recursos na África.

Durante o mesmo período, ele estima, Angola perdeu 103 bilhões de dólares. Sua taxa de pobreza aumentou de 34% para 52% na última década, já que o número de pobres mais do que dobrou – de 7,5 para 16 milhões.

Os lucros do petróleo foram desviados pelas corporações transnacionais e pela elite angolana. Abusando de sua influência, a filha do ex-presidente, Isabel dos Santos, adquiriu uma enorme riqueza. Um relatório encontrou mais de 400 empresas em seu império comercial, incluindo muitas em paraísos fiscais.

De 1970 a 2018, a Costa do Marfim perdeu 55 bilhões de dólares devido à fuga de capitais. Embora produza 40% do cacau mundial, recebe apenas 7% dos lucros, o que achata as remunerações dos agricultores. A maior parte da renda do cacau vai para as multinacionais, políticos e seus assessores.

O gigante da mineração África do Sul (SA) perdeu 329 bilhões de dólares para a fuga de capitais nas últimas cinco décadas. Super e sufaturamento, além de outras formas de desvio de recursos públicos e evasão fiscal engordaram a riqueza privada escondida em centros financeiros offshore e paraísos fiscais.

A “austeridade” fiscal retardou o crescimento do emprego e a redução da pobreza no “país mais desigual do mundo”. Na África do Sul, os 10% mais ricos possuem mais da metade da riqueza do país, enquanto os 10% mais pobres possuem menos de 1%.

Roubo de recursos e dívidas

Com este padrão de pilhagem, países africanos ricos em recursos – que poderiam ter acelerado o desenvolvimento durante o boom das commodities – agora enfrentam o problema da dívida, desvalorização das moedas e a inflação importada, à medida em que os bancos centrais elevam as taxas de juros internacionais.

default de Zâmbia, que deixou de pagar as prestações de sua dívida externa no final de 2020, fez manchetes. Mas a captura estrangeira da maioria das receitas de exportação de cobre do país não é reconhecida. Entre 2000 e 2020, a remessa ao exterior das rendas sobre o investimento estrangeiro direto em Zâmbia foi o dobro dos juros da dívida pública ou garantida pelo Estado. Em 2021, o déficit na conta de capitais da balança de pagamentos do Zâmbia era de 12,5% do PIB.

Como os pagamentos de juros da dívida externa pública chegaram a “apenas” 3,5% do PIB, a maior parte deste déficit (9% do PIB) foi devida a remessas de lucros e dividendos, bem como pagamentos de juros da dívida externa privada.

Para o FMI, Banco Mundial e as “nações credoras”, a “reestruturação” da dívida está condicionada à continuidade de tal pilhagem. O agravamento do endividamento externo dos países africanos deve-se em parte à falta de controle sobre as receitas de exportação controladas pelas transnacionais, com o apoio da elite africana.

A pilhagem de recursos por meio de fuga de capitais leva ao desespero da dívida externa. Invariavelmente, o FMI exige “austeridade” governamental e abertura das economias africanas aos interesses das transnacionais. Assim, completa-se um círculo – e, de fato, é vicioso…

A pilhagem da riqueza da África remonta aos tempos coloniais, e mesmo antes, com o comércio atlântico de africanos escravizados. Agora, o processo é viabilizado pela ação de interesses transnacionais que criam as regras e respectivas brechas. O trabalho envolve banqueiros, contadores, advogados, gerentes de investimentos, auditores e outros atravessadores. Assim, as origens da riqueza dos “indivíduos muito bem relacionados”, das corporações e dos políticos são disfarçadas, e sua transferência para o exterior “lavada”.

O que pode ser feito?

A fuga de capitais não se deve principalmente a escolhas “normais” de portfólio de investimentos por parte de especuladores africanos. Por isso, é improvável que taxas de juros mais altas, oferecidas pelos Estados, revertam o processo. Pior ainda: tais medidas políticas desestimulam os investimentos domésticos necessários.

Além de aplicar controles de capital eficientes, é importante fortalecer as capacidades dos órgãos nacionais especializados — como alfândegas e órgãos de supervisão financeira e anticorrupção.

Os governos africanos precisam de regras, estruturas legais e instituições mais fortes para conter a corrupção e garantir uma gestão mais eficaz dos recursos naturais. Por exemplo, os tratados bilaterais de investimento e códigos de investimento precisam ser revistas; e os contratos de petróleo, gás, mineração e infra-estrutura, renegociados

Os registros de todos os investimentos em indústrias extrativas, o pagamento de impostos por todos os envolvidos e o processo público devem ser abertos, transparentes e responsáveis. A punição de crimes econômicos deve ser rigorosamente aplicada, com penas dissuasivas.

O público em geral – especialmente organizações da sociedade civil, autoridades locais e comunidades impactadas – também deve saber quem e o que está envolvido nas indústrias extrativas.

Somente um público informado, capaz de saber o quanto é extraído e exportado; por quem; que receita os governos obtêm e seus efeitos sociais e ambientais, pode manter as corporações e os governos sob controle.

Melhorar a transparência do comércio internacional e das finanças é essencial. Isto requer o fim do sigilo bancário e uma melhor regulamentação das corporações transnacionais, para refrear as fraudes no faturamento comercial e os preços de transferência, que abrem as portas para o roubo e pilhagem de recursos.

A retórica da OCDE culpa há muito tempo a fuga de capitais para paraísos fiscais offshore em ilhas tropicais remotas. Mas os paraísos fiscais em países ricos – como Reino Unido, EUA, Suíça, Holanda, Cingapura e outros – são os maiores e mais movimentados.

Parar a a pilhagem de recursos africanos negando cobertura para transferências ilícitas deveria ser uma obrigação dos países ricos. O intercâmbio automático de informações relacionadas a impostos deve se tornar verdadeiramente universal, para acabar com a cobrança indevida do comércio, abusos nos preços de transferência e ocultação de riqueza roubada no exterior.

A tributação unitária das empresas transnacionais pode ajudar a acabar com os abusos fiscais, incluindo a evasão e a fraude. Mas as propostas da Estrutura Inclusiva da OCDE favorecem seus próprios governos e interesses corporativos.

A África não é inerentemente “pobre”. Ao contrário, tem sido empobrecida por fraudes e pilhagens que levam à transferência de recursos para o exterior. Um esforço sério para acabar com isso exige o reconhecimento de todas as responsabilidades e culpabilidades, nacionais e internacionais.

As veias da África estão abertas. O sangramento dos séculos precisa parar.

 

Veja em: https://outraspalavras.net/desigualdades-mundo/veias-da-africa-abertas-da-novo/

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