Clipping

Modernidade eternizada

Em um primeiro olhar, O despertar de tudo: uma nova história da humanidade, de Graeber e Wengrow, é um rico volume de achados da antropologia e da arqueologia que nasce fomentando um debate profundo sobre de onde viemos e para onde pretendemos ir, desafiando os socialistas neste século 21 a manter a cabeça aberta para revisar permanentemente o que sabemos sobre a história da humanidade com base na ciência.

Por: Tiago Camarinha Lopes | Créditos da foto: Flickr. Arte de Banksy

O Despertar de Tudo é uma obra provocante que reforça a necessidade de se abandonar o simplismo e abraçar a complexidade ao descrever a vastidão colorida da história da humanidade. Trata-se de um compilado e de esforço de síntese sobre os achados mais recentes da antropologia e da arqueologia, que nasce fomentando um debate profundo sobre de onde viemos e para onde pretendemos ir. Contudo, antes de se posicionar com firmeza em relação à tese do livro, é necessário ter uma ideia global do material apresentado, que é o objetivo principal desta resenha, onde a crítica é feita tangencialmente, deixando para outra ocasião uma elaboração mais ampla, que localize as correntes interpretativas da obra.

Tudo começou de modo casual, com uma troca de emails entre os dois autores no começo dos anos 2010 sobre como a narrativa tradicional sobre a história da humanidade, apesar de ser amplamente rejeitada pelos experts, continuava firme e forte no âmbito da divulgação científica. Insatisfeitos com essa situação, David Graeber e David Wengrow perceberam que essa comunicação acumulava um material valioso capaz de colocar em questão o mito explicativo de justificativa para a desigualdade social entre os seres humanos e a origem do ordenamento social hierárquico, corporificado no que se designa como “Estado”. O registro virtual da conversa, acompanhado do material bibliográfico e empírico correspondente, se transformou por fim em um livro coerente e relativamente extenso.

Nesse aspecto, o projeto pode ser considerado um sucesso. O volume de material empírico e a maneira como ele é apresentado apontam para um processo tão rico e variado das trajetórias das incontáveis sociedades humanas em todos os continentes, ao longo de um período tão longo, que torna-se impossível não repensar o padrão narrativo unidirecional de formação do mundo moderno. Mesmo que isso não seja original – algo que os próprios autores explicitamente reconhecem ao comentarem, por exemplo, o conceito de heterarquia no fim do texto (p. 545) – é a primeira vez que esse material é exposto ao grande público sem ser simplificado. Contudo, o livro não consegue ir além da crítica negativa – ou seja, trata-se de uma obra de desconstrução da linha argumentativa mainstream sobre a história da humanidade, mas que não propõe uma alternativa explicativa para a origem do Estado, ou como os autores escrevem repetidamente, da desigualdade social.

Aliás, ao longo dos três primeiros capítulos percebe-se que a pesquisa originalmente perseguia essa que sempre foi uma das grandes perguntas colocadas no debate público desde a ascensão do tempo moderno: qual é a origem da desigualdade? Os autores explicam que desistiram cedo de buscar uma resposta para isso e que no lugar, começaram a elaborar uma outra pergunta: Como foi que os seres humanos ficaram presos em estruturas sociais hierárquicas, uma vez que são incontáveis os casos e experiências de sociedades onde esse tipo de situação não se colocava?

Os 12 capítulos do livro estruturam um arco de apresentação em que essa pergunta fundamental é atacada de modo mais intenso no começo e no fim (Capítulos 1 e 2 e depois nos Capítulos 10, 11 e 12). Os capítulos intermediários em que casos concretos de dezenas de sociedades não-hierárquicas são analisados e descritos detalhadamente requerem paciência e são um tanto quanto digressivos, embora haja menções pontuais à pergunta fundamental e que remete à principal tese do livro: a de que, ao contrário do que se acredita, é possível que uma sociedade de grande escala – ou seja, composta por uma população não da ordem de poucas dezenas, mas de dezenas de milhares – organize-se sem uma estrutura de dominação hierárquica. Para Graeber e Wengrow, não é verdade que formações sociais muito populosas precisam necessariamente de um Estado para manterem seu funcionamento.

Infância da humanidade

OCapítulo 1, intitulado Adeus à infância da humanidade, explica como se formou a narrativa convencional, que eles chamam de “estudo evolucionário da história” (p. 27). Resumidamente, na história contada por essa abordagem os seres humanos se organizam em estruturas sociais ordenadas sequencialmente, como se as sociedades passassem por etapas que poderiam ser enfileiradas tanto cronologicamente quanto em termos de superioridade e inferioridade. Assim, a história da humanidade começaria com uma sociedade muito simples de caçadores-coletores, formada por um grupo pequeno de indivíduos, e progrediria para etapas mais avançadas onde milhões e até bilhões de seres humanos pudessem viver sob um mesmo sistema sócio-econômico e político. Nestes termos, a sociedade moderna simbolizaria a maturidade da humanidade, enquanto as sociedades ditas pré-modernas, arcaicas, ou como quer que sejam chamadas, seriam uma representação da humanidade em seus estágios de infância. Na visão convencional, todos os males da modernidade são a contrapartida do processo natural de amadurecimento e superação da vida de criança.

Segundo Graeber e Wengrow, essa interpretação deriva de uma combinação do pensamento político de dois autores fundamentais do mundo moderno: Thomas Hobbes e Jean-Jacques Rousseau. Enquanto o primeiro argumenta que a humanidade saiu da guerra de todos contra todos para entrar na vida civilizada, garantida por um Estado fortíssimo que anula aquela vida selvagem, “solitária, pobre, sórdida, brutal e curta” (p. 17), o segundo explica que a humanidade abandonou o estilo de vida feliz em pequenos grupos igualitários para adentrar na trajetória da infelicidade de sistemas sociais gigantescos, cheio de leis, regras e, principalmente, desigualdade. Apesar de Hobbes e Rousseau serem tidos como antípodas na discussão sobre a origem do Estado, eles se unem no sentido de que ambos concebem a transição do estado de natureza para o estado social como um rito de passagem para a vida adulta.

No Capítulo 2, Liberdade perversa, Graeber e Wengrow, ao explicarem que não concordam com a dicotomia Hobbes/Rousseau, muito menos com uma possível síntese, apresentam um terceiro filósofo político de enorme importância no livro. Trata-se de Kondiaronk, um estadista e estrategista da Confederação Wendat, que pretendia formar uma aliança indígena abrangente para deter o avanço dos colonizadores na região dos grandes lagos na América do Norte no final do século 17. Com base na publicação de estudiosos indígenas recentes, que pesquisaram mais detalhadamente a vida e atuação de Kondiaronk, Graeber e Wengrow destacam sua estratégia de contenção ao avanço colonizador no âmbito da luta ideológica. Estando em intensa comunicação diplomática com os europeus, Kondiaronk teceu críticas sofisticadas sobre seus costumes, religião, política e economia. Esse estilo de crítica indígena, que enfatiza ser o dinheiro a raiz de todos os problemas, ganhou enorme impulso dentro do continente europeu ao longo do século 18 por meio de diversas obras literárias que narravam artisticamente o choque entre a civilização dos “selvagens” e a dos europeus. Assim, a autocrítica iluminista acerca das contradições da modernidade parece ter sido fortemente influenciada e orientada pela sabedoria política e filosófica dos colonizados. Ou seja: para Graeber e Wengrow, o pensamento social que se desenvolve no século 19 na Europa como crítica ao capitalismo poderia ser ele mesmo interpretado como um dos efeitos concretos da estratégia de defesa dos indígenas contra as forças colonizadoras.

Até determinado momento, portanto, não havia dúvidas de que existia “vida inteligente” fora da Europa. Os povos se confrontavam como iguais, se levavam a sério diplomaticamente, ao menos no plano intelectual. Contudo, segundo Graeber e Wengrow, houve uma reviravolta crucial que definiu o lance de vitória ideológica para os colonizadores.

Anne Robert Jacques Turgot virou a crítica indígena de ponta-cabeça ao argumentar que todos os defeitos da sociedade europeia não se devem à sua imbecilidade quanto ao domínio absoluto do dinheiro e que isso gera inúmeras bizarrices, como por exemplo, um reino que se gaba de ser rico enquanto sua população passa necessidades. Na verdade, esses problemas relacionados com a desigualdade seriam fruto de maturidade e superioridade de uma sociedade em termos de sua capacidade de alterar o mundo natural, algo que está estreitamente relacionado com a tecnologia no sentido puramente material. A partir daí, emergiu a noção de estágios de desenvolvimento econômico, que parte de grupos nômades caçadores-coletores, com forças produtivas fracas/rudimentares/débeis e progride para grupos sociais sedentários, com base numa certa divisão do trabalho, agricultura, enorme produção com ferramentas e equipamentos fortes/sofisticados/robustos. Esse padrão foi então incorporado por Adam Smith (p. 78) e acabou se disseminando a narrativa convencional que colocava a moderna sociedade burguesa no ápice de um processo evolucionário unidirecional.

Em consequência da intervenção de Turgot nasceu o mito do selvagem “idiota” em adendo ao selvagem “animal” de Hobbes e ao selvagem “angelical” de Rousseau. O preço da civilização, do Estado, das estruturas de poder hierárquicas seria a perda desse patamar inicial, que se refere ao estágio infantil, imaturo da humanidade.

O mote do livro é combater essa perspectiva, demonstrando que arquiteturas sociais variadas, não alinhadas com esse padrão de justificativa para a emergência do Estado, são criações políticas conscientes e que portanto devem ser vistas também como sociedades “de gente grande”.

Escolhas humanas

Ocapítulo 3, Descongelando a Era Glacial, problematiza a questão sobre as “origens humanas” no sentido de traçar uma linha de separação entre o humano e o animal. Este é um capítulo curioso, no sentido em que se percebe o esforço dos autores em se livrarem do problema sobre a origem da desigualdade, que provavelmente ainda pautava o intercâmbio de ideias. O importante aqui é a justificativa apresentada para o recorte temporal da história da humanidade como eles pretendem contar. A ideia central é que, para responder à questão que de fato interessa (por que ficamos presos em estruturas hierárquicas?), não é útil olhar tão fundo no passado. Quando se pensa numa escala da ordem de 3 milhões de anos fica evidente que não existe um único ponto de emergência do que chamamos de “cultura”. Os dados indicam para a coexistência de diferentes Homo, com enorme diversidade física, mas principalmente social e cultural. Como eram exatamente essas sociedades? Segundo Graeber e Wengrow, não sabemos: a profundidade do momento em que ocorre a “transformação do macaco em ser humano” é inalcançável para o analista da cultura humana. O que se sabe é que, desde essa etapa muito antiga, onde a fronteira entre a formação social animal e humana é turva, já existem várias formações sociais distintas e que, portanto, “não existe uma forma “original” de sociedade humana” (p. 99-100). Nesse sentido, perguntar sobre a origem do ser humano como ente exclusivamente cultural e social é despropositado: na verdade, quando entra em cena o cientista social, em substituição ao biólogo, a diversidade, variedade e complexidade das estruturas de vida em grupo já são tão grandes que deveríamos falar em múltiplos “despertares”. Em outras palavras: existem diversos pontos de origens da cultura. As primeiras sociedades sobre as quais eles acham possível de fato investigar com base em evidência direta existiram há relativamente pouco tempo: apenas 100 mil anos atrás (p. 100). E, desde esse instante, já temos uma dinâmica de construção deliberada das relações sociais. Isto quer dizer que, dentro deste quadro cronológico, todas as sociedades humanas são construções que não se baseiam na repetição passiva do passado, mas são arquiteturas elaboradas por experimentação, invenção e modificação ativa. Há uma definição apriorística, oriunda do recorte temporal, que separa o mundo animal do mundo humano, sem possibilidade de interseção. Essa escolha tem repercussões relevantes, como se verá.

O capítulo 4, Pessoas Livres, continua levantando a mesma questão que substituiu a busca pela origem da desigualdade: como as pessoas deixaram o estilo de vida livre e socialmente criativo para ficarem presas em estruturas sociais de controle hierárquico? Mas agora, o debate filosófico político de fundo começa a dar mais espaço à descrição dos dados arqueológicos e antropológicos mais recentes. Segundo Graeber e Wengrow, a noção tradicional de que a Revolução Neolítica (ou Revolução Agrícola) possibilitou a produção de um excedente que resolvia então o cenário de escassez em que viviam os bandos caçadores-coletores é totalmente equivocada. As pessoas não viviam no limiar da sobrevivência, usando todo seu tempo e energia para encontrar alimento e abrigo, mas tinham um raio de liberdade material mais que suficiente para “fofocar, bater boca, se entreter com jogos, dançar ou viajar por lazer”, “mesmo em ambientes muito inóspitos como os desertos da Namíbia ou do Botswana (…)” (p. 158). Fora da África também foram encontrados sítios arqueológicos evidenciando sociedades que não constituíam sua produção numa agricultura fixa e de larga escala, mas que adotavam uma interação mutante com o meio ambiente, cultivando alimentos de modo dinâmico e alternando entre etapas de vida sedentária e nômade, como em Poverty Point (EUA) e nas ilhas do atual Japão (período Jomon). São exemplos muito concretos de sociedades sofisticadas no sentido de não poderem simplesmente serem classificadas como arcaicas. Graeber e Wengrow se perguntam como é possível que os arqueólogos não conseguiram popularizar essa informação junto ao público, uma vez que nada disso é exatamente novo. Na visão dos autores, os efeitos da doutrinação originada com Turgot ainda repercutem no presente, daí a importância de elaborar uma crítica aos especialistas que não conseguiram contestar a narrativa mainstream.

O restante do capítulo 4 tenta decifrar a origem da propriedade privada, mas nisso, não se pode dizer que teve sucesso. Graeber e Wengrow argumentam que nas origens a propriedade privada tem a forma absoluta do sagrado, e apenas nessa esfera ela interfere nas relações sociais. Assim, para eles, a propriedade privada é tão velha quanto o “sagrado”, ou seja quanto aquela própria passagem do reino animal para o reino da humanidade. Nesse sentido, a questão correta não seria sobre como a propriedade privada se originou, mas sobre porque ela deixou de ficar restrita à esfera do sagrado e passou a dominar todas as outras esferas da vida. Isso parece ser um problema sério da abordagem adotada no livro. Ao invés de indagar sobre como os seres humanos inventam o sagrado, ou seja, como as criaturas criam seu criador, Graeber e Wengrow optam por começar a investigação em um ponto da história da humanidade em que a propriedade privada já está presente. A origem da propriedade privada se localiza num passado muito profundo em relação ao recorte temporal escolhido, e por isso ela fica de certa forma eternizada. Em sua defesa, Graeber e Wengrow deixam subentendido que a origem do sagrado não lhes interessa. Mas como isso pode não interessar? Esse é um marco crucial para a compreensão das sociedades humanas em distinção às outras formas de vida! A resposta está naquela escolha do recorte temporal e, assim, não seria tarefa do livro decifrar como se deu essa transição.

O capítulo 5, Muitas estações atrás, demonstra de um modo mais direto como Graeber e Wengrow repelem as análises fundadas no conceito de “modo de produção”. Na visão deles, a recusa da agricultura é uma decisão consciente de certas sociedades com base em muita reflexão e discussão, envolvendo o conceito de liberdade (p. 191). Aqui, os povos indígenas da atual Califórnia servem como base empírica para o argumento. As múltiplas possibilidades de obtenção do sustento material não se dão exclusivamente no plantio de cereais que estão intimamente associados com a emergência das civilizações hierárquicas tradicionais. Assim, na acepção dos autores, um sistema social pode existir sem possuir um modo de produção definido, uma vez que a alternância entre o cultivo dinâmico de vegetais e caça e coleta não fixam um padrão sobre como essas sociedades se apropriam dos recursos naturais. Ademais, a possibilidade de cobrir as necessidades materiais sociais com base na rapina é igualmente um caminho alternativo, embora não seja o mais bonito já que requer escravidão e outras modalidades de apropriação (p. 211) (aqui, Graeber e Wengrow parecem não se dar conta da possibilidade de sociedades de ladrões sem que o hospedeiro sustente a si mesmo e o parasita com base em algum modo de produção). Neste capítulo também é abordada a questão da subdivisão cultural humana, onde a demarcação por contraste e oposição à cultura alheia seria a raiz dessa árvore multicultural que é associada a toda a humanidade. Nessa altura o texto se torna um pouco confuso, porque muitas outras perguntas são lançadas, às vezes sem aparente conexão direta com o tópico central. Outras perguntas são apenas maneiras alternativas de questionar como ficamos presos num padrão de sociabilidade hierárquico e opressor.

O capítulo 6, Jardins de Adônis, busca explicar como de fato os povos neolíticos evitaram a agricultura. Na narrativa convencional, a Revolução Agrícola parece ser um ponto histórico de transformação súbita, que transforma sociedades igualitárias em Estados como num passe de mágica. Na verdade, Graeber e Wengrow demonstram aqui que a revolução agrícola demorou por volta de 3 mil anos, período em que ocorreu muita coisa em termos de cultura, política e economia. Ou seja, há uma etapa apagada pela narrativa convencional que demanda investigação. Segundo Graeber e Wengrow, em teoria, o pacto faustiano entre humanos e cereais (que gera estruturas hierárquicas) poderia ocorrer rapidamente em poucas gerações (p. 256). Mas não foi isso que ocorreu. Na realidade, a invenção da agricultura foi um processo muito demorado, cheio de indas e vindas. Isso falaria a favor da hipótese de que os povos neolíticos debateram muito sobre adotar ou não essa técnica. Ou seja, a revolução agrícola não seria uma “armadilha” lógica, natural ou inevitável, mas um processo consciente.

Em geral, Graeber e Wengrow tendem a considerar todo mundo inteligente, independente da época, da região e do nível tecnológico em questão. Essa é uma característica forte do livro: os humanos em toda sua longa história são igualmente inteligentes do ponto de vista político. Considerando então que a agricultura não emerge abruptamente, mas nasce a partir da atividade lúdica de experimentação do cultivo agrícola, de interação leve e em confluência com a dinâmica da própria natureza (e não como controle sobre ela) a grande questão fica ainda mais nítida (p. 268-272): se esse estilo de interação era suficiente para atender as necessidades materiais sociais, por que o caminho da apropriação violenta, hierarquizada sobre os recursos naturais venceu? O que deu errado?

O capítulo 7, ao invés de fornecer uma resposta, concentra atenção no que estava dando certo, ou seja, no que chamam de Ecologia da Liberdade. Trata-se de uma noção próxima ao conceito de agroecologia, uma forma de geração de alimentos harmônica com o meio ambiente, uma espécie de cultivo de vegetais e domesticação de animais de forma esporádica, um “cultivo intermitente da terra” (p. 293), sem definição rígida quanto às técnicas, sem repetição mecânica do processo produtivo e adaptável às condições mutantes do entorno natural. Aqui, Graeber e Wengrow buscam detalhar como, exatamente, as sociedades desacoplam a agricultura da hierarquia (p. 274). Elucidando que a agricultura se espalhou de modo titubeante, com tropeços e avanços, a visão convencional linearista e evolutiva se torna de fato uma simplificação exagerada. Na realidade, não foram poucas zonas nucleares que deram origem à agricultura e domesticação animal, culminando inevitavelmente em civilizações hierárquicas, mas sim muitíssimos pontos independentes de origem, que geraram variedades enormes de estruturas sociais (mapa na p. 277). Em todos os exemplos (desde os mais conhecidos como o Mir russo, até esquemas de redistribuição de terra e rodízio de uso do solo específicos e menos famosos), o cultivo é consciente, duradouro mas nunca definitivo. É nesse sentido que se trata de uma agricultura ecológica, que assegurava a liberdade da sociedade em relação aos grãos – como bem ilustra, por exemplo, a flexível agrossilvicultura na Amazônia (p. 295). Em síntese: há um jeito de trabalhar a terra muito diferente daquele que conhecemos, que contempla a combinação entre caça-e-coleta com plantação, e que é historicamente muito ampla e diversa. Por isso, não é possível continuar resumindo que a agricultura moderna aparece de repente, numa grande virada e “não se pode simplesmente saltar do início da história para o final e pressupor que se sabe o que aconteceu no meio” (p. 299).

Cidades imaginárias

Os capítulos 8 e 9 são os mais importantes do livro em termos de ilustração do material empírico. É aqui que Graeber e Wengrow apresentam sociedades de grande escala que de certa forma são “invisíveis” em contraste com os impérios tradicionais que deixaram um rastro material muito duradouro nas grandes estruturas físicas, como grandes construções e intervenções no ambiente. O principal argumento aqui é que populações humanas muito numerosas não requerem Estado (p. 302). Para capturar esse estilo alternativo de formação social humana grande e que poderia ser classificada como “igualitária” (embora muitas qualificações para usar esse adjetivo sejam necessários, como os próprios autores reconhecem), Graeber e Wengrow falam de Cidades imaginárias (capítulo 8) cujo rosto fica Oculto à vista de todos (capítulo 9).

Como essas sociedades evitam a emergência do Estado e da estrutura hierárquica? Para Graeber e Wengrow, não há registros escritos desse saber, somente pistas, entre elas a estrutura de habitações individuais, a forma circular e a configuração arquitetônica que impede a definição diferenciada de um palácio entre as demais moradias (p. 321). Aqui somos apresentados a diversos mega-sítios arqueológicos, que abrigavam “cidades” de natureza descentralizada, sem polícia, auto-organizadas, onde não se nota o contraste entre o urbano e rural. Na prática, elas são descritas como vilarejos, cuja área de abrangência se estende por vasto território. A configuração espacial apresenta casas formando círculos e no meio, um vazio (ver o mapa p. 318, no caso da Ucrânia). A população era tanto caçadora-coletora como cultivadora naquele estilo de ecologia da liberdade (p. 319). Essas “cidades imaginárias” adotavam sistemas intrincados de cooperação e ajuda mútua baseados na relação com o “primeiro vizinho”, e regras de substituição caso alguma casa não conseguisse cumprir sua tarefa dentro do cronograma coletivo (p. 322). Desse modo, formava-se uma teia de relações e rodízio de obrigações que envolvia todos os membros igualmente. Graeber e Wengrow argumentam que as “cidades imaginárias” não são economias simples, mas sistemas sociais complexos, deliberadamente impedindo a emergência do Estado. Segundo os autores, “não há razão para supor que um sistema desse tipo funcionaria apenas em pequena escala” (p. 323), ou seja, para eles, os  dados empíricos demonstram a viabilidade do “igualitarismo” para muito além do número de Dunbar, de 150 indivíduos – as estimativas do tamanho exato dessas cidades são muito precárias, sendo que para uma delas, da civilização Indo no atual Paquistão, ela é de 40 mil moradores (p. 342).

Outro ponto importante é que esse arranjo social não era uma experiência de curto prazo, mas sim a base de verdadeiras civilizações que resistiram ao teste do tempo. No caso da cidade de Taosi, na China, Graeber e Wengrow apontam para uma aparente revolução que dissolveu o Estado de então e formou no lugar uma “cidade imaginária” cujo suposto caos e colapso para um “estado de anarquia”, como a literatura descreve esse momento, durou de dois a três séculos! (p. 353). Um exemplo parecido de revolta urbana e de caráter político é também identificado no atual México, quando essa mentalidade imaginativa e igualitária se funde com a infraestrutura muito tangível e de escala muito maior na cidade de Teotihuacan  (p. 356). Ali, os habitantes quase seguiram o caminho das demais civilizações mesoamericanas clássicas, mas seus cidadãos escolherem outro caminho (p. 367), construindo moradias de altíssima qualidade para toda a população e adotando um modelo político horizontal, tido como “intrigante” por praticamente todos os experts. Os mega-sítios que apontam para a existência dessas “cidades imaginárias” estão espalhados por todos os continentes, se pensarmos num conceito abrangente que engloba os casos empíricos de todo o livro.

Uma falha editorial grave neste ponto é não apresentar nenhuma fotografia para ilustrar o mosaico colorido que o leitor inevitavelmente forma na cabeça. Pode não ser muito difícil imaginar “algo como a atmosfera carnavalesca de uma cena de rua pintada por Bruegel”, mas custava tanto assim reproduzir os “murais vívidos e fervilhantes de atividades humanas” dos cidadãos-artistas de Teotihuacan” (p. 357), onde “há estonteantes contrastes de cores, arranjos fractais de formas orgânicas que se fundem umas nas outras, e intenso padrão geométrico, chegando quase a formar um caleidoscópio” (p. 604, nota de rodapé 37 do cap. 9)? Diversos outros trechos mais do que justificam uma sessão grossa com figuras coloridas para que pudéssemos minimamente nos imaginar in loco no trabalho de campo arqueológico. As parcas sete figuras são mapas preto e branco de fonte secundária, empobrecendo de forma inacreditável o trabalho.

Em resumo, todas essas “cidades imaginárias” são muito misteriosas, não se sabe exatamente porque terminaram, mas todas são de grande escala, duradouras e complexas ordens sociais de baixo para cima, sem poder autoritário nítido. Colocando-se na pele dos leitores, Graeber e Wengrow anotam que, “de fato, para quase todos nós, parece difícil até mesmo imaginar como funcionaria em grande escala um igualitarismo consciente. Mas isso demonstra apenas a forma automática com que aceitamos a narrativa evolutiva, na qual o governo autoritário é de alguma forma o resultado natural sempre que se junta um grupo numeroso de pessoas (…)” (p. 346). Ou seja, exigem provas da existência desse tipo de sociedade fantástica, como se fosse uma anomalia, enquanto as estruturas hierárquicas seriam o caso normal. O volume do material apresentado aponta para a inversão do ônus da prova: ou seja, por que existem sociedades hierárquicas, se as pessoas possuem tanto a sabedoria quanto a capacidade de se organizarem de modo diferente? Na ausência de provas da existência de hierarquia (como é o caso controverso de Teotihuacan), Graeber e Wengrow apontam para uma real possibilidade de igualitarismo. Pode não ser uma comprovação direta, mas certamente trata-se de uma possibilidade em aberto que não pode ser descartada a priori, como a narrativa convencional costuma fazer (p. 370) ao bloquear qualquer noção de que os povos nativos são capazes de pensar e produzir política que influencia o curso da história mundial (p. 376).

Os próprios criadores

Os três últimos capítulos retomam o problema fundamental numa ascendente cativante.

O capítulo 10, Por que o Estado não tem origem, já anuncia desde o título que os autores não veem utilidade em tentar descobrir como o Estado nasce, pelo menos quando se reconhece que a quantidade de definições para “Estado” é enorme. Devido ao fato de algumas serem muito restritas e outras muito abrangentes, não haveria consenso para poder discutir apropriadamente como se origina o Estado: tudo depende da definição adotada. Aparentemente, Graeber e Wengrow não perseguem uma síntese, e nem pretendem elaborar uma definição própria, porém uma conceituação de Estado sutil acaba se formando. É a partir desse instante que a obra deixa de ser simplesmente uma crítica desconstrutiva e notamos o vislumbre ou esforço de erigir uma alternativa. Só que a complexidade de união da descrição empírica com a construção teórica é muito alta, e toda energia já foi gasta no processamento e divulgação do estado da arte da arqueologia e antropologia.

Graeber e Wengrow propõem uma noção de Estado, ou do poder, baseada em três formas elementares de dominação: (i) controle da violência, (ii) controle da informação (relacionado com a burocracia e segredos oficiais) e (iii) carisma individual (p. 392). Esses três princípios são independentes, “têm origens históricas completamente distintas” (p. 395), mas geralmente estão combinados no plano real. Para explicar cada um deles separadamente, Graeber e Wengrow lançam mão de um experimento mental (pp. 391): imagine uma pessoa caminhando pelas ruas de Paris ostentando no pescoço um colar de pérolas de milhões de dólares, mas faz de conta que ela tomou uma poção mágica que criou um campo de força de modo que, se alguém tentar roubar o colar usando a força, ou seja, lançando um ataque de ordem física com os próprios punhos ou com armas, o golpe é anulado, protegendo o agredido. Nesse caso, onde a violência direta não tem efeito real e o colar só poderia ser subtraído por meio do furto, haveria ainda duas formas de garantir exclusividade sobre o colar: por meio do controle da informação (por exemplo, guardando o colar dentro de um cofre com senha) e por meio do carisma. Assim, caso uma segunda magia transformasse toda a população para torná-la incapaz de guardar segredos, tornando o cofre sem sentido, só sobraria a alternativa de ter essa habilidade inata de ser popular, ou seja, de ser carismático, de modo que todos ficassem convencidos de que essa pessoa exibida é especial e merece por qualquer motivo abstrato ter a posse exclusiva do colar.

Desse modo, Graeber e Wengrow se apoiam numa noção de posse como entendimento jurídico, na forma de propriedade, “sustentado por uma mescla sutil de moralidade e ameaça de violência.” (p. 390). Com isso, os autores demarcam um contraste muito forte em relação às análises materialistas, que derivam todo o poder político “do cano de uma arma” (p. 391), como é o caso da vertente Marxista em Mao Zedong.

O restante do capítulo busca analisar os casos concretos clássicos de grandes Estados (Egito faraônico, Peru incaico, México asteca, China da dinastia Han, Roma imperial, Grécia antiga) a partir de combinações variadas entre essas três formas elementares de dominação. A conclusão é que o Egito é o único exemplo empírico que parece respaldar a narrativa convencional (p. 446), indicando que a teoria que subjaz à visão de Graeber e Wengrow não serve apenas para tratar das “Sociedades contra o Estado”, mas também é adequada para entender as sociedades de Estado.

Retornando a Kondiaronk e aos fundamentos da crítica indígena ao mundo europeu, o capítulo 11 vislumbra O círculo completo para fechar o raciocínio. Aqui, Graeber e Wengrow são muito enfáticos no argumento de que todas as abordagens evolucionistas “se revelaram disfuncionais e, no fim, tiveram de ser abandonadas” (p. 475), incluindo aí não só os liberais Turgot e Adam Smith, mas também os marxistas que têm sua própria perspectiva da sequência do comunismo primitivo ao não-primitivo. É importante notar que as referências ao Marxismo são difusas: o livro se refere explicitamente apenas a autores que foram de algum modo apropriados pelos seguidores de Marx, como por exemplo Lewis Henry Morgan (p. 474). Em outras palavras, a posição de Graeber e Wengrow em relação à concepção materialista da história de Marx e Engels não é explícita, mas é impossível não enxergar na obra sua negação absoluta ao praticamente pulverizar a importância da base material na configuração das estruturas ideológicas que descrevem as relações sociais em observação. A interface entre a tradição anarquista de esquerda, da qual Graeber e Wengrow fazem parte, e o Marxismo é um lócus denso de conflito desde o século 19. Apesar de O Despertar de Tudo parecer não ter a intenção de acirrar os ânimos, é inevitável um debate quente entre essas duas correntes do socialismo no processamento coletivo do livro.

A propósito, a discussão sobre “liberdade” que ganha espaço nessa etapa, em detrimento da “igualdade”, ilustra as dificuldades de uma aproximação. Apesar de compreenderem perfeitamente a crítica do direito empreendida por Marx, Graeber e Wengrow adotam uma abordagem paralela, que refaz um trabalho semelhante de localização histórica da sociedade moderna com outros termos. O conceito de liberdade com o qual Graeber e Wengrow trabalham se origina da filosofia política indígena, e não da ideia de liberdade humana que vem ao mundo atrelado à noção de liberdade, cuja raiz está no direito romano sobre cativos escravizados. Ou seja, liberdade não é o direito de utilizar bens exclusivos como se queira, e que se refere apenas à liberdade do indivíduo enquanto proprietário privado. Liberdade humana de fato seria a capacidade efetiva de “deixar sua comunidade, com a certeza de uma boa acolhida em terras distantes; a liberdade de ir e vir entre estruturas sociais, a depender da época do ano; a liberdade de desobedecer às autoridades sem consequências” (p. 152, ver também p. 532). Assim, temos duas noções muito distintas de liberdade: a moderna (histórica-específica) e a humana (histórica-universal).

O capítulo 12, Conclusão, subintitulado com o nome do próprio livro, finaliza o texto atingindo o clímax, que só pode ser resumido aqui superficialmente, dado a envergadura do trabalho e a profundidade da discussão que se abre de imediato. Ao denunciar a narrativa convencional, etapista e evolucionista como mito, Graeber e Wengrow deslocam o Iluminismo para o passado, transformando o pensamento esclarecido numa ideia não-europeia presente em todo o globo em diferentes sociedades de alta inteligência política. Assim, é como se a Europa tivesse não só conquistado riqueza material-física dos povos conquistados, mas principalmente seu tesouro intelectual-filosófico. Ou seja, até mesmo uma das maiores realizações da era da razão teria sido usurpada dos povos indígenas, qual seja, a descoberta de que os humanos podem deliberadamente moldar suas próprias relações sociais (p. 524). A noção de que somos os próprios criadores de regras sociais que estruturam nossa vida coletiva (incluindo aí a própria religião) já seria completamente desenvolvida nessas sociedades pré-modernas, politicamente astutas.

Aqui transparece o contraste com praticamente todos os intérpretes do Iluminismo (e principalmente com os marxistas). Para Graeber e Wengrow, a humanidade sempre teve condição de intervir conscientemente na história. Ou seja, para eles, um determinado nível de desenvolvimento das forças produtivas não é pré-condição para a construção de uma ordem social de grande escala de acordo com seu ideal de eliminação do Estado. É justamente por isso que a grande pergunta não é porque ficamos desiguais, mas “como acabamos aprisionados” (p. 533) na desigualdade? Para Graeber e Wengrow, a liberdade de fugir, de reinventar a forma como viver em sociedade e de desobedecer constitui o “caso normal” e o que requer explicação é a situação inversa, onde os seres humanos não podem mais fazer isso. A literatura até então, incluindo aqueles autores que eles consideram os mais sofisticados e dos quais se reconhecem como herdeiros, como Pierre Clastres, achava que esse tipo de liberdade só era possível para sociedades pequenas (p. 532).Considerando a literatura de divulgação científica sobre a história integral da humanidade (que Graeber e Wengrow pejorativamente classificam como teorias pop em referência aos best-sellers Yuval Harari, Jared Diamond, Francis Fukuyama etc.) O Despertar de Tudo se destaca principalmente por se dirigir tanto ao público em geral como aos especialistas. Isso faz com que o livro de Graeber e Wengrow seja tão mais exigente do que seriam seus equivalentes, que de fato é necessário colocá-lo em outro patamar. Justamente por ser muito mais sério e preciso na tarefa de popularização, que não se realiza pela mera simplificação e muito menos pela reprodução acrítica de interesses estabelecidos, o livro será feroz e levianamente atacado pela direita e intensamente estudado e criticado no âmbito da esquerda. Independente de como se desenrole essa repercussão, os socialistas de todas as vertentes neste século 21 irão notar a importância de manter a cabeça aberta para revisar permanentemente o que sabemos sobre a história da humanidade com base na ciência.

 

Veja em: https://jacobin.com.br/2022/11/modernidade-eternizada/

Comente aqui